JOÃO GARÇÃO

Uma lembrança (Desportiva)
AINDA UM DIA DAREMOS A VOLTA DE HONRA!...

Quando o ergueram da cadeira, o de bigode afifou-lhe logo uma joelhada no estômago que o obrigou a dobrar-se e a deitar-se no chão frio. Sentiu-se desfalecer, mas fez um esforço para manter os olhos abertos, olhando para a luz mortiça do tecto.

A nossa equipa de 39 que então ganhou ao Benfica alinhou com: Tibério, Zé Maria Antunes, César Machado...”. Um pontapé nas costelas interrompeu-lhe o pensamento e fê-lo rolar e ficar deitado de bruços.

Os ouvidos doíam-lhe, devido aos murros repetidos que o mais pequeno lhe dera na cabeça. Apesar disso, ainda escutava os insultos, se bem que já um pouco ao longe.

- Já não te apetece levar porcarias para a bancada, pois não, filho da viúva?!

Outra vez do princípio. Jogámos com: Tibério, Zé Maria Antunes, César Machado, Portugal e Faustino…”

O de bigode pisou-lhe a mão, fazendo-o gritar e depois pontapeou-o no ombro, atingindo-o na clavícula. Sentiu que todo o braço lhe rebentava.

- Pelo menos, com este braço já não pegas naqueles cartazes de merda e se fores fazer os exames tens que escrever com a canhota!

Esforçou-se por pensar noutra coisa, que não nas dores nem em exames. ”Depois do Faustino, quem era? Ah, sim, o Octaviano. E depois: Alberto Gomes, Arnaldo Carneiro, Nini e Pimenta. O treinador era o Albano Paulo.”.

- E então, Teixeira, que tal se tem portado o ‘anarca’?

O de bigode e o pequeno voltaram-se para a porta que se abrira e por onde tinha entrado um sujeito com óculos de aros de massa e que segurava um cigarro no canto da boca.

- Não fala, senhor inspector. Leva porrada, mas não fala – disse o de bigode.

O pequeno limpou a cara com um lenço e olhou para o chefe.

- Sentem-no – disse o chefe calmamente, dirigindo-se para o meio da sala, onde estava a cadeira derrubada.

Mãos fortes obrigaram-no a sentar-se e seguraram-no, mantendo-o bem direito.

Quem é que marcou os nossos golos? O Pimenta fez o golo do empate e o Arnaldo Carneiro fez o terceiro e o quarto... mas quem é que marcou o segundo?...”

Novo murro na boca voltou a trazê-lo para a dolorosa realidade.

- Não estás a ouvir o que te pergunta o inspector? Respeitinho quando falar contigo e quando ele falar contigo tu respondes, ouviste? – gritou-lhe o de bigode, dando-lhe ainda um estalo no rosto já dormente.

A boca doía-lhe e sabia-lhe a sangue. Mordera a língua e tinha alguns dentes partidos.

Claro, o segundo golo foi marcado pelo Alberto Gomes!...”

- Este cabrãozito nem me liga! – vociferou o inspector, indignado. O pequeno esmurrou-o novamente e quase o fez tombar da cadeira, mas o de bigode segurou-o.

- Falas comigo ou não falas, meu merdas?

Começou a mover os lábios intumescidos, emitindo alguns sons. O bigodaças chegou a cabeça junto da sua boca, tentando escutar o que estava a dizer. Ergueu-se, quando ele desmaiou e dirigiu-se ao seu chefe:

- Diz, senhor inspector, que não se ganha nem se perde sempre e que, um dia, ainda hão-de ser eles a dar novamente a volta de honra ao estádio, com a Taça na mão... O senhor inspector percebe o que é que ele quer dizer com isto?...

O inspector não respondeu. Olhou o corpo ensanguentado e tombado no chão. Semicerrou os olhos, mordeu o lábio inferior ajeitou o casaco e saiu, sem uma palavra.

NOTA: aquando da final da Taça de Portugal de 1968-69, entre o Benfica e a Académica (2-1, após prolongamento), estudantes adeptos da Briosa aproveitaram para desfraldar, nas bancadas do Estádio Nacional, bandeirolas onde denunciavam o clima de repressão que se vivia nas universidades.

Os mais altos dignitários do regime estavam no estádio, pelo que os estudantes deram, assim, uma prova de grande coragem e de determinação.

Seguiu-se, obviamente, a “discreta” repressão.


JG
in “Contarelos do tempo incerto”