RUY VENTURA
PESSOA E PASCOAES

Fernando Pessoa

a rosa impede

a corrupção do ouro

e da madeira.

 

entalha na língua

um brilho negro

e, nos olhos,

filamentos de sede

que atravessam

o horizonte.

 

o relâmpago

multiplicou a eternidade.

semeou sobre o campo

fragmentos de árvore

que incendiaram

a colheita.

 

a voz ausentou-nos

do medo. o mar

(semeado de ilhas)

rebentou a vidraça

inundando

os subterrâneos da cidade.

*****

desfibraste a carne,

as folhas de madeira,

para escreveres no corpo

a força da nascente.

 

(só não quiseste ler

a epístola da tua sede.)

 

as raízes rebentaram

no horizonte. a chuva

afundou o navio.

 

destroços brilham

no esplendor do lume,

procurando uma cinza

que não existe.

 

a rosa impede

a combustão do ouro

e da madeira.

 

negro, o brilho

entalha na língua

o calor da chama

 

sobre o campo.

*****

fragmentos de morte

iluminam a cidade.

os espinhos florescem

sobre o rosto –

flamas sem tempo

que o tempo retomou.

 

a cinza

lava-nos do mundo.

a estátua

(sem olhos)

divide a alma inteira.

 

nada nos esconde

do incêndio.

 

a roseira arde

no centro do mundo.

deixa no largo

outras línguas

de fogo

que o sangue não soube dividir.

 

longe de tudo,

um vulto alimenta-se

de sombras.

projecta na caverna

o som das asas

 

enquanto a chuva

se infiltra nas paredes.

Teixeira de Pascoaes

há veias sobre as mãos

quando o sangue

desce à nascente.

a dor atravessa a paisagem.

escava no ventre

o espaço necessário

para desenhar o esplendor

das sombras.

 

a montanha

desfaz o poente.

reúne num só lugar

tempo e loucura,

sonho e vastidão -

 

para que a dança

possa dilatar

os alicerces do fogo

que devora as estações.

 

a árvore (seca)

reverdece a garganta.

disseca sobre a mesa

um corpo vivo

(sem chumbo nas unhas

e no cabelo.)

 

a transfusão

devolve o nascimento

(entre os vincos da fotografia).

a casa (sem nome)

alimenta o braço

de quem procura (no mar?)

a vida inteira.

 

os olhos acompanham

a tristeza de um tempo que parte.

as mãos incendeiam a estrada

para que a cinza permaneça

 

nesta voz, fertilizando

a noite e a sementeira.