Não é com ingenuidade que se coloca num volume com cerca de 500 páginas
o subtítulo “Contraantologia”. Nem é com inocência que um dos primeiros
poemas incluídos nesse tomo afirma que “ou se gosta / ou não se gosta”,
concluindo – antes dum peremptório “eu” – ser “impossível determinar o
conteúdo deste livro” e acabando por sugerir: “podes chamar-lhe poesia,
podes chamar-lhe nevoeiro”. Os ágrafos – a quem este trabalho monumental
do poeta mineiro Wilmar Silva é dedicado – terão certamente uma palavra
a dizer, agentes de um trabalho de dissolução da autoria, que (num mais
ou menos longo e mais ou menos complexo processo de produtransmissão)
conduziu sempre ao desaparecimento da paternidade/maternidade do texto e
ao seu anonimato. Também não será inconsciente a colocação na capa do
primeiro volume da Portuguesia uma reminiscência do primeiro símbolo
nacional dos falantes de língua portuguesa – cruz azul sobre prata –, a
lembrar talvez os propósitos deste projecto: descer às raízes da língua
e da sua palavra para aí descobrir a autenticidade poética de um vasto
mundo, transversal a vários continentes.
*
Afirmar que
uma antologia é o seu contrário exige resultados consequentes.
Contrariar hábitos instalados – quase nunca justificados e nem sempre
justificáveis – obriga a uma responsabilidade acrescida.
Convenhamos.
Há antologias de poemas e há antologias de poetas. Às primeiras
interessa a palavra, servida estética e/ou filosoficamente – os poemas,
tornados quase anónimos, neles buscando e apresentando valores
intrínsecos. Nas segundas, são os autores que determinam tudo ou quase
tudo – mais como ícones do que como índices, para utilizar os termos
felizes de E. M. Melo e Castro –, enquanto figuras históricas,
localizadas no espaço e/ou no tempo, rodeadas ou não de notoriedade
pública. São olhares completamente diferentes sobre o texto: num caso,
interessa a Poesia; no outro, a Literatura, a sua História e/ou a sua
Sociologia. As primeiras (independentemente do seu nível de
conseguimento estético e da capacidade de organização do antologiador)
serão sempre obras de arte, na sua composição entrelaçada, entrançada.
As segundas só terão interesse enquanto objectos de estudo histórico,
quando a elas preside um desejo de registo, de homenagem ou de
afirmação, a vontade recuperar uma memória perdida ou o propósito de
analisar o tratamento dado a um determinado tema num tempo mais ou menos
alargado; a consideração artística da antologia dificilmente terá em
conta o livro inteiro, mas cada um dos poemas, enquanto objecto de Arte
individual.
Wilmar Silva,
ao organizar a sua Portuguesia, escolheu – quanto a mim – o melhor
caminho. Deixando para o final do livro a indicação da autoria dos
poemas irmanados ao longo de mais de quatro centenas de páginas,
colocou-se ao serviço da palavra – logo, da Poesia – transformando o seu
trabalho numa obra de Arte que nos obriga a uma aproximação global da
sequência, seja qual for a nossa opinião sobre cada um dos textos
escolhidos. Colocados como estão, os 484 poemas apresentam mesmo uma
linha que tem tanto de narrativa quanto de ensaio – a requerer uma
leitura múltipla, unificada e unificante.
Esta
“contraantologia” corresponde, portanto, a uma abordagem conceptual da
poesia que se faz hoje em Portugal, no Brasil (Minas Gerais), em Cabo
Verde, Guiné-Bissau e Timor-Leste. Valorizando a palavra, opõe-se à
valorização do autor enquanto ícone de fama e de notoriedade, quantas
vezes sem capacidade fazedora correspondente, não conseguindo sair da
mera produção epigonal, inofensiva.
*
Um livro como este tem a vantagem da surpresa, se nos deixarmos levar
pela proposta do seu edificador. O jogo estruturado por Wilmar Silva não
facilita a identificação do autor do poema lido, embora a permita. É
essa organização que, no entanto, valoriza a obra. Deslumbramo-nos com
poemas de autores que desconhecíamos, desgostamo-nos com textos de
poetas estimados, confirmamos adesões ou exclusões, percebemos quanto
trabalhou o poeta de Yguarani para encontrar na produção de um
determinado nome algo que não fosse indigno.
*
Ao ler uma e outra vez este grosso volume – acompanhado por um dvd em
que os poemas surgem ditos pelos seus autores empíricos – tentei não
falsear a proposta desta obra de Arte. Fui lendo e apontando os códigos
alfanuméricos que ladeiam cada poema, para no final estabelecer a minha
lista de preferências – não de poetas, mas de poemas. Não me custa
afirmar que li com muito gosto os textos de Adolfo Maurício Pereira,
Adriano Menezes, Alexandre Nave, Ana B., Ana Viana, André Sebastião,
Arménio Vieira, Daniel Bilac, E. M. Melo e Castro, Edimilson de Almeida
Pereira, Fabrício Marques, Fernando Aguiar, Fernando Fábio Fiorese
Furtado, Guido Bilharinho, Iacyr Anderson Freitas, João Miguel
Henriques, João Rasteiro, Joaquim Palmeira, Jorge Melícias, José Luís
Peixoto, José Rui Teixeira, Luiz Edmundo Alves, Márcio Almeida, Márcio
Catunda, Milton César Pontes, Narciso Durães, Nuno Rebocho, Pedro Mexia,
Prisca Agustoni, Rui Costa, Rui Lage, Tânia Alice, Valter Hugo Mãe,
Wagner Moreira – entre outros que não menciono aqui para não alongar a
lista.
Nuns casos confirmei preferências antigas; noutros, surpreendi-me a
apreciar poemas de autores cuja obra pouco considero; especialmente
saborosas foram as descobertas de poéticas completamente desconhecidas,
inclusive de autores residentes dentro do rectângulo ibérico que é
Portugal.
*
Há exclusões “lamentáveis” – como diria um crítico sem boas intenções ou
um poeta despeitado? Ausências, sim. Exclusões, não, muito menos
“lamentáveis”. Wilmar Silva pretende editar outros volumes da sua
Portuguesia em que muitos ausentes se farão presentes, numa demanda que
lhe ocupará a vida inteira – conforme confidenciou no encontro ocorrido
em Julho passado, no Centro de Estudos Camilianos, em Seide. Quanta
gente precisa de cartografar no oceano da poesia escrita em língua
portuguesa! O esforço valerá a pena, certos estando de que continuará a
contrantologiar, isto é, a valorizar os poemas – porque a Poesia se faz
com eles, como afirmou Ruy Belo –, relegando os poetas para o lugar
discreto que lhes compete.
*
NOTA: Portuguesia é editada pela Anome Livros, sediada em Belo Horizonte
(Minas Gerais, Brasil). Página:
www.anomelivros.com.br Endereço electrónico:
anomelivros@anomelivros.com.br
TriploV, 2.10.09 |
RUY VENTURA (Portalegre, 1973) é professor na península da Arrábida, a trinta quilómetros de Lisboa. Publicou, em poesia, Arquitectura do Silêncio (Lisboa, 2000; Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores), sete capítulos do mundo (Lisboa, 2003), Assim se deixa uma casa (Coimbra, 2003), Um pouco mais sobre a cidade (Villanueva de la Serena, 2004) e O lugar, a imagem (Badajoz, 2006); em 2009 editará o original Chave de ignição, com edição simultânea em Portugal (edições Cosmorama) e em Espanha (Littera Libros). Organizou as antologias Poetas e Escritores da Serra de São Mamede (Vila Nova de Famalicão, 2002), Contos e Lendas da Serra de São Mamede (Almada, 2005), Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (na revista Callipole, nº 13, Vila Viçosa, 2005) e o livro José do Carmo Francisco, uma aproximação (Almada, 2005). Traduziu a antologia 20 Poetas Espanhóis do Século XX (Coimbra, 2003) e os livros de poemas Dias, Fumo, de Antonio Sáez Delgado (Coimbra, 2003), Jola, de Ángel Campos Pámpano (Badajoz, 2003) e A Árvore-das-Borboletas, de Anton van Wilderode (Badajoz, 2003). É colaborador de várias revistas nacionais e estrangeiras, nomeadamente espanholas, brasileiras e americanas. Poemas e/ou livros seus estão traduzidos em castelhano, francês, inglês e alemão. Como ensaísta, tem escrito sobre Poesia Contemporânea, Literatura Tradicional e/ou Oral e Toponímia.
Coordena o blogue Estrada do Alicerce (www.alicerces1.blogspot.com).
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