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DIÁLOGO INCESSANTE
Ruy Ventura conversa com Wilmar Silva

Não mais esquecerei o nosso almoço no Portinho da Arrábida. Depois de uma sessão de leitura de poemas e duma conversa com gravação em vídeo, depois da troca de livros – dele recebi um belíssimo e invulgar Estilhaços no Lago de Púrpura, assinado por “Joaquim Palmeira” em homenagem ao avô (quanto o compreendo… - a expressão ressuscita), ficámos por ali a degustar palavras e alimentos, lançando pontes e passadiços entre nós, entre Portugal e o Brasil. A conversa que agora publico nasceu já posterior. Surgida da necessidade de prolongar um diálogo – serve também para dar a conhecer um poeta cujas linhas de fuga merecem a nossa visita.
Estilhaços no Lago de Púrpura, assinado por “Joaquim Palmeira”

1. Está em fase de conclusão, tanto quanto sei, o teu projecto de cartografia do território poético de língua portuguesa. Que balanço fazes dessa viagem?

É uma das mais belas viagens da minha vida. Imagine, Ruy, trabalhar com a poesia que é a beleza de todas as belezas e é o objeto de prazer de toda a minha vida desde sempre. A exemplo da minha poesia que tem como provocação a sinergia da língua, “Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua, antropologia de uma poética” é um projeto que tem como liberdade pesquisar as diferentes vozes poéticas contemporâneas do mundo português. Pensando em Minas Gerais, Portugal, Guiné-Bissau e Cabo Verde, primeiros lugares objeto de meu olhar, mais de 100 (cem) poetas se tornaram co-autores da mais vasta antologia de poesia em língua portuguesa, em processo de leitura e escolha de poemas.

2. Saramago admitiu há poucos dias que só ganhou o Nobel porque era conhecido, quando outros mais importantes do que ele ficaram para trás, porque não tinham marketing a apoiá-los. Que pensas da posteridade literária?

Penso que enquanto eu estiver vivo trabalharei com poesia, porque a poesia é a minha vida e o meu mundo. Nasci no interior de Minas Gerais, sou filho de lavradores que não distinguem a diferença entre o a e o z, então, o que desejo é saúde para amanhecer com a boca no sol para continuar fazendo aquilo que é tão imaterial que é meu material de existência. Claro que eu não sou um ingênuo ao ponto de pensar que marketing não existe. Eu acredito na vida e em tudo que nasce da vida. Mas acredito que é preciso, urgente, acreditar que somos diferentes porque somos plurais, e porque somos plurais somos a esfera de um coletivo que tem os infinitos aros de “eus”.

3. Entre os autores que entrevistaste houve nomes conhecidos e outros quase desconhecidos. Pensas que os primeiros correspondem a uma real importância ou haverá inversão de critérios?

Sim, haverá inversão em todos os sentidos, porque as minhas luas não são as mesmas luas de ninguém. E é também por acreditar na existência de outros poetas e outras verdades que passei a trabalhar em projetos que tem como natureza o entrecruzar de linguagens.

4. Em comparação com outras poéticas existentes no mundo, que pensas do peso da poesia escrita em língua portuguesa no nosso tempo?

Não conheço o suficiente as outras poéticas existentes no mundo, mas posso afirmar que a poesia que se produz com a língua portuguesa tem poéticas de invenção. E também se faz poética de invenção mesmo quando é verbal. A poesia é a origem da língua e a língua portuguesa são as muitas línguas portuguesas. E a poesia é uma molécula que coloca o homem diante dos seus problemas e diante do próprio homem multiplicado em mineral, vegetal, animal.

5. Nota-se um crescente interesse mútuo entre portugueses e brasileiros no que respeita à cultura. Pensas que a estratégia seguida é a adequada ou seria desejável outra?

Acredito que é preciso entender o que é política, o que é educação, o que é cultura. Ninguém é apolítico. Educação não é o mesmo que cultura. Cultura não é o mesmo que educação. Compete, sim, aos poderes públicos provocar a emancipação da cidadania. Mas compete a todos entender que somos a semente de um girassol que é o cosmos. E o araçá azul pode nascer entre gabirobas. O cobra norato entre selvagens. O catatau entre bichos preguiça. O discurso da difamação do poeta entre concretos. Galáxias entre verbivocovisuais. Poema sujo fora do Maranhão. Paranóia na Paulicéia. Desvairar é um substantivo dos mais verbais. Eu faço. Tu fazes. Ele faz. Nós fazemos. Vós fazeis. Eles fazem. Vamos conjugar os verbos em nós. E aprenderemos que somos aquilo que pensamos. E sonhamos. Desde que haja trabalho e se persista.

Joaquim Palmeira

6. Que poetas brasileiros precisam os portugueses conhecer melhor? E que portugueses seria preciso divulgar mais no Brasil?

Quase todos os poetas conhecidos ou não em Portugal são desconhecidos no Brasil. E quase todos os poetas conhecidos ou não no Brasil são desconhecidos em Portugal. O problema não é apenas entre Brasil e Portugal e Portugal e Brasil. “Portuguesia” é uma política de atitude de chegada ao território dos problemas da poesia. Poesia e poéticas. Poesia e linguagens. Poesia e mercado. Poesia e atitude de poetas. Poesia e atitude de editores entre poetas. Participarei em novembro de 2008 do Fórum das Letras em Ouro Preto com Luís Serguilha e Jorge Melícias onde a provocação é puxar o poeta de suas margens para o centro das atitudes.

7. Há poucos meses publicou-se em Portugal uma antologia intitulada "Oiro de Minas". Consideras que a poesia mineira tem mesmo um carácter central no teu país?

A antologia “Oiro de Minas a nova poesia das Gerais” apresenta 10 (dez) autores em atividade no Brasil. É claro que existem muitos outros poetas em Minas Gerais e no Brasil. E poetas de altas voltagens que dariam para fazer mais que 10 (dez) “Oiro de Minas” ou de Goiás, e talvez do Triângulo que é um estado que não existe. A poeta Prisca Agustoni mostrou um dos olhos do girassol.

8. O acordo ortográfico tem causado muita polémica em Portugal, nomeadamente porque muitos o consideram pouco explícito e revelador de pouco respeito pela diversidade da língua. Que pensas disto? Achas que o acordo irá melhorar as relações entre os povos de língua portuguesa?

Nenhuma língua existe parada em si mesma. As línguas vivem em estado de sexo. Metamorfose. Liberdade. Fotossíntese. Mas nem um acordo mudaria a lingüística de Patativa do Assaré. Porque o Brasil inventou uma dicção friccionada pelo vapor dos trópicos. Mas eu sou a favor do acordo ortográfico porque a supremacia de uma língua se deve ao poder que o povo de uma língua tem diante do mundo. Por que não se fala quase nada de guarani no Brasil? Por que o latim perdeu sua hegemonia?

9. Na tua poesia, nomeadamente em "Estilhaços no Lago de Púrpura", nota-se um ritmo xamânico à procura do transe e da alucinação de um corpo em metamorfose. Concordas com esta leitura? Que penso têm na tua obra as culturas indígenas do povoam/povoaram o Brasil?

A minha poesia tem a devastação dos vendavais. Sejam “Cachaprego” ou “Estilhaços no Lago de Púrpura”. “Arranjos de Pássaros e Flores” ou “Anu”. Os originais “Z a Zero”, “O beijo de Rimbaud”, “Salmos Verdes”, etc. “Yguarani”, no prelo pela Cosmorama Edições, Portugal, apresenta as culturas de margem que existem no Brasil de onde vim que são materiais de minha linguagem. Difícil assimilar a minha língua poética porque a minha poesia é a poesia viva de uma pessoa em estado de infância. “Estilhaços no Lago de Púrpura” é “Jadis, si je me souviens bien, ma vie était un festin où s`ouvraient tous les coeurs, où tous les vins coulaient.”

10. Se o nome é uma síntese da identidade, qual das tuas faces é a mais verdadeira, Wilmar Silva ou Joaquim Palmeira?

Wilmar Silva ou Joaquim Palmeira sou eu. Eu e os eus e o nó e os nós.

11. De que maneira se estrutura na tua poesia uma figura autoral poliédrica, múltipla, mutante? Haverá nela vestígios de heteronímia?

Ruy, o que posso afirmar é que todos os meus excessos poliédricos, múltiplos, mutantes, são de um camaleão humano que tem dois olhos, um nariz, uma boca, uma língua, muitas línguas, duas pernas, dois joelhos, muitos e infinitos rastros, e uma vontade de inventar a poesia.

12. Sei que no Brasil ainda estão vivas as heranças da poesia experimental e da arte surrealista. Recebeste algum testemunho destas linhas de fuga do fazer poético?

Devorei essas e outras heranças, experimentais ou não, surrealistas ou não, para eu nascer, para eu ser, para eu chegar ao infinito eu vivo.  

13. Como vês o papel da poesia numa sociedade em que os valores - como referiu Salman Rushdie numa crónica - são o Dinheiro e a Celebridade?

Poesia não tem nada a haver com o dinheiro e a celebridade, mas o problema é não ganhar dinheiro com poesia e não se tornar célebre.  

14. O poeta é sempre um actor?

O poeta é um poeta de si e de outros sis, de outros outros, e de todos os outros outros.

15. Para quando a edição da tua antologia monumental da poesia de língua portuguesa? Que projectos se seguirão?

“Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua, antropologia de uma poética” tem lançamento mundial em novembro de 2008, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E em 2009 partirei para Moçambique. Angola. São Tomé e Príncipe. Timor Leste. Goa. Macau. E a Galiza.

Wilmar Silva ou Joaquim Palmeira sou eu. Eu e os eus e o nó e os nós.