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JOSÉ RÉGIO
Três máscaras

INDICE

COLUMBINA – Estou então entre dois fogos?

Um bando de mascarados cruza a cena

Um casal de mascarados, foliando, entra pela esquerda

PIERROT (um pouco mais baixo) – Às vezes, de noite

Um criado entra pela direita

Saem ambos. Um silêncio

 

(Um bando de mascarados cruza a cena, demorando-se
um pouco e foliando)

PIERROT (ergue-se de salto, faz piruetas, ensaia passos de bailado, volta para junto de Columbina) – Já só me interesso por ti, Columbina! Esta noite é o mais claro dia da minha vida. Se tu soubesses como me sinto leve... livre... poderoso... Tenho asas, barbatanas, músculos de aço, plumas... Queres que faça um milagre?

COLUMBINA – Quero! Transforma-te num homem interessante: Estrangula-me por amor, depois ressuscita-me.

PIERROT – Consentes que os meus dedos toquem no teu pescoço?

COLUMBINA – O meu pescoço frágil, delicado como um caule de flor..., não é? O meu colo de graça... o meu colo de cisne... Os poetas líricos são pouco inventivos.

PIERROT – Não, Columbina: o teu pescoço mesmo; a tua carne.

COLUMBINA - ...De leite e rosas, supomho.

PIERROT – Não! A tua carne, a tua alma feita sangue...

COLUMBINA – Ligeiramente mais interessante.

MEFISTÓFELES (sempre direito, um pouco hirto) – Só por mim te podes interessar, Columbina. E assim há-de ser. Mas espero que me mandes falar. Pierrot é bavard como um pintassilgo.

COLUMBINA – Fala francês, Mefistófeles?

MEFISTÓFELES – Francês, inglês, alemão, italiano, espanhol... Estudo agora russo e chinês. Sou um homem viajado. Posso gastar dinheiro. Tenho trinta anos. Sei beijar as mulheres na boca. Desprezo! desprezo os homens. Perdoa-me esta brutal enumeração das minhas vantagens.

COLUMBINA – Bem vejo que também desprezas as mulheres.

MEFISTÓFELES – Como desprezar o que se deseja?

COLUMBINA – Há um desejo que implica desprezo. Bem o sabes, Mefistófeles.

MEFISTÓFELES – Também o sabes tu?

COLUMBINA – Li nos livros.

MEFISTÓFELES – Sim... os livros! Também dizem que é possível desejar com raiva, com ódio, com desespero... Os moralistas e os psicólogos têm de dizer alguma coisa. Ácha-los interessantes?

COLUMBINA – Acho que às vezes acertam.

MEFISTÓFELES – Pois que as mulheres me desprezem, ou odeiem, e me desejem. Pelo menos enquanto eu as desejar a elas.

COLUMBINA – Não há dúvidas que tens grandes qualidades para vencer. Mas só as que disseste?

MEFISTÓFELES (abrindo a capa e exibindo-se) – Também tenho um corpo... como tu: Sou belo.

COLUMBINA (secamente) – Nada mais?

MEFISTÓFELES – Talvez também a minha alma: Sou cruel...

COLUMBINA – Só?

MEFISTÓFELES – Cruel, perverso, enigmático, sombrio... Não é o que também dizem os livros?

COLUMBINA – Não vais mais longe?

MEFISTÓFELES – Vou, sou prático. Para te conquistar, Columbina, (dobra-se numa leve reverência) tenho ainda o capricho que me inspiraste. Desenvolvo grande energia quando se trate de satisfazer os meus caprichos. Ora o teu loup, Columbina, não consegue esconder a tua boca fresca, a tua linda voz, os teus gestos finos, o teu pescoço alto...

COLUMBINA – O quê?! também tu?! Olha, prefiro que Pierrot fale das minhas vantagens; e fales tu das tuas.

PIEEROT (caindo novamente aos pés de Columbina) – Sim, Columbina! manda que eu fale. Serei o teu poeta desta noite. E contar-te-ei histórias... inventarei parábolas... como nunca mais contarei, a ninguém. Há tanto que eu esperava esta ocasião!...

MEFISTÓFELES – Lá está Pierrot com o seu reportório.

COLUMBINA – Receio que sim, Pierrot.

PIERROT (quase num grito) – Não digas isso, Columbina!

COLUMBINA – Convence-nos do contrário.

PIERROT – Não acredites! não acredites que eu não seja capaz de dizer coisas novas, interessantes, cintilantes! A desconfiança dos outros gela-me; tolhe-me; faz-me dar-lhes razão. Eis a minha tragédia. Se hoje me sinto leve... livre... poderoso... é que trago esta cara pintada. Ninguém, aqui, me conhece. Ninguém tem razões para desconfiar de mim...

COLUMBINA – Um pouco menos mal, Pierrot.

PIERROT – Porque me estou a confessar. Porque esta noite, se vim esta noite a este baile de máscaras, se te encontrei esta noite, Columbina, foi para isto: para ser nu como a verdade, assim mascarado. A minha verdade fugiu do seu poço esta noite de Entrudo...

COLUMBINA – Bem! continua.

MEFISTÓFELES – Vejo que também sabes fantasiar, Pierrot. Talvez ainda venha a considerar-te um rival menos insignificante.

PIERROT (levantando-se imediatamente) – Não estou a fantasiar nem a exibir-me!

COLUMBINA – Deixa-o falar, Pierrot. Mefistófeles não pode amar nem crer. É o seu inferno.

MEFISTÓFELES – Posso rir, sorrir, odiar, desejar, tentar, seduzir, deitar a perder... Ainda tenho um belo campo de acção!

COLUMBINA – Porque não continuas, Pierrot?

PIERROT (ajoelhando de novo aos pés de Columbina) – Posso falar-te do meu amor?

COLUMBINA – Estavas a interessar-me falando-me de ti. É certo que tens uma tragédia?

PIERROT (levanta-se, agora devagar. Baixa a cabeça, abre um pouco os braços, deixa-os cair, diz com esforço) – Tenho: sou amanuense!

(Um breve silêncio.)

MEFISTÓFELES (batendo palmas discretamente) – Bravo!

COLUMBINA (ergue-se, esboça um gesto para Pierrot, volta a sentar-se e ri, divertida) – És engraçado, Pierrot!

PIERROT (quase com raiva, mimando ao mesmo tempo o que descreve) – Pois tem graça, não tem, Columbina? Sou pobre; nesta casa de gente rica e distinta; e sou amanuense! Todos os dias vou à minha repartição. Aquilo é sombrio, velho, nunca está limpo do pó, cheira a fechado e a mofo. Chego todos os dias à mesma hora. Sou pontual! pontualíssimo. Um funcionário exemplar. Entro, e digo para a direita: «Bons dias, senhor Barroso!» O senhor Barroso é meu colega. Usa chinó, uma água-de-colónia enjoativa, e deve lavar-se pouco. Sempre me responde: «Ora bons dias!» Volto-me então para a esquerda: «Bons dias, senhor Vidigal!» Também é meu colega. Sofre do fígado, frequenta os clubes baratos, todos os dias aparece irritado e verde. Resmunga: «Deus o salve!» Eu sento-me, enfio as minhas mangas de alpaca, principio a escrever. Escrevo, escrevo, escrevo, (quase num berro) escrevo...! (Breve pausa. Mudança de tom) E pronto. É isto a minha vida.

Imagem da peça "Três máscaras", encenada por Nuno Nunes no Teatro da Trindade, em Lisboa (Abril-Maio de 2005)