Ia eu hoje à Biblioteca Nacional muito atida a ler umas cousitas sobre os carrapichos, umas plantas que dão umas sementes com a forma de bolas ouricentas que se pegam à roupa e aos cabelos e não se arrancam nem à estalada, da Fam. Fabaceae e do género Desmodium, e tudo me saiu às avessas, porque começou a aparecer-me no catalogo eletronico uma data de volumes de uma obra manuscrita sobre os jesuítas e quase todos, em vez de "anual", diziam "Relatorio annal..." e alguém tinha posto à frente de "annal" um "sic" entre parentesis retos, e eu fiquei muito desconfiada, porque os frades sabem escrever a ortografia muito bem, se escrevem "hortografia" ou "anal" é porque o caldo anda muito entornado lá para as bandas do convento, e então em vez do carrapicho sai-me na rifa um sermão de Padre Antonio Vieira, editado uns dez anos depois de pregado, eu olhei e tornei a olhar e pensei que tinha de meter o bedelho nesse caso bicudo do Acordo Ortográfico, olha só como grafava o grande mestre da língua portuguesa, jesuíta, barroco e tudo, que só lhe faltava ser Narciso do Egito sem p:
"Sermam qve pregou o P. Antonio Vieira da Companhia de Iesv, na casa professa da mesma Companhia em 16. de Agosto de 1642. na festa qve fez a S. Roque Antonio Telles da Silva do Conselho de guerra de S. Magestade Governador, & Capitam Gèral do Estado do Brasil, etc. Em Lisboa. Com todas as licenças necessarias. Na Officina de Domingos Lopes Rosa. Anno de 1654."
Eu cá acho que o Acordo Ortografico devia obrigar a escrever assim, a gente pra que precisa de António e de Antônio? Tem é que passar a escrever "Antonio" sem acento nenhum, e "necessarias", e "S. Gregorio", e todas as antepenultimas silabas sem acento, como "paciencia" e "abstinencia", para todos parecermos escritores como Antonio Vieira, que escrevia isso e mais isto:
a) Uns èsses que só vistos na imagem em baixo, parecidos com ff, e que não existem atualmente;
b) Consoantes bem dobradas, que são o luxo da língua, como em "Telles", " nelles", e dois pp como em "supposto", e dois cc como em "occasiam" ou "occasiaõ", com o til na segunda vogal do ditongo nasal e naõ na primeira; e duplo m como em "immutabilidade";
c) O "que" simplificado em "q" com acento grave, novidade q agora se usa tanto nos chats, e mais coisas de chat, muito curtidas, como palavras com ch como "Christo" e "chrysol" e "charidade", e com th como "thema", sem falar do ph de "pharol" e "pharmacia"; e enfiava hs onde ninguém ousaria enfiar o dedo meão, como em "sahio";
d) O u com valor de v como em "seruos" e "diuinas palauras";
e) Outra cousinha de chat que escrevia Padre Antonio Vieira era &, como em "seruos vigilantes & preparados";
f) Acentos todos trocados, o grave em vez do agudo ou viceversa como em "bater ás portas", e o esdrúxulo nas mesmas circunstancias e isto é já Acordo Ortográfico, esta hesitação, este deixa andar de duas e mais maneiras, como em "bater â porta";
g) E outra maneira de chat é escrever "he" em vez de "é", e "eo" em vez de "eu", como em "Deos" e "meo";
h) E grafa "sojeito" em vez de "sujeito", e põe til em "hua" em vez de escrever "uma";
i) E escreve "alheas" em vez de "alheias", e "preguntaõ" em vez de "perguntam";
j) E quem não se renderia à graça do plural "occasioens"?
k) E usa o y em passados como "prèguey" e "foy", e futuros como "poderey" e em palavras que não são verbos como "muytos", e também em presentes como "vay";
l) E usa i em vez de j, como em Iesu e em Ioseph;
m) E "assi" em vez de "assim" e tanta outra lindeza que até dá arrepios, como "Spiritu" em vez de "Espirito" - e Este he o santo, claro, que Outro havia de ser? - tanta maravilha, senhores, porque he q os politicos não leem com olhos de leer o nosso Padre Antonio Vieira para aprenderem com elle a redigir um Acordo Ortografico em condiçoens, para todos concordarmos e escrevermos de hua so maneyra, todos, os brasileiros, os portugueses, os timorenses, os guineenses, os caboverdianos, os moçambicanos, os indianos, os angolanos e até os mirandeses, sim, porque nós temos duas linguas officiais e eu pra minha vergonha so conheço uma dellas, nem sei se o Acordo Ortographico tambem vale para o mirandês, mas agora já me cansei muyto, pronto, vou recolher a Penates, so queria ser uma grande escritora como o Padre Antonio Vieira, que não usava acentos nas esdruxulas e por isso chamava cagado à tartaruga de agua doce, e não me digam que escrevia mal, porque quem escreve mal é quem põe acento numa palaura que deriva directamente do latim caccatus, e so por enjoos de dona gravida sofreu recuo na silaba tonica!
LAVS DEO. |