De repente o espaço é de chumbo

MARIA MARTINS (1894-1973) BRASIL


 

Maria Martins. Prometheus II ou Brûlant de ce qu’il brûle 1948

 

Maria Martins . Prometheus I, 1949

 

I

Eu sei que minhas Deusas e sei que meus Monstros

sempre te parecerão sensuais e bárbaros.

Eu sei que você gostaria ver reinar em minhas mãos

a medida imutável dos elos eternos.

 

Você esquece

que eu sou dos trópicos, e de mais longe vinda,

você esquece tudo isso, que de mais longe vindo

se mistura ainda nas minhas veias,

ao sangue queimado do Astro equatorial,

o orgulho bravio do Espanhol vencido

raptando sua vitória ao Mouro perdido de êxtase;

– a aventura portuguesa temerário destino,

abdicando do ouro e do poder no braço de Moema

– a arrogância holandesa, a inquietude irlandesa,

uma e outra submissas

ao imperioso amor, que dispõe dos homens

Orpheus (1952), de Maria Martins

 

O impossível (1940), de Maria Martins

 

II

Eu sou o meio dia pleno da noite tropical.

Tudo é calma e esplendor, nenhuma folha se move.

Nenhuma falha rompe a eternidade do dia,

um mesmo torpor, angustiante e mudo,

das cores do pássaro ao odor da flor

tece o mesmo sonho.

E o jaguar todo lânguido de doçura,

cede à embriaguez do sono.

Só o transe efêmero de uma cigarra

corta a morna espessura do silêncio macio.

Maria Martins ₢ Saudade, 1945

 

Maria Martins ₢ A Soma de Nossos Dias, 1954-55

 

III

De repente o espaço é de chumbo.

 

Palpitante e bravio desperta a floresta

num arrepio de espera e uma onda de felicidade

e de repente sobe um sopro de loucura,

e eis o vento correndo em altiva frenesia,

o vento que canta e uiva,

a grande canção de força e de desejo,

o vento que ruge e ralha, transbordante

e desesperado grita

seu monstruoso amor num tumulto ofegante.

 

E durante longas horas as folhas

e as árvores se entregam

se afastam e se entregam, se afastam e se entregam,

até o bom cansaço da união vivida…

Então, tudo volta à tranquilidade primeira

reengendrada dolorosamente

na conquista da plenitude.

E a vida, inocente saciada,

a terra fresca descansa,

a terra novamente Virgem e misteriosa e fechada

como aquela que a Vida não ousaria atormentar.

[Texto gravado em chapas de cobre, originalmente escrito em francês, Nova York, 1946.]

Maria Martins

 


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21 Mulheres Surrealistas

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019

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