BREVE PANORAMA DO SURREALISMO EM PORTUGAL
Direção e organização de Rui Sousa
RUI SOUSA
Qualquer exercício que procure abordar a evolução de um movimento, com impacto nos mais diversos âmbitos da existência humana, percorrendo-os através das mais plurais expressões artísticas, e se revela extremamente complexo no que respeita ao progressivo desenvolvimento de uma filosofia e de uma ética próprias, é sempre difícil de executar e depende de uma atenção a múltiplas opiniões e pontos de vista, nem sempre fáceis de reunir e de conciliar. O que se acentua quando nos dedicamos a um caso como o do Surrealismo em Portugal, na medida em que muitos dos protagonistas que deram corpo à manifestação peculiar desse movimento internacional entre nós – ou que dele foram pelo menos notáveis compagnons de route – partiram sem que a devida atenção lhes tenha sido prestada e sem que se tenha efetuado ainda em toda a abrangência uma recolha ampla dos testemunhos que se conservam.
O percurso do Surrealismo em Portugal foi bastante acidentado, conheceu sistemáticas divergências e pontos de ruptura e de metamorfose, conquistou um espaço peculiar conjugando diferentes heranças internacionais com a tradição intrinsecamente portuguesa e com a situação cultural e sócio-política em que emergiu. Nessa simbiose, evidenciou-se através de um dos mais permanentemente críticos e questionadores quadros de releitura dos seus próprios significados, objectivos e pressupostos, tanto no que respeita ao plano da intemporalidade a que se vinculou produzindo tradições trans-históricas sempre em aberto, como relativamente ao contexto histórico e sócio-político específico que foi o seu.
O Surrealismo em Portugal foi-se fazendo através de profundos diálogos que transcendem o momento inaugurador de finais da década de 40, no qual normalmente situamos a sua eclosão nacional, para retomarem muitos dos universos significativos que foram pelos próprios considerados precursores, à luz de um espírito antológico tipicamente surrealista. As mais diretas conexões podem encontrar-se, por exemplo, numa certa sequência que vai do final do século XIX a Teixeira de Pascoaes e ao seu contemporâneo momento de Orpheu, conforme o Grupo Os Surrealistas deu a ver num documento inicialmente destinado a contrapor esse grupo ao Grupo Surrealista de Lisboa e que posteriormente foi apresentado por Cesariny como final de um manifesto.
Considera-se também merecedora de atenção, para uma reflexão completa sobre o assunto, a compreensão das perspectivas que fazem recuar a baliza das primeiras expressões intrinsecamente surrealistas em Portugal à exposição de 11 de Novembro de 1940 (apresentação de obras de António Pedro, de António Dacosta e de Pamela Boden) ou a 1942 (ano em que António Pedro editou o primeiro de dois números da revista Variante e publicou a novela Apenas uma Narrativa), e não descurando a presença de obras como a poesia de Edmundo Bettencourt (tardiamente recolhida em volume, em 1963) ou Um Homem de Barbas, de Manuel de Lima (1944).
A experiência surrealista conforme julgamos dever ser considerada depende de uma ideia de colectividade, mesmo quando a sua natureza reside na reunião de vontades muito diferentes entre si e sem um programa expresso e evidente, e da ligação consciente à dinâmica de um dado percurso contínuo do espírito humano que se alarga no tempo e no espaço e corresponde exemplarmente àquela que Ernesto Sampaio designou, de modo particularmente feliz, como “a única real tradição viva”.
A primeira grande faceta do Surrealismo português, independentemente da discussão relativa a quem terá chegado primeiro ao contacto com André Breton no sentido de se formar um grupo surrealista em Portugal, é justamente esta notória ruptura com todas as expressões culturais suas contemporâneas em Portugal. Luiz Pacheco assinala, no seu estilo muito próprio, a difícil situação em que se encontravam os surrealistas aquando do emergir do movimento: “tinham que lutar em duas frentes: a do regime e seus acólitos (PIDE, fachos) e a dos neo-realistões e seus próceres, já lançados na correria para o sucesso e as coroas, as massinhas (…). E não se davam como evangelistas a doutrinas multidões. Queriam seguir no seu exclusivo caminho e que os não chateassem” (Figuras, Figurantes e Figurões, Lisboa, O Independente, 2004, pp. 86-87).
Portanto, o Surrealismo surge como a solução mais favorável a problemas pré-existentes na consciência dos surrealistas portugueses, sobretudo a necessidade de encontrar uma forma de expressão radicalmente alternativa ao contexto cultural vigente. E é o facto de o Surrealismo ser entendido como uma solução para um determinado problema local muito persistente e entendido como resultante de diferentes formas de opressão que explica por que motivo desde os primeiros documentos dados a conhecer se manifesta a necessidade de uma independência absoluta mesmo em relação ao núcleo parisiense. Vejam-se as cartas recolhidas em 1974 por Cesariny e Cruzeiro Seixas com o título Contribuição ao registo de nascimento, existência e extinção do Grupo Surrealista de Lisboa. A 17 de Agosto de 1947, Alexandre O’Neill e António Domingues, numa carta que endereçam a Cesariny, na ocasião em Paris, assinam como “surréalistes au Portugal” dentro de um espírito de comunicação de experiências entre Portugal e França e portanto de aprendizagem de uma forma de articulação das características próprias a uma concepção pré-existente. Cerca de um mês depois, outra carta de O’Neill é ainda mais relevante por expor de forma muito clara e objectiva os princípios nortadores da postura dos surrealistas portugueses: “Pelas próprias razões super-realistas que, tu e eu, pelo menos, adoptámos, é de toda a conveniência que haja inteira autonomia em relação ao movimento francês, isto é: não negando a evidente «filiação» no «surréalisme» (daqui eu preferir «super-realismo» para nós) não nos comprometermos para além dos princípios que descobrimos e adoptamos” (As Mãos na Água, a Cabeça no Mar, Lisboa, Assírio & Alvim, pp. 294-295).
Deste conjunto de cartas esclarecedoras, destaca-se também a que Mário Cesariny enviou para assinalar a sua ruptura para com o Grupo Surrealista de Lisboa, dirigida a António Pedro, em que assume “que me desligo inteiramente do chamado Grupo Surrealista de Lisboa por não acreditar que seja Grupo e ainda menos que seja Surrealista” (pp. 308-309).
Convirá contudo não esquecer alguns textos significativos produzidos por autores ligados ao Grupo Surrealista de Lisboa. A 4 de Agosto de 1948, esse primeiro agrupamento dava a conhecer uma das suas primeiras expressões por ocasião da homenagem pública a Gomes Leal, um dos poetas mais frequentemente reivindicados como precursores. O texto contesta abertamente “uma versão (oficiosa) da Santa-Conversão do Poeta e uma contraversão (real) do Poeta então logrado e gágá” (Petrus, Os Modernistas Portugueses, volume III. Dos Independentes aos Surrealistas, Porto, C. E.P., 1962, p. 78). Alguns meses depois, em Janeiro de 1949, já com Cesariny à margem do conjunto, deu-se a Exposição Surrealista. O seu catálogo começava com um questionário no qual cada um elaborou uma justificação para a adesão ao Surrealismo, destacando-se em O’Neill o desejo de cisão face à convencionalidade e em António Pedro a necessidade de descobrir o Homem nas suas múltiplas camadas, mesmo as consideradas inconvenientes, mas também uma noção de individualidade marcada. Fernando Azevedo respondia dizendo que “tendo eu a realidade por autêntica, válidas me são as minhas transformações por via dela, e válidas as suas por via de mim”, Vespeira falava de “libertação poética-actividade interessada e dialéctica – fora de propósitos estético-literários ou moralístico-burocráticos”. (Os Modernistas Portugueses, volume III, pp. 82-86). Esta posição de individualidade face a qualquer tipo de normas é também exaltada no “Posfácio a uma Actuação Colectiva”, assinado por Pedro, em que se diz que “o acto de libertação será exclusivamente individual para quem se queira nú e não aspire apenas à substituição dum modelo por outro modelo, duma regra por outra regra de vestir” (p. 87). Além do próprio catálogo da exposição, integravam os chamados Cadernos Surrealistas, então dados à estampa, o mais conhecido poema surrealista de António Pedro – o Proto-poema da Serra d’Arga –, o singular exercício de colagens de Alexandre O’Neill – A Ampola Miraculosa –, a conferência A Razão Ardente, da búlgara Nora Mitrani, elemento de contacto entre o Grupo Surrealista de Lisboa e o grupo parisiense, e o surpreendente (dado que se tratava da primeira exposição de um grupo, o que parece não justificar a visão distanciada essencial à produção de um “balanço”) Balanço das Actividades Surrealistas em Portugal, de José-Augusto França, ainda mais discutível quando o crítico relaciona o atraso do aparecimento do Surrealismo em Portugal “à ausência de tradições duma imaginação criadora e duma inteligência e duma cultura atentas” entre nós (Balanço das Actividades Surrealistas em Portugal, Lisboa, [s.n.], 1948, p. 3).
Sublinhemos ainda três manifestações de membros deste primeiro grupo, entretanto dissolvido, de 1951 e de 1952: o texto com que abre a primeira recolha de poesia de Alexandre O’Neill, Tempo de Fantasmas (1951), no qual manifestou o afastamento do Surrealismo; o muito interessante texto “Do Surrealismo. Discussão de Cinco Pontos Afins”, que Fernando Azevedo publicou em 1952 na revista Tricórnio; e, finalmente, a entrevista com que Fernando Lemos, Fernando Azevedo e Vespeira se manifestaram no espaço da sua exposição conjunta de 1952, na qual, além de várias considerações importantes acerca da inovação do processo artístico que levavam a cabo em contraste com a monotonia quotidiana, sobressai o comentário de Vespeira: “O Grupo Surrealista de Lisboa foi coisa que se desfez por incompatibilidade de horários (…). E não só não pode haver dois relógios iguais como também nenhum deles pode acertar com a chamada «hora oficial»… É claro que um grupo não limita um movimento e o surrealismo está na liberdade de cada um de nós, na consciência poética que nos revelou” (“Pequeno escândalo no Chiado… A Arte não resolve problemas mas sugere problemas – dizem-nos três pintores surrealistas”, in Colóquio Artes, nº 94, 2ª série, 1992, p. 8).
Também no grupo dissidente emergiu a consciência da impossibilidade ou mesmo da absoluta carência de validade de uma efectiva actuação colectiva, afirmando-se a opção pela descoberta da heterodoxia particular de cada um, caminho aliás indispensável ao emergir de posicionamentos perante o Surrealismo tão diversos como os de António Maria Lisboa, Mário-Henrique Leiria e Pedro Oom, figuras essenciais para uma compreensão alargada do Surrealismo em Portugal, que dariam mesmo corpo à necessidade de uma ruptura, corporizada, quer em percursos radicalmente independentes, quer na constituição do discurso abjeccionista.
Em Novembro de 1949, um “Comunicado pelos surrealistas” concretiza um ataque ao Grupo Surrealista de Lisboa, acusando de irresponsabilidade, de esteticismo e de inoperância a sua actividade e excluindo do Surrealismo os alvos mais recorrentes, António Pedro, José-Augusto França e Cândido Costa Pinto. O mais interessante neste comunicado é verificar que os dissidentes, no mesmo momento em que procuram distinguir-se do primeiro grupo, acabam por abrir caminho à sua própria cisão, assumindo a sua posição como “anti-colectivista; anti-estábulo literário e respectivo cortejo de esperanças, crenças e sabores; anti-estética; anti-moral (religiosa e a outra)” (Os Modernistas Portugueses, volume III , p. 160). Este comunicado é ainda, sobretudo quando erguido ao estatuto de “manifesto” por Cesariny, que dele publica um excerto em A Intervenção Surrealista – e é de todo o interesse verificar o alcance do gesto crítico do organizador, ao omitir, quer as referências ao Grupo Surrealista de Lisboa, quer os traços que geraram a divergência interna quanto ao conteúdo dessas considerações – um revelador mapeamento das influências estéticas reivindicadas pelos dissidentes.
É notável o destaque dado à edição de 1947 dos Manifestos do Surrealismo, que assinala uma dada fase da evolução dos textos programáticos do movimento internacional e, sobretudo, destaca os mais consentâneos com o espírito e as necessidades sentidas em Portugal aquando da adopção do Surrealismo – os “Prolegómenos a Um Terceiro Manifesto do Surrealismo ou Não” e os significativos textos de 1947 e 1948, “Rupture Inaugurale” e “À Bas les Glapisseurs de Dieu”, contrários a qualquer incursão de ordem política e às religiões consagradas. Do mesmo modo, entre os contributos para a formação da identidade colectiva, destacam-se o balanço entre “uma vida de imaginação” e “um certo poder de repulsa e de obstinação” – que, como veremos, caracteriza os primórdios da concepção do abjeccionismo –, a supremacia da “vida particular e pública de cada um dos signatários” e um vasto conjunto de precursores que conjugam simbolicamente autores internacionais e portugueses e, sobretudo, dão o devido destaque a alguns divergentes do grupo bretoniano, em especial Antonin Artaud.
Elenco que conheceria sistemáticas versões alargadas, por exemplo no importante texto colectivo Afixação Proibida (1949), que, à semelhança de outros, marca também a adesão dos surrealistas dissidentes a um determinado imaginário do Poeta que associa componentes como a liberdade de pensamento de cariz libertino, a maldição derivada da incompreensão pública da sua actividade e o visionarismo das verdades que pronuncia.
Rapidamente, porém, depois de um período que incluiu algumas manifestações que se dedicaram a atacar figuras como Jorge de Sena, Adolfo Casais Monteiro ou Alexandre O’Neill e também a relativa polémica resultante dos debates no J.U.B.A. em Maio de 1949, em que se registaram outros momentos do conflito aberto entre os membros dos dois grupos e entre os dissidentes e a opinião pública em geral, começou a observar-se a tendência intrínseca para a cisão no seio do grupo dissidente. Uma outra metamorfose do discurso sobre o Surrealismo entre nós, que conduzirá à recusa da possibilidade de manifestações surrealistas colectivas em Portugal e mesmo aos sinais de ruptura relativamente ao próprio Surrealismo. Ainda em 1949, na “Carta ao Egito”, Pedro Oom, dirigindo-se a Egito Gonçalves, afirma que “o poeta é rebelde sem premeditação, demolidor de tudo e de si próprio”, justificando assim “que resultem contraditórios os termos de poeta católico, marxista, surrealista, existencialista, anarquista ou socialista, quando não se desconhece que só ao poeta é dado compreender o poeta” (A Intervenção Surrealista, pp. 98-99).
A própria conferência de António Maria Lisboa na Casa da Comarca de Arganil, “Erro Próprio”, em Março de 1950, assume um carácter essencialmente individual, mesmo que veiculando as perspectivas dos dissidentes quanto à sociedade sua contemporânea e incluindo a leitura de poemas de todos os membros do grupo. António Maria Lisboa ensaia nesta conferência, como aliás noutros textos, a sua vertente de pensador do Surrealismo enquanto movimento independente de qualquer contexto nacional, e portanto enquanto expressão filosófica e mundividência, muito à semelhança do que Ernesto Sampaio faria posteriormente, nos seus notáveis ensaios.
Abrindo um espaço particular para a Poesia na existência e na relação com a Realidade e com o espírito pragmático e utilitarista dominante, o autor de “Ossóptico” defende aqui os mais significativos pontos de vista do pensamento doutrinário surrealista em Portugal. Ao mesmo tempo que também entreabre a porta que conduzirá ao espírito abjeccionista: “Uma mudança de rumo em TODOS e em TUDO não pode deixar de começar em nós individualmente. «Até que ponto pode chegar um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?» – frase que poderemos intitular de central. E essa posição de abjecção, de desespero irresignável, leva-nos à única posição válida: – SOBREVIVER, mas sobreviver LIVRES, pois não existe sobrevivência na escravatura, mas na não aceitação desta. «Ser Livre» é possuir-se a capacidade de lutar contra as forças que nos contrariam, é não colaborar com elas” (António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim: 1995 34).
Este texto contribui também para o entendimento do tipo particular de posicionamento dos autores portugueses face ao Surrealismo. É, antes de mais nada, uma questão de escolha motivada por uma necessidade sentida anteriormente: “Dentro dos nomes genéricos, mais amplos e capazes de abrigar as personalidades mais díspares, foi até hoje o Surrealismo que me apareceu, pois os seus princípios, e portanto, denominadores comuns são poucos e indistintos (…). Mas, mesmo assim, depressa, posto a funcionar, se criaram as diversas cores Surrealistas (sem no entanto negar os seus princípios… claro!) e de tal forma, e tanto mais feroz, que o Movimento ou passa a ser a cauda dum Pontífice Inadmissível ou cai na ofensa e na querela inútil do EU SOU tu não és, a não ser que outro caminho se tenha adivinhado. E de facto assim foi: LIVRE, nem mesmo a um agrupamento de indivíduos LIVRES pode estar ligado Umbilicalmente” (pp. 37-38).
Em 1950, António Maria Lisboa expressa outras considerações muito relevantes nos espaço típico de bastidores da sua correspondência. Em Maio, recorre a uma frase emblemática: “Serei ou não surrealista de hoje para o futuro com a minha METACIÊNCIA e o NOSSO ABJECCIONISMO – eu não me pronunciarei sobre tal” (António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, p. 196). Assim, dá a entender que a Metaciência adoptada por si, enquanto pensador autónomo, está integrada num espírito comum – o Abjeccionismo – e portanto é uma das respostas possíveis à questão subjacente, “o que pode fazer um homem quando o ar é um vómito e nós seres abjectos”. É essa a imagem que Mário Cesariny fixará, em “Para uma Cronologia do Surrealismo Português”, ao referir-se a si e aos seus companheiros como “uma geração que despontava, descobria e repudiava, amava ou detestava a seu talante, e pronta, sempre, a decapitar qualquer chefe, por muito extraordinário ou amável que fosse” e ao defender que em Portugal o Surrealismo assumiu “três posições que, convergindo, divergem: o Amor, Mágico e Extra-Mundo, de António Maria Lisboa; o «Amor, Amor Humano», amor que «nos devolve tudo o que perdêssemos», de Mário Cesariny de Vasconcelos; e a impossibilidade de Amor, ou a Abjecção, de Pedro Oom” (As Mãos na Água, a Cabeça no Mar, pp. 271-273).
No “Comunicado dos Surrealistas Portugueses” (25 de Abril de 1950), enviado para Londres, e dirigido a Simon Watson Taylor como representação do Surrealismo em Portugal, o peso do contexto português é salientado de forma particularmente eloquente.
Com a morte de António Maria Lisboa, em 1953, que se segue à viagem de Cruzeiro Seixas para Tóquio em 1951, que o conduziria a uma interessante experiência e a uma prolífera actividade artística depois de se ficar em Angola, e ao assumir de rumos autónomos, mais ou menos ligados ao contexto surrealista, por parte de Mário-Henrique Leiria, Fernando Alves dos Santos, Carlos Eurico da Costa e Henrique Risques Pereira, ou seja, da quase totalidade do grupo dissidente, o Surrealismo em Portugal conhece uma nova metamorfose. É nesta fase que o Abjeccionismo conhecerá um relevante terreno de expansão, encontrando no seio dos herdeiros da acção dos dissidentes e no contexto sócio-político cada vez mais agressivo e castrador terreno fértil a uma atitude de maior desencanto, em que a consciência da necessidade de uma acção de sobrevivência resistente dá em alguns casos lugar a uma absoluta negação e aversão niilista à própria existência individual.
Estamos no momento em que se destacam outros nomes, que incluem resistentes de gerações anteriores, como Raul Leal, Mário Cesariny e Luiz Pacheco, e um amplo leque que inclui muitos dos mais interessantes criadores da segunda metade do século XX português, em todas as vertentes – alguns dos quais procurariam o devido refúgio no estrangeiro, concretizando projectos como o parisiense KWY – José Escada, João Vieira, Helder Macedo, José Manuel Simões, António José Forte, Ernesto Sampaio, Manuel de Castro, Herberto Helder, Virgílio Martinho ou o malogrado suicida João Rodrigues. O mítico Café Gelo foi o quartel general deste agrupamento marginal dedicado a uma violenta forma de contra-cultura. O resumo de Helder Macedo é significativo: “O que todos nós, os jovens do Café Gelo, tínhamos em comum era uma atitude de recusa, uma partilhada vontade de quebrar amarras, um só sabermos o que não queríamos para deixar um espaço livre para o que pudéssemos talvez querer. (…). Prolongamentos surrealistas numa nova geração? Sim, não, e também. Era sobretudo a expressão de um grande nojo partilhado em modos convergentes de o exprimirmos (“Raposa branca num campo de neve”, in Relâmpago, nº 26, 2010, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava, p. 140).
Este dossier procura homenagear todo este notável percurso, percorrendo alguns dos autores e momentos significativos deste percurso, longe, porém, de esgotar o muito que poderá (e renovadamente) ser dito a respeito da presença fundadora do Surrealismo em Portugal. Que se foi alargando e dimensionando no esplendor de uma continuidade que ultrapassa as fronteiras limitadas do engavetamento e permite que o Surrealismo, cujo espírito se pronunciou através de um leque notável de personalidades muito antes de ter sido por Apollinaire e depois po Breton designado com o termo com que ainda hoje se designa, continue vivo naqueles que se reconhecem pelo menos em parte da experiência para que abriu caminho, que ajudou a definir e a conquistar.
A Intervenção Surrealista
P. 9
“Nenhum movimento como o surrealismo propôs tanto, a um só tempo, uma real cidadania para todos e uma real liberdade de cada um consigo. Síntese destinada aos maiores embates porque é dos tempos e da sua política não serem do tempo único em que a poesia se coloca, é no entanto, é sobretudo ela que dá a maior gravidade à barca lançada por Breton rumo ao mar interior que move o homem: mesmo em pleno mergulho, o propósito é ainda redescobrir o sol, mesmo em pleno delírio de interpretação o rumo é a Cidade, ainda que para tocar-lhe o coração seja preciso destruir-lhe as pedras”.
“Neste sentido, tem a maior justeza a censura de António Maria Lisboa aos surrealistas: nenhuma poética abraçou tão estreitamente a realidade como esta que se dizia prestes a dispensá-la. Certo, também, que o surrealismo apenas transformou a realidade para fazer dela a sua cama de amor, seu leito de esperanças provadas na praça pública. Com o surrealismo, a poesia fez-se olhos e ouvidos, acto testemunhado. O que até então sabíamos da poesia como razão de estado (Hugo, a poesia revolucionária) ou razão fora dele (Nerval, Blake, etc.) torna-se obsoleto à chegada destes suicidados cujo primeiro ímpeto é despir-se e despir para chegarem completos a um universo pela primeira vez identificado”.
11
“Continuam trocados os que pensam (…): a) que o surrealismo é uma doutrina, ou a expressão de um tempo, ultrapassada (…) b) que, dentro dele, o nosso, ou o meu propósito de adesão se confinaria à letra do movimento e não aos seus momentos de translação exemplares. Nunca nos propusemos repetir num tempo e num espaço «nossos» a teoria do surrealismo nascente, a não ser na medida em que nascíamos nele”.
P. 13-14
“Precisamente: é num homem banido pelos surrealistas, Antonin Artaud, e num homem de inocência e de ciência, por petição de princípio afastado de todos os partidários, Gaston Bachelard, que o surrealismo aponta a sua vanguarda: um, a provada possibilidade de vida mágica, a redescoberta dela; o outro o esboço, pelo «conhecimento aproximado» de uma possível síntese futura (…)”.
P 87
“Só aos sistemas de pensamento idealista convém afixar uma realidade estável, completa, um «real» impossível de ser acrescentado, destruído ou movido pela sua própria presença. Só aos artistas reaccionários (políticos ou não políticos) deve ser grata a ideia de compartimentos estanques no real das coisas (na presença das coisas), tal como só aos interpretativos de terceira deve ser fácil descobrir uma realidade que a si própria se negue, um presente sem passado, um passado sem futuro, e em tudo isso um futuro risonho.
Tem-se falado muito, em Portugal, de realismo, de novo-realismo, processos de comunicação que, na literatura e na arte, defendem uma certa realidade fenomenal das coisas, realidade inegável, de tão evidente ser… Não sabemos porém porque não assentaria com igual propriedade nessa realidade fenomenal qualquer outra corrente que buscasse o irrealismo e que para tal assim se rotulasse. Tal como a morte é um processo vivo, uma inegável presença da vida, tal como o sonho, não podendo existir no vácuo para onde gostariam de empurrá-lo alguns suínos, é uma mola real da existência // dita prática, assim toda a afirmação de realidade pressupõe, mais, apressa a afirmação de uma irrealidade, exasperada ou não.
Não vamos nós, surrealistas, definir e separar real e irreal, passado e futuro, sonho e realidade. Um trabalho diametralmente oposto a este poderia ter sido, além da nossa, a tarefa de um realismo efectivamente objectivo que tivesse aspirado a englobar os múltiplos cambiantes aspectos da realidade enfrentada. Tal não sucedeu, porém, em Portugal. Sucedeu antes, sistematicamente, um desvio, ou limitação simplista, que conferiu e confere ainda foros de realismo (…) a uma literatura e a uma arte naturalistas ou, quando muito, supernaturalistas, dadas como avançadas só porque reflectem demonstrativamente certos dados da fenomenologia política do tempo. Em vez de realista, o «novo-realismo» foi (quer continuar a sê-lo) naturalismo, e não do melhor. O nosso abandono do neo-realismo deve-se, inicialmente, a esta constatação (…) Um naturalismo sempre próximo do simbólico, do estático na imagem e na ideia e que, apesar de novo, se grita recheado das piores contradições românticas, do mais estelar carácter pré-hegeliano, não o achámos real, não o achámos actual, não o achámos poético”.
P. 89
“Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna. É imaginação o livre exercício do espírito que servindo-se de um ou mais aspectos do «real» passa lenta ou rapidamente ao extremo limite deste para alcançar, pouco importa em que margens, o objecto real de um irreal conquistado no espírito. Acelerar este processo levando-o a um ponto em que se torne impossível falar de real e irreal (negação da negação interior), produzir um objecto onde tudo, simultaneamente, tem as propriedades da verdade e do erro, da razão e da loucura, do que foi encontrão e do que foi perdido, é transformar a realidade depois de a ter transtornado –é fixar, violentamente, a realidade «presente», um novo real poético (uno). Esse real poético dá-o o surrealismo, reunindo, até hoje insuperavelmente, Apolo e Dionisos, Vénus Urânia e Vénus Anadiómena, Ocultismo e Magia”.
“A acção surrealista tende constantemente, como no acto amoroso, a fundir num só total delirante, «explosivo-fixo», «solene-circunstancial», todas as presenças, ligando estreitamente a coisa a possuir e os meios de possui-la numa viagem que só se termina quando ardeu por completo não apenas o carvão que movia a locomotiva, mas a locomotiva, a estação de chegada, os raills e os passageiros”.
Final de um Manifesto (157)
“A (nossa) posição surrealista decorre:
dos «Manifestos do Surrealismo» na edição Sagittaire, 1947;
dos «Prolegómenos a Um Terceiro Manifesto do Surrealismo ou Não» da mesma edição;
das declarações do Grupo em França em 1947 e 1948: «Rupture Inaugurale» «Á Bas les Glapisseurs de Dieus»;
das comunicações de 6 de Maio deste ano, no Jardim Universitário de Belas-Artes, de Lisboa;
de uma vida de imaginação;
de um certo poder de repulsa e de obstinação;
da vida particular e pública de cada um dos signatários;
da obra colectiva de Segismund Freud, Mário de Sá-Carneiro, Arhur Rimbaud, Guillaume Apollinaire, Antonin Artaud, Heraclito, Hermes, Vladimir Ilitch, Novalis –a loucura, a sabedoria, a magia, a poesia;
das alucinações de Raul Brandão, Gomes Leal e Ângelo de Lima;
do assassino de Fernando Pessoa: Ricardo Reis;
do factor Cheval;
dos picto-poemas de Brauner, Matta, Herold, Enst, Duchamp, etc.”
Para bem esclarecer as gentes que ainda estão à espera… (p. 166)
As Mãos na Água
37
E há dois mil anos que a história moral do Ocidente marca solenes encontros com o Cristianismo, acesas as fogueiras do Bem e do Mal, acentuado o carácter de divisão entre vida e morte, autoridade e liberdade, regressão e desejo. Serão então os portugueses pessoas antipáticas à história da metafísica?
(…) ao que somam a coragem de quebrar amarras à de partir sozinhos, mas // partir realmente, em demanda da sua realização. As estradas estão compridas, todos nos dizem que o mundo é redondo – ainda há dias era quadrado –, a cada passo as punições mostram os dentes, passam doidos com togas de juízes. E já não basta, para confundir o poeta, o medo animal dos que sem armas se anicham, sem estrela se dissolvem na vasta massa anónima, tantos e tantos os que dizem querer ser (apenas) Os Outros, nada mais que Os Outros, os que ainda Não Estão, ou, já chegados, não têm nome próprio (…) Não é só esse entrelaçado de figuras rezando dia e noite à deusa Quantidade, incapazes de agir em caso de incêndio se só lá estiverem dois (devemos pedir perdão e chorar muito se descoberta tem todo a ver com individuação?), nem é ele o maior escolho. Deve o poeta corar ainda com a denúncia que é feita à sua solidão pelo acto policíado dos que não são nenhuns, porém sempre exigiram que o poeta acompanhe, que o poeta não estrague, que o poeta coincida, seja, por um lado, com os termos legais do inferno a que assiste, seja, por outro, com o que lhe apresentam em matéria de infernos para o futuro. Então o escolho é duplo, a vida um acumular de heroísmos (ou traições, conforme o hemisfério), com deuses de ódio e de morte bem à vista.
38-39: menciona o Don Juan de Mozart e o modo como a acção satânica do Burlador dá origem à aparição do Comendador, que obriga à revelação dos Infernos
39
Mas entenda-se que nisto de palavras, caixotes e políticas, há polícia dos homens e polícia dos deuses. (…) Infelizmente, nem todas as consciências se apercebem da diferença que consta das duas organizações, nem, muito menos, de que o poeta só tem a ver com a política dos deuses. Por fim, assimilada grande confusão entre indivíduo, lei da selva, miséria, deuses, polícia, e bondade, há pessoas que são presas pela polícia dos homens por desafiarem as polícias dos deuses – ou até mesmo só por colaborar com elas. Rivalidades. Perante tão grande confusão, pensámos em dar ao homem de boa fé possibilidades de uma destrinça // mínima no modo por que funcionam as duas polícias. Em simples, despretensiosa contribuição, creio poder dizer que a polícia dos deuses é um negócio de almas, enquanto que a dos homens só muito raramente vai além dos pulsos.
Sobre «realismo e realidade na poesia contemporânea» (1963)
106
“Se, por «realismo e realidade na literatura contemporânea» se procura definir o novo realismo e a nova realidade que, de alguma maneira, são susceptíveis de caracterizar a literatura actual, não tem dúvida que essa realidade é uma realidade surrealista. Podereis dizer-me que, em 1963, duas vezes quinze anos depois da perturbação, moral e outra, causada pelo aparecimento do surrealismo, pouca coisa resta para surrealizar e, em certo sentido, será justa a observação”.
107
“Embora: mesmo prestadas as devidas honras à cronologia e à história, o surrealismo permanece como a expressão mais jovem da esperança e da dignidade de uma literatura do nosso tempo. A sua radiosa juventude não nos vem da administração de uma técnica, ultrapassada ou não, da escrita. Ela atinge-nos por uma vontade de revolução que visa apropriar-se de toda a herança nobre do passado transmitindo-a à pureza do futuro”.
“Nos nossos dias, vemos a literatura servir o homem na sua concreta individualidade tornada feroz, ou servir essa ideia, não menos feroz, do homem, que é o Estado. Digo que entre o surrealismo e a literatura realista socialista se trava o verdadeiro combate, nos seus termos mais claros, interior à consciência contemporânea. Ambos emergem de uma disciplina que por vezes exalta o assassinato por exercício do amor do homem. Por exercício de moralidade. Mas se alguns surrealistas sentem a vocação de se deixar matar –como Zavis Kalandra, fuzilado em Praga, em 1950 –alguns realistas são mais inclinados a deixar matar os outros –Paul Éluard, no mesmo ano, em Paris”.
P. 96
“Volto ao surrealismo «escrito» e ao seu anti-irmão, o realismo socialista. Penso que, de todos os males, o pior viria ainda de uma acomodação de ambos os lados da barricada”.
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“A realidade parcelada, metodologicamente fragmentada, é o próprio do cientista, não do artista. Sobretudo no nosso tempo, em que se vê perdida para o sábio a unicidade do conhecimento, a poesia e a arte, a cada incursão sua, dão-nos uma unidade que parece a única a manter-se em matéria”.
(…) a liberdade não é uma coisa que se dá, ou se recebe, como um presente de Natal! A liberdade é algo que se arranca a quem, homem, coisa, ou ideia, traz o hábito do carrasco. Não existe homem livre senão na conquista da liberdade.
Do Surrealismo e da pintura em 1967
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“Para o pintor que vai ao surrealismo a única exigência será uma liberdade cada vez maior, entendendo-se por liberdade a realização da necessidade e mais certa relação de incerteza (…) A maneira de atingir tal continente será toda e nenhuma, a luz que dele irradia, cada vez que é tocado, é a única questão. Mais: tal continente é o homem e tal luz não será para fixar-se em si mesma, irradiará para landes ainda obscuras, e alcançadas essas, para o imprevisível conhecimento a vir. Parece um exposto de sábio positivista, mas a diferença profunda // e irredutível está em que o poético joga a vida ou perece no não-poético, o seu instrumento é tudo o que entender se possa por exercício do desejo e da imaginação”.
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“Vê-se o que isto perturbou e perturba ainda a crítica profissional bem como os mais inesperados discípulos da estrela teologal que a arte ainda hoje deveria filmar. Como também certo público por demais levado a ser apenas público quando o que se propõe é um acto múltiplo entre aquilo que olha e aquilo que é olhado. Deste lado, o homem das galerias continua a manter a atitude do adorador no templo, em vez de olhar para os quadros como uma obra-de-arte deve poder olhar outra”.
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“Na verdade, estão em causa factores que em algo ultrapassam a grandeza do personagem em cena. Se meditamos no carácter e no movimento próprios da cultura francesa, a que o surrealismo abre uma ferida que não mais deixará de sangrar, com o seu ímpeto de anticultura e um Rimbaud ao largo (…) determinamos uma inquirição sempre analítica, nunca de síntese, e compreendemos o favor imenso, a enorme mesa de dissecação montada por miríades de poetas surrealistas à entrada de uma realidade a que se acedia ou se dizia que se ultrapassava pela explosão do princípio da realidade e não, nunca, jamais, pela aceitação da não-realidade”.
P. 128-129
“O surrealismo, pelo menos nas mãos de Breton, nunca foi uma maneira de fazer, foi sempre uma potência do desejo que mal topa feito o seu objecto logo lhe demanda outra profundidade. Não se explicam de outro modo as paixões electivas desencadeadas em torno de pintores e escritores que pouco depois merecem glacial correctivo”.
REVISTA TRIPLOV
série gótica