REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 38 | abril-maio | 2013

 
 

 

 

NUNO MATOS DUARTE

O conceito híbrido e a ideia forte

Considerações breves e pessoalíssimas de um arquitecto sobre a prática actual da arquitectura

Nuno Matos Duarte (Portugal, 1971). Arquitecto pela Universidade do Porto. Tem obra vasta construída no Alto Alentejo, sobretudo edifícios públicos. Artista visual, tem exposto com pouca regularidade, fora dos circuitos comerciais. http://nunomatosduarte.wix.com/visual-arts

 

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Em 2003 escrevi a seguinte definição: «(...) A arquitectura é a possível humanização da geometria que tem origem na tentativa de definir os limites de um vazio espacial (...)» Creio, portanto, que é da natureza da arquitectura ser objecto híbrido cuja busca conceptual deve aceitar que a pureza das ideias é sempre contaminada por uma realidade externa resultando, assim, numa construção geométrica na qual se manifesta uma gestão de contingências internas e externas de diversa ordem. À luz daquela definição o arquitecto seria o artista que tenta definir os limites de vazios espaciais através do uso consciente da geometria, tendo o Homem como referência e medida. Os seus desafios ético e estético são enormes porque lhe é exigido que no seu trabalho nenhum dos dois se evidencie sobre o outro. Se o arquitecto pertence a uma categoria de artistas diferente das demais é, sobretudo, devido a esta exigência e não por ser habitualmente apontado como um técnico-artista (ou artista-técnico). Toda a disciplina artística, com maior ou menor grau, se debate com problemas de ordem técnica e burocrática e não é devido à suposta maior complexidade das suas especificidades técnicas e burocráticas que a arquitectura coloca o arquitecto num patamar diferente do dos outros artistas. O que, de facto, torna o arquitecto distinto é a matéria com que lida associada ao modo como transforma o real e às características da realidade que efectiva.

Ao confrontar estes conceitos, aqui ao de leve explanados, com os espaços e edifícios que resultaram do meu trabalho de arquitecto, não posso deixar de assinalar, talvez com desencanto, alguns sentimentos contraditórios. A noção de autoria, no sentido que habitualmente vemos aplicada à criação artística mas, sobretudo, à criação arquitectónica dita erudita, nunca foi para mim clara, e por diversas ordens de razão raramente tive oportunidade de ver o todo do meu pensamento acerca de um problema espacial efectivado em obra arquitectónica. Entendo, por isso, que embora seja o legítimo autor das obras que resultaram dos projectos de arquitectura por mim desenvolvidos, muito do que há nelas não me permite chegar sequer próximo da aspiração traduzida pela locução latina ne varietur, isto é, «para que nada seja mudado». A sua contaminação, promovida pelos mais diversos agentes, pode ocorrer em fases distintas da concepção arquitectónica, tanto durante o estudo prévio e anteprojecto, como durante o projecto de execução e a obra. Sempre entendi que, quando isso acontece, o meu dever é o de caracterizar a conformação da contaminação e trabalhar para a fundir nos conceitos base, mesmo que, para tal, seja necessário transformá-los. As condições básicas para se dar início à execução de um projecto de arquitectura são a existência de um programa, de um orçamento e de uma vontade do «cliente» que promove e paga a construção do edifício. É uma obra inevitavelmente participada e, em certa medida, sempre imperfeita. Obrigando esta acepção à reflexão sobre o limiar de estética e ética, a noção de autoria em arquitectura tende para deixar de ser resultado de pensamento individual, passando antes a reflectir o modo como o autor gere uma miríade de influências que são amiúde contraditórias. Quando o arquitecto trabalha em obras públicas esta dificuldade agudiza-se. Por um lado, debate-se ainda mais com o dever do serviço público; por outro, com o desejo, legítimo ou nem tanto, dos dirigentes políticos se identificarem com a obra promovida e edificada sob o seu mandato. Resta saber também se é mais legítimo, ou não, o desejo do próprio arquitecto em se identificar com a obra da qual é autor e da qual lhe advém responsabilidade profissional, legal e artística. Corresponderá, como muitos arquitectos querem fazer crer, à plena satisfação desse seu desejo o cumprimento do serviço público? Residirá aí o garante de uma espécie de continuidade cultural em arquitectura? Por outras palavras: até que ponto é legítima a liberdade do arquitecto na sua proposta de transformação estética do mundo e do quotidiano dos cidadãos? E qual o limite para aceitar a participação externa?

No que respeita a estas duas últimas questões, estou convicto de que estes tempos de fácil e rápida comunicação vêm baralhar um pouco esta discussão e se, por um lado, proporcionam ferramentas extraordinárias para comunicar através de imagens, por outro, são um convite à proliferação do facilitismo consubstanciado na ideia de que cada obra arquitectónica, para ser relevante, deverá ter um cunho fortemente icónico que traduz o seu conceptualismo. Esta atitude pode facilmente conduzir a práticas arquitectónicas distorcidas, pese embora dos pontos de vista promocional e do sucesso político, popular e comercial, possam efectivamente ser úteis a muita da arquitectura dita erudita que é hoje considerada «de qualidade». A meu ver, o que quase sempre sucede com este tipo de obras é proporem espaços pobres (embora por vezes espalhafatosos) que se vergam conceptualmente à fímbria do pensamento arquitectónico que se desenvolve tomando como objectivo principal o estabelecer de uma ideia fácil de comunicar em poucas imagens. O jogo estético da arquitectura vê-se assim reduzido a um conjunto de pré-conceitos compilados num léxico diminuto de imagens e de combinações imagéticas acreditadas, que se apoiam numa «ideia forte». A  necessidade de uma «ideia forte» é talvez uma defesa instintiva contra a percepção fragmentada que temos do real. A «ideia forte» induz em nós a noção de sentido e, consequentemente, de orientação, focando-nos num referente. Em todo o caso julgo que é errado considerar que a obra arquitectónica relevante tem de ser necessariamente traduzida por uma «ideia forte». Mesmo com maiores dificuldades em se fazer notar por outros meios que não os da própria vivência da obra, um edifício notável pode perfeitamente prescindir desse correspondente óbvio em favor de um intrincado soberbo na orquestração de várias ideias fortes, ou menos fortes, simpáticas e/ou contraditórias entre si. Em princípio, não parecer haver justificação lógica para que os referentes que orientam a percepção do espaço urbano se constituam em todos coerentes com correspondência exacta no conjunto de elementos físicos que resultaram de uma encomenda a um determinado arquitecto em determinada circunstância. Essa leitura é irrelevante para o cidadão. Por muito polémica que seja esta afirmação, a verdade é que nada obriga o arquitecto a forçar uma coerência conceptual interna (do ponto de vista estético) da obra, ao responder a uma encomenda, uma vez que a arquitectura é uma arte que se efectiva como realidade e não como ficção. O mundo que se cria com o acto da encomenda não tem de se fechar conceptualmente sobre si porque não deve ser essa a aspiração do pensamento arquitectónico. Pelo contrário, a aspiração do pensamento arquitectónico deveria ser a abertura ao exterior, pois é seu dever constituir-se como resposta transformadora que dá continuidade a uma realidade preexistente, mudando-lhe uns aspectos, negando-lhe outros e reforçando outros ainda. O que parece natural é, em face da realidade díspar que formula um problema espacial concreto, o arquitecto conceber conceitos híbridos e complexos, pois de outra forma estará talvez mais atento ao seu ego, ao desejo de ser visível (publicamente e inter pares) como autor, do que à intervenção estética que nasce do confronto com a necessidade de transformar o real.

 

 

                                                    Lisboa / Ponte de Sor, Fevereiro de 2011

 

 

© Maria Estela Guedes
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