BIENAL INTERNACIONAL
DO LIVRO DO CEARÁ

 

NICOLAU SAIÃO:
Poemas que eu disse

8ª BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DO CEARÁ
(Sim, estes foram 3 de entre os poemas que tive ensejo de dizer durante as minhas intervenções
na Bienal de Fortaleza. Aqui os deixo aos confrades.)
Os passos remotos

O meu pai dorme. O seu nobre semblante
é como um coração apaziguado;
está tão doce agora...
se há nele algo de amargo, serei eu.

Há solidão na casa; e reza-se;
e dos filhos não houve hoje notícias.
Meu pai acorda, considera
a fuga para o Egipto e um suspenso adeus.
Está agora tão perto;
se há nele algo distante, serei eu.

E minha mãe passeia além na horta,
saboreando um sabor já sem sabor.

Está agora tão suave,
tão longínqua, tão amorosa e nítida.

Há solidão no lar sem reboliço,
sem notícias, sem verdes criancices.
E se há algo quebrado nesta tarde
que diminui e crepita
são dois velhos caminhos brancos, curvos.

A pé, por eles vai meu coração.

César Vallejo
(Trad. ns)

*

Eis a porta que range com aquele que entra:
domínio da incerteza para mais de um corpo
e o silêncio desfeito. A terra depois disto
e o tamanho inexato daquele que a tenta

como parente estranho que nem era homem
entregue ao acaso com a visão atiçada
no acúmulo de cartas quando pesa o nada
na permanência inútil e no lugar dos nomes.

Mãos em coisas pequenas só alargam a morte
no que consomem do outro. Mas o verbo firma-se
em cada grito de antes sendo ainda mais forte.

Ai, meus Senhores, funde-se o pressentimento.
Não sois nada, nem há folha fora dessa bíblia
que não seja virada e lida cada noite...

C. Ronald
(in Gemônias)

Wilmar Silva (Brasil), Cristiane Grando (República Dominicana), Amparo Osório (Colômbia) e Nicolau Saião (Portugal), numa sessão de Leituras na Sala Dolor Barreira, Centro de Convenções, Fortaleza, 19 de novembro de 2008.

Dois cêntimos de amor

Dois cêntimos, ou seja: quatro escudos
No tempo das luzes sobre as casas
E das árvores   apenas com o conhecimento de quem se ia
Quase para sempre -
Um pacotinho de rebuçados dos de açúcar e anis,
Duas mãos cheia de ervilhanas,
Três mãos de pevides,
Dois selos para cartas vulgares ou especiosas
Uma esmola pelos que lá se tinham,
Três maçãs,
Meia hora ao bilhar,
Meia hora de ping-pong,
Quatro carteirinhas de bonecos da bola,
Uma vela para alumiar mortos e vivos.

Não dá contudo para mandar uma mensagem.
Mas se desse que poderia obter-se?
Um olhar? Um trejeito? Um começo de frase?
Uma palavra encantada e tão terrena?
Um “e eu também”? Um “mas” seguido de um silêncio interrogativo?
Ou um simples beijo luminescente e natural?

Ou nada disto – apenas um suspiro, um resto de respiração?

Como findar o poema? Com a mão posta
No teu cabelo? Ou com um olhar que se recusa a partir?
Que dois cêntimos são tão pouco.
Que dois cêntimos são tanto.

Assim sendo, eu te digo com uma voz antiga
E feita agora mesmo (pois que vozes não há feitas
A não ser quando se trocam os tempos
Contra o fluir do tempo, puros e imarcescíveis):

Dou-te dos meus rebuçados
Dou-te um selo para que me escrevas
Dou-te ervilhanas, as mais belas que tiver
Um pedaço de sorriso
A melhor maçã
O meu mais doce beijo para que a amargura não nos fira

Com o seu silencio e a sua luz que fulmina.

Nicolau Saião, in “Escrita e o seu contrário”

VIII BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DO CEARÁ - INDEX

VIII BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DO CEARÁ
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