Podemos considerar os textos como objectos-valor, semióforos (Pomian), trate-se de valores práticos, estéticos, religiosos. A cultura é uma exteriorização da memória, uma forma de retenção. E os textos são a forma mais evidente da cultura ocidental, pelo menos. Os "textos sagrados" são textos que deixaram de funcionar como "discursos", mas que são antes figuras de um valor absoluto, figuras da Referência (P. Legendre), figuras do Destinador dum sujeito individual ou colectivo. O texto liga porque representa a Referência do laço social. Pode partir-se de uma teoria do laço para definir o "sagrado" (os textos sagrados): poder-se-ia definir como sagrado o que é para um sujeito um traço de definição, ou o laço que define um conjunto de sujeitos não apenas pela sua relação com um sistema de valores, mas pelo tecido da rede em que se enlaça.
Como é que os textos ligam sujeitos, como constituem eles sujeitos colectivos? A questão posta nestes termos retira ao sujeito a pretensão de estar diante dele como consumidor: o texto como figura manifesta o dever-ser do sujeito. A leitura é claramente um processo de individuação: cada vez que produzimos uma leitura modificamo-nos. Transformamo-nos. E a individuação psíquica é inseparável das formas psico-sociais de individuação. Somos animais de advento, processos inacabados. Só a morte é um processo de individuação acabado. O texto a acreditar confunde-se aqui com o "real" e a instituição que detém o texto fala no lugar do real, havendo como que uma "colagem" entre o enunciado do texto e a instância (transcendente) da enunciação. O respeito (vs profanação) do texto não é nem adesão à mensagem nem escuta de uma palavra, mas representação da instauração do sujeito (2).
Outra proposta (pragmática): os textos são "sagrados" em função do conteúdo que transmitem e da adesão de um sujeito a este conteúdo. O crer solda aqui o "reconhecimento" duma adequação entre a mensagem proposta e o universo do saber/crer do sujeito receptor. Uma terceira proposta enfim, a partir de uma teoria da enunciação. O discurso faz laço, mas aquém das estratégias da persuasão. Se um discurso faz laço é porque um sujeito nele se torna simultaneamente "esvaziado" de um "demasiado cheio" de sentido e articulado à cadeia de um agenciamento de "figuras". O laço não se confunde aqui nem com a análise dos objectos-valor, nem com a análise narrativa da persuasão (querer fazer crer). Quer dizer, há discursos ("literários", "sagrados") que pela sua capacidade figurativa constituem sujeitos enunciatários aquém ou para além das mensagens decodificáveis que veiculam e que fazem laço entre si. Não pelo seu valor intrínseco ("textos ditos sagrados"), não pelo seu enquadramento estratégico, mas pelo efeito da semiosis em que consiste a enunciação.
O tempo da leitura
O leitor descobre-se a partir da leitura: como sujeito, é um efeito da leitura (3). A rigidificação dos modelos explicativo-interpretativos levou quase sempre ao imobilismo. Ora, o texto, embora escrito, não é completamente imóvel. As noções de dependência, estabilidade e interferência "mexem" com qualquer texto. A influência da física moderna sobre a crítica contemporânea é de algum peso para a não subestimarmos. A noção de "influência literária", mecanicamente entendida até há bem pouco tempo é "naturalmente" dependente de uma concepção expressiva e causalista da física clássica e do humanismo tradicional. A passagem ao paradigma formalista, relacional, ou ao conceito de causa à distância, marca a caducidade da noção ainda dominante na historiografia ou nos estudos literários. Longe vai o tempo em que se pensava o acontecimento literário como um processo exclusivamente produtivo e não um objecto de consumo, um efeito de paixão ou de modificação do sujeito leitor. Os conceitos físicos de massa/energia foram, indubitavelmente, de grande alcance para a compreensão do conceito de influência em termos modernos. Quando se define o fenómeno literário como uma "dialéctica entre o texto e o leitor", como o faz Riffaterre (4), o texto e o leitor vivem em simbiose, como concentrações densas de massa-energia num campo intertextual. Não há "primeira leitura" absoluta, como não há "primeira noite" absoluta: cada leitura é, de cada vez, primeira. Quer dizer, o acontecimento literário não é um objecto fixo, mas um sistema em curso de produção, uma produtividade. A distinção clérigos vs leigos, produtores vs consumidores entrou em colapso. O ponto de vista do clérigo e/ou do crítico, figuras que no nosso imaginário estão associadas ao crivo na mão e à caça aos hereges, será sempre entrópico, doxológico. A vontade de objectividade traz escondida uma outra vontade: a doe poder. Entre receber passivamente o sentido ou deformá-lo subjectivamente, uma terceira via se nos oferece: a da interferência mútua dos respectivos campos. Texto-leitor-intertexto aparentam-se, portanto ao conceito de massa-energia da relatividade geral. O texto que há na sala é o texto da nossa representação, não há um texto no ar.
Que contrapor à imobilidade da letra e às volutas da crítica: a "restância" do poema, do vivo: o primado do espírito sobre a letra, a leitura infinita, a alegorese? Não será necessário distinguir performances de leitura (em número indefinido), das classes de performance que correspondem àquilo que Geninasca chama "práticas discursivas"? Que texto fala, sem o incêndio do leitor? Ou não é o texto apenas traço, esquecido na memória do tempo, exangue vaso que não soa? Como resolver a relação assimétrica que o diálogo hermenêutico, entre o texto e o leitor, instaura? Como interpretar, sem cair nem na "falácia da intencionalidade, nem na falácia da "objectividade"? O texto não fala, mas o leitor não pode fazer-lhe dizer o que quiser - o texto não é uma criatura do leitor, mesmo se depende dele para ser reconhecido como coisa textual, isto é, um sentido virtual. Que haverá de comum a Nicolau de Lira e a S. Fish, quando o primeiro se refere à leitura "incorrecta" e o segundo a uma interpretação "inaceitável"? Que é que torna uma interpretação aceitável e uma outra incorrecta? Donde vem a dificuldade de ler? Da doxa, da do que ela tem um papel de legitimação da canonicidade discursiva e porque a canonicidade duma série textual supõe a existência duma instituição discursiva (Sarfati, 2002, p. 182)? Da bifacialidade do Livro (Ap.5,1), que tem um interior (sentido místico, espiritual) e um exterior (literalidade)? A multiplicidade dos sentidos obscurece a inteligência. Mas os textos têm vários sentidos, de facto. Que fazer destes textos? Reduzir o sentido espiritual ao sentido literal, que é dado como fundante, norma normans? Privilegiar o sentido natural, desqualificando a leitura alegórica e a sua pertença ao canon, como fez T. de Mopsuéstia? Mas donde vem a necessidade do sentido único? Do sensus fidei? Mas não resultará daí uma anexação do sentido? Como partilhar então o dito de Gregório Magno, segundo o qual: Divina eloquia cum legente crescunt? (5)
Que é escrever?
P. Beauchamp tem uma resposta admirável: “celui qui écrit soulève une dalle. Le débat est celui de l'homme avec tout commencement et d'abord le sien propre : passer la barre de l'oubli ou la déplacer…Écrire ajoute aux paroles le noir de l'encre, ce noir qui fait tache avant de faire signe (6). Escrever, como falar é expor-se, é arriscar-se. “Ècris un mot si tu l'oses”, escreve Apollinaire. E diante do escrito, a pergunta imediata é esta: quem escreveu tal coisa?, entenda-se, quem se atreveu a escrever isto? E diante do escrito, como diante de um grafito, ninguém pode esquivar-se a dizer: “fui eu”. Será um crime escrever? Afinal, no fim do Fedro, Sócrates trata da escrita para lhe mover um processo. Escrever é retomar, como o estudante que revê os trabalhos de casa; como quem preenche algo que faltou dizer, escrever. Teresa Ferrer Passos arrisca, em Anunciação, uma palavra nova sobre as versões quadripartidas dos Evangelhos. A autora, podíamos dizer, a artista, escrevendo, desarruma uma ordem, um cânon, já existente, acrescentando ao já escrito uma outra forma, segundo a lógica do trabalho que modifica o mundo, alargando-o. Nós fabricamos signos e os signos fazem-nos. Este não é um livro sagrado, é um romance que conta a humanidade de Deus a partir do olhar de uma mulher, a escritora, primeiro, e intra-diegeticamente, a partir de Maria. Esse é o desafio maior desta obra. Não se responde a um romance com a teologia ou com a exegese. O Natal, num romance, tanto pode ter sido numa gruta do Mar Morto como em Nazaré ou em Belém. Importa é o gesto que traz o sensível que a narrativa oculta. Arriscar é o que recomenda Fr. Agustín Salucio (1523) que escreve, no seu Avisos para los predicadores del Santo Evangelio, “bien que mirados los evangelios del año, de santos y de tiempo, se haga como un quinto Evangelio, de todos cuatro tomado, sin que le falte cosa notable de todos ellos y sin repetir notablemente lo ya dicho, son es cuando la misma lección se refiere en diversos días por alguna justa causa” (7).
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(1) Teresa Ferrer Passos, Anunciação. Romance , Universitária editora. 2004.
(2) Luis Panier, "Le lien du discours", in Nouveaux Actes Sémiotiques, 28, 1993, p. 2-3.
(3) L. Panier, “Une pratique sémiotique de lecture et d´interprétation”, in Exégése et Herméneutique , Paris, Cerf, 1994, p. 125.
(4) Ver Michael Riffaterre, Sémiotique de la poésie , Paris, Seuil, 1983: 12
(5) Ver Pier Cesare Bori, L'Interprétation Infinie, Paris, Cerf, 1991.
(6) Paul Beauchamp, L'un et l'autre Testament 2., Paris, Seuil, 1990, p. 76.
(7) Fr. Agustín Salucio (1523) escreve, no seu Avisos para los predicadores del Santo Evangelio, Juan Flors, Editor, Barcelona, 1959, p. 137. |