Mas é todavia o lexema " Abril" a percorrer o sintagma global de Poemabril
numa dinâmica que o coloca como centro de irradiação textual, fragmentando-se em
todas as direcções, isto é, aberto a muitas leituras que, porém, o elegem como tempo
coincidente com o florir da esperança, "astro decisivo" para Jaime Rocha ("Abril", p.
151) ou mês-símbolo da poesia por antonomásia de José Carlos Ary dos Santos ("As
portas que Abril abriu", pp. 169-171) ou Manuel Alegre, figurando o último com um
dos muitos poemas/variações sobre o tema ("Trova do mês de Abril", pp. 210-211 ), um
texto de 1981 e anteriormente publicado no seu livro Atlântico (1989):
Foram dias foram anos a esperar por um só dia.
Alegrias. Desenganos. Foi o tempo que doía
com seus riscos e seus danos. Foi a noite e foi o dia
na esperança de um só dia (p. 210) (14).
Abril ("um só dia") traduz a viragem da História depois da longa espera e da longa
errância, então com a única e profética certeza de que "País de Abril é o sítio do
poema" (15).
Mas outros poetas escolheram "Abril" como ponto de partida e como núcleo da
expansão textual, caracterizando-o como "luminoso e brando" ou como mês "que pode
ter a altura de um povo" (José Jorge Letria, "Abril. Quatro andamentos", pp. 189-191);
como grito "com agulhas/ de cristal/ e fecundar abril" (José Manuel Mendes, "10º
poema de Abril", p. 193); ou "Como se fosse uma lenda", título do excelente poema de
Rui Mendes: "Eu sou daqui destas marés íngremes preia-mar de rosas/ Abril vi cantar Ieda madrugada às raparigas frondosas" (p. 261), onde são nítidos os ecos da grande
tradição poética, aqui re-semantizada. Nem sempre, porém, as vozes poéticas se limitam
a cantar Abril em termos de celebração luminosa; por vezes a disforia provém das datas
de composição dos textos e da intervenção do efeito diacrónico: "Que é feito do mês de
Abril?", pergunta, por exemplo, José Fanha (pp. 179-181), a que corresponde
igualmente a interrogação "por onde andaste" de Henrique Madeira (" Abril", p. 141 ); e
Luís Serrano ("Recordo Abril") inscreve o desamor inevitável: "que de abril resta/ [ ...] /
nos arquivos desencantados/ da memória?" (p. 198).
Na diversidade de perspectivas e na variada arquitectura do fazer poético, as
composições de Poemabril não podem deixar de corresponder a outros tantos exercícios
em tomo da palavra, elemento que tem esse poder único e irreversível de fixar a
memória, individual ou colectiva, de um evento, no caso específico a "revolução de 25
de Abril de 1974" e sua repercussão na consciência dos poetas. É a este poder que se
refere António Ramos Rosa ("A espécie viva"):
no obscuro viveremos para libertar os astros dos signos
[e as palavras do ventre obscuro.
com a sabedoria das obras estrangularemos os
[dispositivos da hecatombe (p.77),
numa afirmação da força da palavra como "labaredas de consciência" iluminando o
discurso "contra os mestres da catástrofe". |
(14) Percorrendo a obra poética de Manuel Alegre, são inúmeras as referências a Abril e já desde o seu
primeiro livro. Veja-se "País de Abril", "Explicação do país de Abril", "A rapariga do país de Abril"
(Praça da Canção, 1965); "Portugal e Paris" (O Canto e as Armas, 1967); "Era Paris Abril setenta e um",
"O cavaleiro", "Crónica de Abril", "Trova do mês de Abril", "Abril de Abril", "Abril de sim Abril de
não" (Atlântico, 1981).
(15) Manuel Alegre, Obra Poética, pref. de Eduardo Lourenço, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 1999, p. 81. |