Os textos são, de
qualquer modo, indicadores do património acumulado; das perguntas, ideias, vontade de
saber, de participar e cantar aquele grande 'facto' colectivo" (8). A antologia veria uma 2ª
ed., no 20º aniversário do acontecimento, recuperando textos e nomes ausentes da
primeira e evocando de modo particular a memória de José Afonso, com a "homenagem
ao grande dinamizador cultural, ao compositor, ao cantor por antonomásia do espírito
que desencadeou o 25 de Abril, de que se tomou por direito seu símbolo privilegiado" (9).
E sobre a funcionalidade textual da nova edição, afirmam ainda os responsáveis: "Vinte
anos decorridos sobre aquela madrugada de muitas promessas, a palavra dos poetas
volta a testemunhar o encontro de vozes, necessariamente diversas mas consonantes na
sua essencialidade: a recusa do silêncio e a legítima reapropriação de um acontecimento
que se tomou, pela sua força explosiva, matéria poética e metáfora da utopia que
preencheu o sonho do Homem" (10).
A primeira edição de Poemabril inclui cinco depoimentos de outros tantos
"capitães de Abril" e composições poéticas de 62 autores, muitas delas inéditas, escritas
talvez como impulso criador após uma espécie de "convocação geral" ou "aviso à
navegação" posto a circular pelos coordenadores. A segunda edição publica os mesmos
depoimentos e recupera poemas ausentes da primeira, na tentativa de colmatar algumas
lacunas injustas, e, como entre uma e outra intercorre um espaço de tempo significativo,
foi possível inserir na segunda textos produzidos ou publicados depois de 1984,
totalizando, desta maneira, um elevado número de poetas (73) sensíveis ao tema da
revolução de Abril de 1974.
3. A antologia Poemabril revela-se, pois, como repositório da memória poética
de um evento extraordinário que agitou a consciência colectiva de um país. Através
duma perspectiva diacrónica, que a distância temporal permitia recuperar e actualizar,
muitos poetas recorrem à fórmula retórica da interrogação, acentuando a perplexidade e
o desencanto ("um cravo recentemente apunhalado" de Amadeu Baptista, p. 59; "e foi
para esta farsa/ que se fez a revolução de Abril" de José Gomes Ferreira, p. 187) (11) que a
normalização do espírito e acção revolucionários acabaria por determinar, embora haja
vozes obstinadas como a de José do Carmo Francisco: "Só amordaçam mas não matam
a Revolução" (p. 173).
Mas não faltam exemplos de pura exaltação, de euforia perante o inesperado
eclodir duma história há muito anunciada e que, não obstante as várias tentativas, por
várias vezes tinha sido adiada e relegada para os arquivos da esperança. Abundam, por
isso, os casos de apologia épica, não sem o assumir da auto-crítica colectiva pela tardia
intervenção, de que são paradigmas Egito Gonçalves (pp. 123-124) ou mais
explicitamente Carlos Loures ("Dia um, ano primeiro"):
A criminosa apatia que por tantos anos
nos enevoara o gesto e sufocara a voz
esfumava-se na rosa evanescente da alvorada
e surgia agora transformada em canção (p. 115).
E também se exalta a força do verbo e da acção de figuras que se salientaram no
processo revolucionário, como no poema "A Vasco Gonçalves", ainda de Egito
Gonçalves ("Com a lucidez das grandes horas/ poderás dizer-nos o que se passa aqui exactamente?", p. 124), onde não falta a já mencionada interrogação perplexa (12), ou no
texto poético de Eugénio de Andrade, escrito em 14/5/76, dedicado à mesma figura: "Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão/ era morada e instrumento de alegria"
(p. 129).
Tratando-se de um evento cuja visibilidade ficou marcada, em grande parte, pela
iconografia floreal dos cravos, não surpreende que muitos poetas tenham recorrido a
essa imagem com maior ou menor capacidade de recuperação desse elemento para o
tecido poético. Estão neste caso, entre outros exemplos, António Cabral ("Ainda hoje se
fala nesse dia") num poema datado de 16/10/83 e em que curiosamente as "flores de
Abril" participam do processo de libertação através dum diálogo, antes impensável, que
"escancarou as coisas interditas":
[...] Um hálito forte
de Primavera excitava o húmido
corpo da noite e alguns cravos
trocavam na varanda suas palavras
recentemente proibidas (p. 67);
e igualmente Armindo Rodrigues ("Portugal, cravo vermelho", pp. 96-99), com a
particularidade de a transposição metafórica atingir um espaço mais abrangente,
apoiando-se a memória poética num tempo de euforia (primeiro de Maio de 1974) e de
espontânea participação unitária, o que parece justificar os dois últimos versos do
poema: "Portugal todo floriul num mesmo cravo vermelho" (p. 99); ou ainda Hélia
Correia ("25 de Abril") num texto que mantém a mesma atmosfera de festa triunfal,
agora quase báquica numa comunhão com o vinho, a dança e o amor, numa orgia dos
sentidos em que os cravos adquirem uma funcionalidade libertária:
Bebamos, pois, o vinho destas vozes,
soltemos estes cravos como potros
embriagados.
Como intensas éguas
incendiárias (p. 140).
Em contraposição com a memória do caos e da opressão, patente; por exemplo,
em Armindo Rodrigues ("Prisão de Caxias, 1949") ou em Jorge de Sena ("Cantiga de
Abril"), o lexema "liberdade", com as suas múltiplas conotações ("Não hei-de morrer
sem saber qual a cor da liberdade", escreve Jorge de Sena como epígrafe ao poema
acima mencionado, p. 157), não podia estar ausente de um discurso que faz daquele
conceito a própria arma, não apenas com a finalidade de exorcizar fantasmas do passado
mas, mais precisamente, atribuindo-lhe a função de "símbolo fortíssimo", "ave indócil a
que não renunciámos", no dizer de Amadeu Baptista (p. 59), a que se associam Artur
Lucena ("Serei seremos os exactos amigos da liberdade", p. 107), Casimiro de Brito
("Memória do primeiro de Maio", p. 121) ou Eugénio de Andrade ("Rente à fala, 4"),
um poema datado de 26/4/74 e em que a conquista da liberdade se manifesta na
reapropriação da terra,
Esta terra de sol esta terra ainda
é bem ela esta terra inocente
este corpo há que deixá-lo ser água
não é fácil separá-lo da luz
quase nua esta terra agora minha (p. 129),
uma "terra inocente" que é metáfora de "país" e que se apresenta, na perspectiva do
sujeito poético, conotada por elementos significativos - "sol", "água", "luz" - que
contribuem para a "quase nudez" de um corpo social no limiar da transfiguração. É este
igualmente o sentido do belíssimo poema de Sophia de Mello Breyner Andresen ("25 de
Abril"), não incluído na antologia por lamentável esquecimento, e que aqui se
transcreve, até como homenagem à grande poetisa:
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo (13).
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