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CARLOS MACHADO ACABADO |
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“O CAVALEIRO E O ANJO” DE JOSÉ AFONSO:
PROPOSTA DE SUCINTA ANÁLISE… “MAIS OU MENOS PSICANALÍTICA” DO RESPECTIVO CONTEÚDO PARA USO (IM/POSSÍVEL) DAS ESCOLAS PORTUGUESAS
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Comecemos por lembrar àqueles que o não têm presente (e por dá-lo a conhecer aos outros) o “libreto” integral de “O Cavaleiro e o Anjo” que escolhemos para abordar, hoje, aqui, numa espécie de (porém, justíssima!) homenagem que quisemos prestar ao Autor desse belíssimo “Cantar de Novo” de cuja 3ª edição (datada de 1970 e editada pela “Nova Realidade” na sua colecção “de bolso”) extraímos o respectivo texto integral que a seguir se transcreve.
Passos da noite
Ao romper do dia
Quantos se ouviram
Marchando a par
Batem à porta
Da hospedaria
Se for o vento
Manda-o entrar
Vejo uma espada
De sombra esguia
Se for o vento
Que venha só
Quem está lá fora
Traz companhia
Botas cardadas
Levantam pó
Venho de longe
Sem luz nem guia
Sou estrangeiro
Não sou ninguém
Na flor queimada
Na cinza fria
Nunca se passa
Uma noite bem
Foge estrangeiro
Da morte escura
Pega nas armas
Vem batalhar
E enquanto a lua
Não se habitua
Dorme ao relento
Até eu voltar
Há muito tempo
Que te não via
(Um anjo negro
Me vem tentar
Batem à porta
Da hospedaria
É aqui mesmo
Que eu vou ficar
Eis, agora, sem mais delongas, a nossa proposta de exploração (a que intencionalmente, por razões que a respectiva leitura imediatamente aclarará, chamámos: mais ou menos psicanalítica) do poema, passo a passo:
“Passos da noite”
Primeira observação: a noite, no poema, move-se.
Não será impossível: em “Macbeth” eram as florestas—e, sem pretender sobre-interpretar José Afonso, o admirável sujeito poético das despretensiosíssimas reflexões que se seguem, a referência à tragédia shakespereana, pelo que esta contém de inquietante e (possivelmente também!) de ontologicamente eversor, senão mesmo surrealmente subversor de uma espécie de ordem natural das coisas que aqui, nest’ “O Cavaleiro e o (em contexto histórico, cultu(r)al, politico, etc. obviamente muito diverso) se pretende apresentar como estando, de igual modo, estruturalmente ferida de morte, se a expressão nos é permitida—a referência em causa, dizíamos, não é aqui, de modo algum, arbitrária nem acidental.
Em “Macbeth” (uma história de usurpação, de tirania e de tiranos derrubados…) eram, então, as florestas que se deslocavam em direcção ao (último) refúgio do usurpador Macbeth, numa espécie de encenação simbológica e, nos múltiplos sentidos da palavra, dramática do afogamento ou da asfixia—da execução, em qualquer caso—do tirano, finalmente, derrotado.
Aqui, porém, não são as florestas: é a noite—a noite como grande (não!) objecto tenebroso, sombriamente uniformizador (“aplastador”, diria um castelhano, recorrendo a um termo sem dúvida extraordinariamente expressivo do seu próprio idioma) ameaçador, insondável e hostil, imensamente nebuloso e fundo (ou sem fundo?...).
Sugestão subliminar: a que já vimos de afogamento ou sufocação na escuridão física, material, objectiva mas também subjectiva e interior): a Noite como algo que ganhou expressão material e vida própria—e que se move sinistramente, como um tenebroso, inexorável, provavelmente mortal mecanismo, ameaçando submergir ou mesmo devorar, absorver, diluir, fundir, consumir o próprio Eu poético.
A toda a volta deste, começa, pois, por reinar a escuridão, o impenetrável—a sombra—que se desloca (com um rumor de, como dissemos, grande máquina implacável e invasora, agressiva: os “passos”, as “botas cardadas”, etc.) no preciso instante em que o poema se inicia.
Perguntas subsequentes e naturais: que irá fazer?
Para onde (e sobretudo, para quê?) se moverá?
O primeiro verso lança, pois, logo desde o início, a dúvida, a inquietação, a angústia como “leit motiv” sobre toda a “estória”, sobre toda a atmosfera material e imaterial, do poema.
Mas faz mais: lança a dúvida sobre a própria estrutura concreta, material (eu diria: atómica, molecular; noutro plano: ontológica), dos objectos e, por conseguinte, sobre a própria lógica específica que os faz (des?) funcionar.
Exagero? Não nos parece.
Senão vejamos: por exemplo, a noite tem pés? Desloca-se dando passos?
Mas, então, os pés não são um exclusivo dos humanos?
E a noite desloca-se?
Mas não são os seres vivos os que o podem (lá está: naturalmente…) fazer?
Poderá, então, ser que, mudando as coisas como aparentemente mudaram, também os humanos desta “estória poética” hajam mudado já subtilmente de essência, de natureza estrutural e intrínseca?
Ter-se-ão transformado alguns deles na própria noite, na própria sombra?
Poderá ser que já não sejam, em termos latos, os humanos exactamente a Humanidade que deviam, em qualquer caso, ser—isto é, obedecendo a leis naturais que vinculam cada reino da natureza de forma… natural e necessária à própria lógica, à própria ordem natural das coisas?
Será, pois, possível que todo o real tenha, de facto, sofrido um processo de des/estrutural de contaminação, de corrupção e, em geral, de transformação que transmuta a noite em pessoas e estas na própria noite?
Poderá ter ocorrido, em todo o real, tal (poderíamos dizer com Kafka:) tal metamorfose?...
Eu diria, sintetizando, que há nesta sugestão da noite como algo de gigantesco e, ao mesmo tempo e de forma inextricável, como algo de impiedosamente mecânico, cego e brutalmente não-humano, que, de forma fantasmagórica, como uma espécie de (se é lícito dizer assim…) grande chapéu feito da própria “sombra em armas” envolvendo/ asfixiando/ ameaçando indiscriminadamente os objectos sob ele colocados; eu permitir-me-ia supor, dizia, que há, nesta imagem particular da Noite deslocando-se em direcção não se sabe exactamente a quê, o eco impossível (porém paradoxalmente óbvio…) dos aterradores “pesadelos plásticos” do artista suíço R. H. Giger (aquele que, diga-se de passagem, consideramos pessoalmente o mais… “beckettiano” dos pintores e artistas plásticos em geral e que aqui parece, com efeito—a nosso ver, pelo menos—poder operar como uma referência visual muito forte e, ao mesmo tempo, perfeitamente esclarecedora, isto é, capaz de nos transmitir plasticamente de imediato a ideia de ominosa, invisível presencialidade ou mesmo transpresencialidade negra e móvel, cobrindo—e pondo, de passo, em perigo—literalmente tudo, que o poema, a nosso ver, comporta).
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R.H. Giger, desenho para o filme de David Lynch, “Dune”
baseado na obra de Frank Herbert
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“Ao romper do dia”.
Imediatamente nos ocorre, a propósito do verso em causa, um trocadilho natural, instintivo: ao “romper” ou ao… “corromper do dia?...
Porque a questão pode aqui ser posta exactamente nesses precisos termos de contaminação e corrupção da Luz, da Claridade, da Alvura como sinónimo de equilíbrio e de serenidade—de ordem: ao romper do dia, ouvem-se (ainda?) os “passos da noite”.
Então, o dia não “sai puro”, começa logo por “sair”, como atrás se sugeria, “corrompido” por uma noite que se prolonga, que se eterniza, que se arrasta dia dentro, infectando-o e contaminando-o desapiedadamente.
O dia “sai” ainda “preso à noite”, “agarrado por ela”—e “a ela”.
“Quantos se ouviram, marchando a par”.
“Marchar a par” sugere obviamente exércitos (os “exércitos da noite”…), guerra, violência, ameaça, opressão, morte.
Sugere a implacabilidade de um exército marchando.
A noite é, pois, decididamente hostil: militarizou-se ela própria.
O animismo (“os passos da noite”) e aspectos específicos da própria imagética romântica típica (a Noite, desde logo) aparecem aqui radicalmente subvertidos enquanto recursos poéticos e, designadamente, líricos: continuam a ser ‘o enigma’ como eram em Schiller ou Novalis mas um enigma profundamente ameaçador e perverso—o Mal ou o habitat natural deste.
De notar ainda o seguinte aspecto complementador de quanto atrás dissemos a respeito da “metamorfose” ou “rotação/translação ôntica”do real, implicitamente sugerida no/pelo poema: um exército evoca e sugere sempre, para além do que sobre ele já avançámos, de um modo ou de outro, também, muito reconhecivelmente, a superação do individuo, a sua diluição num todo que já não é exactamente a soma dos vários indivíduos mas uma espécie de meta-individualicidade densa e compacta onde o Eu se dissolve e onde a vontade desse mesmo Eu como tal cede forçosamente o passo a uma vontade colectiva sobre a qual a individual tem escasso ou nenhum poder orgânico, digamos assim (cf. mais uma vez, as figurações de R.H. Giger que escolhemos para “ilustrarem” estas reflexões).
Parece-nos importante sublinhar mais este aspecto possível da sugestão global de despersonalização/desumanização que o poema, neste contexto preciso, claramente contém.
Continua, aqui, pois, a sugestão geral de desconformidade e perturbação da ordem “lógica” e “natural” das coisas.
O “quantos” como pergunta sugere adicionalmente a impossibilidade de contar, de precisar, de definir, de representar o real como algo que se explica e, por conseguinte, se entende numericamente e, portanto ainda, submetido ao “controlo matemático da própria Razão”—ou, seja, o infinito como dimensão efectiva da própria ameaça.
A expressão exacta do indefinível, daquilo que a Razão não consegue antecipar e, por conseguinte, controlar, organizar mas que, pelo contrário, se impõe violentamente à consciência, submetendo-a por completo.
É pois esse “quantos?” uma pergunta retórica, completamente sem resposta, uma “pergunta” inserida num monólogo do Eu poético isolado, sozinho, debatendo-se angustiadamente com os seus temores e medos sem resposta: sem solução? |
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“Batem à porta da hospedaria”.
Uma hospedaria, porquê?
Uma hospedaria é, por definição, um lugar de passagem, um não-lugar, uma referência de (mais mísera do que nobre e rica) transitoriedade e anonimato.
Será por isso?
Capa da 2ª edição dos “Cantares” de José Afonso |
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Mas “batem à porta” aponta, também, no contexto, para uma outra questão extremamente importante para a interpretação do poema, ou seja, aponta para a própria in-situação objectiva e, sobretudo, subjectiva do Eu poético: está fora da hospedaria?
Está, pelo contrário, dentro?
Está onde?
Outra questão: com quem fala ele?
“Manda-o”, diz, “entrar”.
Ao vento: a um símbolo de inefável, inebriante, inaprisionável liberdade?...
Mas diz a quem? Fala com quem?
E fala, realmente—ou apenas pensa?
Ou seja: trata-se aqui realmente de um diálogo?
Ou, ao invés, de alguém que monologa, totalmente incapaz de achar interlocutor?
Ou capaz apenas de achar interlocutores fantasma, espectros?...
A sugestão de um diálogo com alguém que (como dizer?) “não vemos na poesia” adensa a sugestão de espectralidade geral, senão mesmo de loucura, de um Eu poético agitando-se em luta com as suas aparições e fantasmas pessoais—uma sugestão inquietante de onirismo que o Poeta explora, aqui como noutros momentos, com extrema eficiência e com assinalável mestria.
Invariavelmente conotado com a intervenção política militante, José Afonso que, independentemente dessa sua bem conhecida faceta de interventor cívico e político, era um Poeta notável, toda a vida se debateu com aquela imagem de “cantor de intervenção” que lhe foi abusivamente colada (ele foi isso mas foi também outras coisas) e que lançou claramente na sombra a sua extraordinária capacidade para “pôr a falar”, a um outro nível que não apenas o da intervenção politica imediata e directa, o empolgante “surrealismo popular” que ele conseguiu, ainda assim, elevar a patamares de expressividade poética e de criação, de facto, notáveis.
Eu diria, concluindo este ponto, que a ‘Política’, aqui, não está ausente do texto (ou, se assim se preferir dizer, da textualidade poética: ela chega-nos é vista através dos efeitos surreais que produz, isto é, de uma espécie de deformação surreal/onírica deliberada que ela induz e que traz esses efeitos para o plano da consciência ou mesmo da sub-consciência individual, mostrando em situação (mostra-o o Poeta através da referida técnica da deformar para mais exactamente perspectivar; através, pois, do uso das técnicas do “realismo fantástico”) o modo como as perversões de
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superstrutura (os acontecimentos de ordem social e politica) marcam indelevelmente a própria infra-estrutura consciencial individual representada aquiobviamente pelo Eu poético.
Há críticos que defendem que é assim que a política “está” num Beckett, por exemplo, nessa espécie de estado gasoso e aeriforme onde surge como impressão e paixão muito mais do que como simples facto imediatamente objectivado.
José Afonso, desenho de Vasco |
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“Vejo uma espada”
Consolida-se a ideia de “exército” e de “guerra”.
De ameaça.
De violência.
Mas não é uma espada qualquer: é uma “espada de sombra”, de “sombra esguia” (aguda? Cortante?).
Tudo isto nos traz, de novo (se é que em momento algum deixámos de lá estar…) à escuridão e à noite: a sombra agora tem uma espada.
Está definitivamente armada.
“Se for o vento que venha só”.
A “solidão” surge, aqui, bizarramente subvertida como algo de desejável e (paradoxal/disfuncionalmente quase) bom.
A companhia é sinal de perversão, referência do próprio Mal. Devemos desconfiar da proximidade.
Devemos suspeitar do Outro.
A solidão é, afinal, uma última defesa, um último, desesperado reduto (ou condição?...), do Eu ameaçado.
“Botas cardadas”
A ameaça reiterada da guerra e da violência.
Neste ponto particular da nossa análise, é altura de chamarmos a atenção para algo que não pode naturalmente ficar ausente de qualquer projecto de fruição, por um lado (e como prioridade absoluta de abordagem—é para isso , para essa fruição, obviamente que se “estuda” e se explora, em qualquer caso, criticamente um texto) e da própria análise crítica do poema enquanto instrumento potenciador, enriquecedor daquela): falo, obviamente, da estrutura fónica do mesmo.
É claro que tratando-se do… “libreto” de uma canção, a ‘vocação natural’ da massa fónica em termos especificamente verbais é a de, ela mesma, operar em última análise como utensílio valorizador do objecto canção enquanto todo—isto em detrimento daquele grau de particular e específica “autonomia” que a Poesia, estritamente enquanto tal, naturalmente possui .
Ora, sucede que um dos méritos mais evidentes da poesia/música de José Afonso é exactamente a posse de uma intuição absolutamente notável em termos da edificação da arquitectura sonora do texto.
Se atentarmos, no sentido de o observarmos “à lupa” deste ponto de vista, no verso “Botas cardadas/Levantam pó” não deixaremos, seguramente, de notar, desde logo, o modo como o Poeta faz, aí como em tantos outros momentos e lugares da sua obra, um uso verdadeiramente exemplar das sonoridades, fazendo-as funcionar como uma espécie de eco exterior do próprio sentido interior das palavras como tais.
Em “botas cardadas”, por exemplo, um uso particularmente feliz dos matizes da sonoridade, em geral clara, luzente e forte, “á” alternando resolutamente com as oclusivas “t” e “d” e terminando com a sibilante “s” (o eco sinistro da marcha como que silvando, arrastando-se e confundindo-se, por assim dizer, de forma sinistra com o próprio ar) faz com que não nos seja difícil “ouvir” ao mesmo tempo que interiorizamos (e—vou dizer assim: percebemos) o próprio som das botas matraqueando inexoravelmente na calçada, no chão.
Mais: “ouvimo-las” aproximarem-se” em resultado do modo extremamente feliz como o dístico em causa “ondula” ou… “redemoinha” um momento (“em cima das” nasais adequadamente “escuras” de “levantam”—o inglês possui um termo particularmente eloquente para este serpentilíneo enroscar-se, o verbo “coil”, como na expressão “mortal coils”…) para acabar, então, determinadamente “subindo” até culminar no categórico som vocálico aberto “ó”: o som no seu cume, ou seja, como eu pessoalmente “vejo” e sinto esta questão: a proximidade.
“Levantam pó”
Um outro aspecto do verso: o pó como símbolo da secura, da esterilidade—do deserto—tanto objectivo como subjectivo? Ressonância bíblica admissível: a travessia do deserto?...
Ao lado obviamente da alusão expressa que é feita ao “anjo”, o “anjo negro”, o “anjo caído”, o anjo que é a imagem completamente subvertida de todos os anjos, isto é, o anjo como referência inversional do próprio Bem).
“Venho de longe/sem luz nem guia”
A errância pura. Ao contrário dos judeus que atravessavam o deserto sob a liderança de um Moisés que lhes conduzia os passos, aqui não há “luzes” nem “guias”.
À falta de um condutor que lhe aplane o caminho à aproximação da “hospedaria”, o recém-chegado é recebido com hostilidade (ou, pelo menos, assim o imagina) pelos que já se encontram (na hospedaria, no albergue): “Sou estrangeiro, não sou ninguém”.
Há uma ressonância possível do “Frei Luís de Sousa” (da errância do romeiro, da rejeição, da rotura integral dos laços afectivos, identitários, pátrios, etc.) neste outro “ninguém”, aqui proferido pelo Eu poético.
É preciso talvez recordar que a solidão é, também, entre outras coisas, de algum modo, a condição natural do intelectual.
Aqui os ecos ou as ressonâncias do texto parecem ir ainda, por exemplo, para além dos que já registámos, no sentido de Camus—do Camus, desde logo (até, obviamente, pela referência expressa ao “estrangeiro”) do Camus de “L’ Étranger”.
Dizê-lo é de algum modo adensar ou espessar, a tragédia pessoal do Eu poético cuja “condição alienada” (“Estrangeiro” “estranho”, “alheio”, “alienum”) vai, assim, no sentido de um outro patamar que não é já apenas militante e/ou imediatamente político.
É preciso dizer que fazer ‘canções políticas’ (como as que faz ou fez, brilhantemente aliás, por exemplo, um José Mário Branco—sem dúvida, o maior a seguir a José Afonso) não é vergonha alguma, como é evidente—bem pelo contrário! Bem pelo contrário.
Não é disso que se trata. José Afonso tem inúmeras canções que são políticas e são belíssimas canções. A verdade, porém, é que o próprio José Afonso admitiu por mais de uma vez em entrevistas e depoimentos vários que havia algo de profundamente deformante e injustamente redutor na visão que dele e da sua obra em geral havia, como circunscrita esta última, tão exclusiva quanto abusivamente à tal ideia da intervenção politica directa e de militância.
Persistir hoje-por-hoje nessa imagem é, diria eu, continuar a alimentar a injustiça de não ver no autor d’ “O Cavaleiro e o Anjo” ou de “Já o Tempo se Habitua” o competentíssimo e não-raro inspirado Poeta que realmente foi.
“Na flor queimada/Na cinza fria”.
A imagética escolhida é simples mas particularmente eficaz: o “fogo e as cinzas”.
O que foi mas já não é.
O Tempo.
A Morte.
Já se falou de “pó”, agora fala-se de “cinzas” que são “o tempo que passou sobre aquilo que já foi fogo”.
Mas interessante mesmoé que regressa a seguir aquela ideia ou aquela sugestão, aquele registo, do “estrangeiro”.
O que é particularmente interessante neste ponto é, desde logo, o modo como o Eu poético que, atrás (em tese, pelo menos), se confessava ele mesmo “estrangeiro” (seria efectivamente ele a falar?) agora decide entabular com o… “estrangeiro” (com o estrangeiro que é ele mesmo?...) um “diálogo” onde, a ser assim, a sugestão de surrealidade e de inquietação (de esquizofrenia e loucura?) se acentua poderosamente.
A admitirmos que há apenas um estrangeiro no texto, então, é óbvio que ele se desdobra (que ele—lá está, mais uma vez: se aliena) num jogo-de-espelhos identitário que já anteriormente o monólogo/diálogo com o “criado” inexistente (ou, pelo menos invisível) da “hospedaria havia introduzido ou, no mínimo, insinuado (“Foge, estrangeiro… etc.”) .
José Afonso joga aqui, mais uma vez, com particular eficácia, com as constantes descontinuidades, com a estrutura fragmentária, permitidas pela exploração sagacíssima que faz de um certo espírito próprio do surrealismo popular (ou do surrealismo… étnico, do surrealismo folclórico—inclusive resultantes, muitas dessas descontinuidades, como é sabido, do modo como vão sendo transmitidos/corrompidos continuamente os contos e canções populares) arrancando deste, desta característica “surrealidade” ou “surrealicidade” populares, diria eu, sugestões de inquietação e mesmo de angustiado/angustiante absurdo que nos permitem dizer que um dos grande méritos do excelente Poeta que ele, ainda uma vez se repete, ele foi é, com certeza, o de ter sabido conferir àquela deliberada ou mesmo, por vezes, involuntária surrealidade, matizes de modernidade e de eficiência expressiva que lembram, por exemplo, aquilo que compositores clássicos como Beethoven ou Tchaikovski para já não falar de Fernando Lopes Graça (que aqui não queremos deixar de recordar e de homenagear também e cuja memória, no caso presente, se justifica, aliás, de forma muito particular) entre tantos outros fizeram relativamente às raízes folclóricas e, em geral, populares onde muita da respectiva música radicou com o brilho que se conhece.
“Foge estrangeiro/Da morte escura”.
Desde logo, uma referência especificamente poética dizendo respeito ao âmbito da linguagem—à metáfora/sinestesia “morte escura”.
É uma excelente solução de texto, é preciso reconhecer.
José Afonso trabalha aqui com típico mérito a sonoridade nocturna do som “u”, apoiando-o num outro som, a velar “r” (“velar” de véu, de obscuridade…), que desliza e se prolonga como a própria “noite” do texto.
Isto em dois versos que “descem” de um modo muito curioso paralelamente e em conjunção ou uníssono um com o outro (ó>ê/ê>u: “Foge estrangeiro/Da noite escura”), seguidos de um terceiro onde a ideia da “luta” se expressa em sons agora claros (é>á>á: “Pega nas armas/Vem batalhar”).
Segue-se uma espécie de espiral de sonoridades abafadas (sons escuros e nasais) contrastadas com uma curta subida interior em ‘ó’, correspondendo aos momentos de discreta suspensão do movimento atrás iniciado (“Enquanto a lua/Não se habitua/Dorme ao relento), terminando o verso “em cima”, com um som cristalino, aberto, luminoso: “á”, ‘colando’ a luz, a claridade, à própria ideia do regresso.
Falando especificamente em termos de conteúdo, poderá ser que a ideia escondida no verso admita a seguinte modificação: “Enquanto a lua não se torna um hábito”, isto é, enquanto a noite não se iluminar com a luz que lhe é própria?
É, de qualquer modo, por outro lado, na sequência deste verso que ficamos a perceber quem é o “cavaleiro” de que fala o título, concretamente, quando o Poeta diz “pega nas armas/vem batalhar”.
Curiosa é a referência/incitamento que lhe é feita para que durma “ao relento até [o Eu poético] voltar”.
Há aqui, como atrás deixámos dito, uma sugestão de hiato de ou de suspensão na (não) acção do poema que se junta àquela outra sugestão anterior de “tempo” e, concretamente, de tempo ingloriamente decorrido, de tempo “defunto” (as “cinzas” de que atrás se falou).
Há, dir-se-ia, com ela, a sugestão de que aquilo que há a fazer não pode ser feito já: “[…] enquanto a lua/Não se habitua” [sublinhados nossos].
Mas há mais: há a ideia de que entrar na “hospedaria” até esse regresso (entrar na “hospedaria” no exacto estado em que se ela se encontra no presente?) envolve óbvios riscos.
“Dorme ao relento até eu voltar [a ser o que já fui—até a ordem estar reposta nas sua condições normais?]”.
Ou até à re-integração do Eu no próprio Eu, até se achar desfeita a condição de “estrangeiro”, isto é, a alienação do Eu de si próprio?
O que se segue: “Há muito tempo que te não via/ (Um anjo negro/ me vem tentar” parece poder, por outro lado, sugerir uma ideia subliminar de culpa relativamente a algum “alheamento” (e aqui regressamos claramente à ideia já referida de “alienação”: “alhear”, “alienar”) temporário do Eu poético relativamente a um dever, uma obrigação qualquer não explicitamente expressa no texto (“Há muito tempo que te não via” poderá por exemplo, configurar, uma acusação por uma separação, um afastamento, uma ausência temporários?).
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O Cavaleiro e (neste caso) a Morte
(fotograma d’ “O Sétimo Selo” de Bergman)
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Ou é preciso, em alternativa, por exemplo, supor que o “anjo negro” vem, sim, procurar seduzir e aliciar (será, com efeito, nesta acepção que é preciso entender a ideia da “tentação” ou do “tentar” no contexto da estrofe) o Eu poético no sentido de este não dar consecução à incumbência, dever ou missão que ele reconhece, de forma mais ou menos implícita, subliminar, ser a sua no contexto do poema?
Se assim for, é notável a viragem com que a derradeira estrofe resolve o poema: embora o “anjo negro” venha “tentá-lo” (ou é preciso dizer: no próprio instante em que vem fazê-lo ou até porque vem fazê-lo?), o Eu poético aparece-nos subitamente tomado de uma firme deliberação: a de “ficar”.
“Batem à porta da hospedaria/É aqui mesmo que eu vou ficar”
A questão, aqui, é, então, como já atrás se sugere: quando “batem à porta”, o Eu poético encontra-se dentro ou fora da hospedaria?
Uma hipótese é regressarmos à estrofe inicial (“quem está lá fora”) e, percebendo, nesse caso, o poema como uma espécie de textualidade rigorosamente circular, supor que toda ela decorre com o Eu poético no interior (da hospedaria como de si próprio), debatendo-se aí, nesses um/dois lugar(es), a seu modo subjectivos (ou subjeccionais)e interiores, com as suas dúvidas e hesitações relativamente, desde logo, ao papel que tomará na “estória” que o poema conta.
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Esta hipótese passa complementarmente, em tese, diria eu, pela ideia de que esse mesmo Eu poético só sai em pensamento da hospedaria e de si (trata-se, nesse caso, de um “romance numa cabeça”, como num célebre título surrealista…) e que devido a uma lógica onírica muito específica e muito característica, as paredes da “hospedaria” possuem uma (in) consistência verdadeiramente surreal, através das |
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quais o sujeito poético passa constantemente, entrando e saindo, não só e, como vimos, de si mesmo mas, de igual modo, da cena poética/onírica onde todo o poema, em últimas instância, (não?...) acontece.
Eu diria, para concluir, que “O Cavaleiro e o Anjo” é (volto a utilizar a expressão) uma textualidade (é, com efeito, um poema? Uma ‘simples’ “letra” de canção?
Um “texto” como chamou a muito do que José Afonso escreveu o organizador, para a editora Assírio & Alvim, da obra “José Afonso—textos e canções”, J.H. Santos Barros) por meio do qual se percebe perfeitamente aquilo que eu pessoalmente me permito considerar a luta, o combate, o batalha, do próprio José Afonso travada com o objectivo de vencer as barreiras de uma imagem pública (no sentido de superá-la poeticamente, de uma vez por todas) que, como atrás referimos, durante longo tempo, literalmente o manteve prisioneiro, refém, de algo em que foi, de facto, a vários títulos, exemplar mas de que está ainda hoje longe de ter-se libertado por completo.
É, de resto, a meu ver, essencial que percebamos o Poeta de “O Cavaleiro e o Anjo” exactamente a partir dessa luta que, em vida, terá, de algum modo, perdido mas relativamente à qual não é tarde para repor a justiça e a verdade que diz que além de um cidadão profundamente consciente da sua exemplar condição cidadã (e extremamente importante na formação da consciência de muitos outros cidadãos), José Afonso foi também (não sobretudo mas repito, também) um importantíssimo Poeta que é preciso (e quanto mais depressa, melhor!) finalmente re/descobrir com todos os seus méritos e inevitáveis debilidades.
Pela nossa parte, como admiradores convictos da figura do Cidadão e do Poeta (que, diga-se de passagem, circunstâncias particulares das condições da vida sob a ditadura nos impediram, com grande mágoa nossa, de conhecer pessoalmente) esperamos ter, com esta sumaríssima e despretensiosíssima abordagem de um dos seus mais belos textos, ter dado um (pequeníssimo, embora) passo no sentido do cumprimento dessa imprescindível tarefa.
CARLOS MACHADO ACABADO
Montemor-o-Novo em 22.01.08 |
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Carlos Machado Acabado (n. 1945), lic. em Filologia Germânica. Professor efectivo do ensino secundário (apos.). Ensaísta ("Seara Nova", "O Professor", "Jornal da Educação", etc.), artista plástico (presente em diversas exposições: Bienal de Artes Plásticas da Festa do "Avante", exposições individuais, colectivas, etc.). Tradutor. |
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