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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
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Era El-Rei homem de bôa estatura de côrpo, não em demasía, de fórtes
membros, enxúto e bem dispôsto, sem defeito algúm. Éra alvo das
carnes e os cabêlos da cabêça e os que começávam a pungir da barba,
louros.Tinha o rôsto grave e sevéro, com o beiço de baixo um pouco
derrubado, cuja composição lhe dáva múita graça e formosúra.
Crónica de el-rei D. Sebastião, Amador Rebelo,
capítulo 73º, intitulado
“Da pessôa de El-Rei Dom
Sebastião”
[*] |
JOSÉ PINTO CASQUILHO
Sebastião de
Portugal:
20 de janeiro de 1554 - ? |
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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Resumo
Sebastião, XVI rei de Portugal, sétimo da dinastia de Avis, reinou
até 1578 e é referido na grande maioria dos textos como tendo
falecido em 4 de agosto desse ano, na batalha de Alcácer-Quibir.
Existem no entanto pelo menos quatro peças factuais, três breves
papais e um quadro, que apontam em sentido contrário: Sebastião
sobreviveu, e sobreviveu longamente, à batalha. Uma máquina
probabilística cega funcionando em condições de máxima incerteza
concluiria na base de 15 contra 1 que o rei teria escapado. O que
foi a sua vida no exílio é um mistério, mas poderá ter sido o
prisioneiro de Veneza e por certo foi guerreiro sob a égide da cruz
de Cristo de que se reclamava capitão. A existência secreta de
Sebastião rei de Portugal tornou-se uma forma pregnante que
engendrou vários sebastião, chispas salientes de uma forma profunda
que se impõe como verdade.
Abstract
Sebastião, XVI King of Portugal, seventh of the House of Aviz,
reigned until 1578 and is referred to as having died on 4 August of
that year, at the battle of Ksar-el-Kebir. There are however at
least four factual pieces, three brief papal letters and a picture,
pointing in the opposite direction: Sebastian survived, and survived
for a long time. A probabilistic blind machine working in conditions
of maximum uncertainty would conclude in 15 against 1 that the King
would have escaped. What was his life in exile is a mystery, but he
may have been the prisoner of Venice and certainly was warrior,
under the aegis of the cross of Christ that he claimed to be His
captain. The secret existence of Sebastian King of Portugal became a
deep pregnancy that produces various fake Sebastian, salient traits
of a deep form that looms as truth.
Résumé
Sébastien, XVI roi du Portugal, septième de la dynastie d'Avis, a
régné jusqu'à 1578 et est rapporté dans la grande plupart des textes
comme en ayant décédé le 4 août de cette année, dans la bataille de
Ksar el Quibir. Existent néanmoins au moins quatre pièces
factuelles : trois brefs du Vatican et un tableau, qui indiquent
dans sens contraire : Sébastien a survécu, et a survécu longuement,
à la bataille. Une machine probabiliste aveugle en fonctionnant dans
des conditions d’ incertitude maximale répond dans la base de 15
contre 1 que le roi se serait échappé. Ce que a été sa vie en l'exil
est un mystère, mais pourra avoir été le prisonnier de Venise et
probablement a été guerrier, sous l'égide de la Croix de Christ dont
il se nommait capitaine. L'existence secrète de Sébastien roi du
Portugal s'est rendue une forme pregnante qui a produit plusieurs
sebastião, traces saillantes d'une forme profonde qui s'impose comme
vérité. |
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Introdução
Ao contrário do que se pode pensar só há relativamente poucos anos
lido com a história de Sebastião, rei de Portugal. Cedo ouvi dizer
que ele era birrento e obstinado, teimoso que sei lá, megalómano e
infeliz, e portanto não me seduzia tal personagem. Além que na sua
birra de vã glória levou o país ao desastre de Alcácer-Quibir, a que
se seguiu a perda de independência durante sessenta anos. No entanto
o assunto regressava periodicamente e comecei a dar cada vez mais
atenção. A última chamada veio com o Tango Sebastião que a Estela
escreveu e o José Augusto prefaciou. O principal objectivo do texto
que agora publico é remover escolhos sobre outros que escrevi há uns
anos, e que se centravam num trajecto que terminava na apropriação
simbólica por Sebastião da coroa imperial, movimento comum aos
príncipes da Europa do seu tempo, onde reafirmei a tradicional
evocação de que o rei morrera pelejando em Alcácer Quibir, naquele
fatal 4 de agosto de 1578 [v. 1].
Sebastião nasceu no dia do santo de seu nome, em 20 de janeiro de
1554, e não é fácil entender que tal era sui generis - o
único rei do nome do mártir -, e que o menino foi reclamado logo de
‘o Desejado’, por ter nos seus ombros o peso de salvar o país já que
todos os nove filhos de João III e Catarina da Aústria tinham
sucumbido, no tempo dizia-se da maldição de Aviz - hoje diríamos
efeitos deletérios da consanguinidade -, muitos por epilepsia. O pai
de Sebastião, o príncipe do Brasil João Manuel, falecera poucas
semanas antes do nascimento do filho, provavelmente de diabetes
juvenil, com dezassete anos. Joana de Aústria, infeliz com o
desamparo da morte do príncipe, regressa a Espanha para governar em
lugar do seu pai ausente e de seu irmão Filipe que ia viajar aos
países baixos, e assim abandona o filho com meses, aos cuidados dos
avós e da corte.
Sebastião vê-se criado orfão e rei de Portugal com o encargo de
salvar o país, transportando o peso da história do santo, soldado
romano supliciado. Com tal entalão é natural que o jovem rei se
fizésse guerreiro e quisésse prová-lo primus inter pares,
como capitão de Cristo na sua autonomeação, numa incursão contra os
infiéis por Marrocos, onde legitimaria o título de imperador em Fez.
O jovem Sebastião matou o seu primeiro javali com onze anos, a idade
de Alexandre no mesmo feito, e é possível que tentasse mimetizá-lo,
na versão de cruzado, a que estava conforme o espartilho católico,
inquisitorial, em que cresceu. Saiu-lhe gorada a intempestiva e nas
planuras ardentes de Agosto, em Alcácer Quibir, conheceu a derrota.
Conheço o sítio, lá está uma placa com três coroas, uma superior de
Allah e as duas outras dos reis marroquinos mortos no desfecho: um
envenenado ao que se diz, outro afogado na fuga. A batalha dos três
reis, assim ficou designada, porque três reis ali teriam morrido,
pensava eu, mas não: três reis ali combateram mas só dois pereceram,
é a conclusão deste escrito.
Também eu andei muito tempo fabricado na idéia de que Sebastião
teria morrido em Alcácer Quibir, afinal todos os historiadores de
renome o diziam, talvez haja uma ou outra excepção, desde a escola
que tal me era dito e ainda hoje essa é a versão corrente [v. 2, 3],
a que acrescia aquela menção de que o rei fora por ali fora a
espadeirar no seu lema: morrer sim, mas devagar. Ora parece que foi
mesmo isso que aconteceu à letra, num sentido bem mais lato do que
se normalmente se pensa. É verdade que pode dizer-se que o regresso
mítico de Sebastião é mais uma versão do Paráclito ou paracleto
anunciado, o redentor, um messianismo, uma reinvenção sucessiva da
esperança ou da fé no amparo do regresso do outro. Mas também por
isso essa recorrência tem pertinência no caso.
Não dispunha eu nesse tempo do dispositivo conceptual, ou
conceitual, que permite esquissar uma interpretação que reclamo
satisfatória, ou mesmo elucidativa. Esse dispositivo é o par
pregnância/saliência que foi sucessivamente elaborado por René Thom
[4] e Jean Petitot [5], entre outros, e enraíza na distinção
aristotélica das dualidades que já têm aspectos discutidos em
Platão: substância/forma e potencial/atual, a última fortemente
retomada no determinismo laplaciano. Em síntese, existe uma forma
pregnante, profunda, potencial, que está num domínio invisível,
implícito, num espaço inacessível à observação directa, que pode ter
várias dimensões, a que se associam saliências, emergências de
sentido, essas sim visíveis e tangíveis, derivadas da pregnância que
as sustenta ou alimenta. Das saliências pode-se inferir a
pregnância, pois não há efeito sem causa, enunciado conhecido como
princípio de causalidade científica, utilizado ao reverso, por meio
de abdução, formando uma hipótese explicativa. Essa forma pregnante
pode ser entendida como a verdade dessa história, o domínio de
existência na sua multidimensionalidade secreta.
Serve isto para falar na sucessão de falsos sebastião que existiram,
três ou quatro, para dor de cabeça dos filipes de Espanha – com
início em Filipe I de Portugal desde as cortes de Tomar em 1581 -,
que logo mandavam prender e até executar, do último tem-se notícia
de um italiano enforcado em 1619. Mas será que dessas saliências
recorrentes e factuais – os falsos sebastião – não se deve inferir
algo? Creio que sim, na lógica do índice que aponta que não há fumo
sem fogo, uma recorrência sucessiva ao longo de um largo intervalo
de anos de vários simulacros é sintoma de existência continuada - no
caso da existência de Sebastião, rei de Portugal, vivo, algures.
Aliás poderia ter sido um dos falsos sebastião reportados.
Sucede que este enquadramento teórico abriga algo que só há pouco
tempo conheci enunciado como factos: são referidos vários breves
emitidos por papas diferentes a reconhecer Sebastião como legítimo
rei de Portugal na presença de cardeais, ao longo de cerca de três
décadas, e no último declarando-se o rei casado e com descendência
[v. 6]. Ora junte-se a isto o retrato da galeria dos Azuis, a que se
atribui a data de c. 1600, e que falo mais à frente (figura 6) e de
que há notícia existirem cópias. No total faz pelo menos quatro
factos (três breves e um quadro) que provam que Sebastião sobreviveu
a Alcácer Quibir, ou então são todos falsos, o que parece absurdo.
Na hipótese de qualquer desses quatro documentos ser verdadeiro ou
falso jogando com a máxima incerteza ou ignorância, supondo-os
acontecimentos independentes, a probabilidade de serem todos falsos
é de cerca de 6 em 100, e ao invés a probabilidade de ser pelo menos
um verdadeiro e Sebastião ter sobrevivido a Alcácer Quibir é de
cerca de 94 em 100. Quer isto dizer que a balança cega inclina-se
15:1 para o lado de que Sebastião sobreviveu a Alcácer Quibir. Mas
ademais, no caso, poderá ver-se mais longe. |
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Retratos de Sebastião
Vamos incorrer no mundo dos retratos de Sebastião, onde por
limitações de espaço vou-me cingir a uns poucos. Existe vasta
iconografia que mostra Sebastião desde miúdo, ou mesmo no berço,
carregado com os símbolos de Portugal, o escudo de armas, a esfera
armilar, a cruz de Cristo [v. 7]. Na figura 1 tem-se o retrato da
autoria de Cristovão de Morais, datado de 1571: o jovem rei, armado
guerreiro, teria dezassete anos, louro de olhos claros, sobrolho
erguido, boca carnuda...Há outras interpretações, e derivas
interpretativas, do mesmo quadro [v. 8]. |
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Fig. 1 – Sebastião de Portugal por Cristovão de Morais, MNAA, 1571
(fonte: Wikipedia).
Na figura 2 tem-se uma representação do rei de que não consegui
obter mais informações a não ser que o quadro faz parte da
colecção da Fundação D. Manuel II. Mesmo que seja uma representação
posterior importa referir que o Sebastião aparece coroado com a
coroa de oito arcos fechados, imperial, sendo aliás o primeiro
monarca português que a ostenta expressamente, a que acresce a barba
ruiva ou ruça - esse será um traço distintivo da imagem do rei em
todos os quadros posteriores. No caso deste retrato saliente-se
ainda que Sebastião traz no peito o hábito da ordem de Cristo com a
cruz embutida naquilo que se virá a chamar o diamante com as armas
do rei de Portugal, mais tarde o Sancy [v. 9]. |
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Fig. 2 - D. Sebastião usando coroa imperial (fonte: Portal da
História).
Na figura 3 tem-se a representação de Sebastião que se pode tomar
como modelo do ideal de capitão de Cristo, como ele se autonomeava,
com armadura, hábito de Cristo, faixa, bastão de comando, barba, e
as armas do rei de Portugal: coroa imperial sobre o escudo
apresentado na versão mais frequente desde João II, assente na asa
de dragão, animal mitológico símbolo de Portugal. Enquanto em cima o
tempo corre no fio do fuso. Não conheço a cronologia absoluta das
referências das figuras 2 e 3, mas não parece deslocado dizer que o
rei estará representado cerca dos seus vinte anos. |
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Fig. 3 – Sebastião, XVI rei de Portugal, capitão de Cristo
Em 1578 Sebastião tem 24 anos e creio que a figura 4 representa a
face do rei por essa idade. Trata-se de um pormenor de um quadro de
entre um conjunto, executados vários na escola de Alonso Sanchez
Coello, cópias de um retrato original eventualmente desaparecido, de
que existem exemplares no Kunsthistorisches Museum de Viena ou no
Prado, representando Sebastião, rei de Portugal. Existe quem se
incline por atribuir o personagem representado a António prior do
Crato [v. 10], depois também autonomeado rei de Portugal por breve
período. Discordo, trata-se de Sebastião, numa de suas últimas poses
antes de rumar a Marrocos. A coloração da barba e do cabelo, o
traçado dos olhos claros, a boca, queixo e nariz, sobrancelhas, não
vejo como ter dúvidas. |
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E
além disso D. António era fisionomicamente bem diferente e cerca de
23 anos mais velho que Sebastião [v. 11]. Na minha interpretação, o
rei está representado em pose soberana anunciando a sua partida, com
o hábito da ordem de Cristo que abriga o diamante com as armas do
rei de Portugal, referido a propósito da figura 2 e representado na
figura 5: a cruz de Cristo está engastada sobre o diamante, tendo
quatro rubis na continuidade das pontas, formando no conjunto as
cinco quinas, amparado por duas figuras antropomórficas ligadas,
porventura simbolizando dois rios ou oceanos, já que não parecem ser
anjos. |
Fig. 4 – Sebastião de Portugal, 1578? |
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Fig. 5 – O diamante com as armas do rei de Portugal .
A
imagem da figura 6 está referenciada como pertença da Câmara dos
Azuis nesta data, e é datável da transição entre os séculos XVI e
XVII (c. 1600), com proveniência na colecção dos condes Cao Di San
Marco, uma família da Sardenha, da província de Cagliari, e
mostra-nos o rei de cabelo e barba arruivados, olhos claros, mais
maduro. Costuma levantar-se uma objeção estílistica de que a
terminação da cruz de Cristo embutida na armadura é bifurcada, o que
não seria conforme, mas devo dizer que já encontrei elementos de
bronze datados do reinado do rei que lembram essa modalidade de
estilo de cruz. |
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Fig. 6 – Sebastião de Portugal
(fonte: Wikipedia), c. 1600.
Neste retrato Sebastião teria então cerca de quarenta anos de idade.
Este quadro, que eu saiba, só teve divulgação pública há poucos anos
e introduz a prova icônica - a outra dimensão simbólica que acresce
aos breves papais -, sobre a vida do rei pós Alcácer-Quibir.
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Discussão
É
fascinante que se constate que quase 5 séculos depois a
historiografia portuguesa dominante continue a afirmar que Sebastião
faleceu na batalha, quando se dispõe de uma deixis, um
sistema de indicadores, apontadores, a dizer o contrário. Mesmo a
máquina probabilística cega que utilizei atrás inclina-se
brutalmente para dizer que o rei sobreviveu à batalha.
A
história que se me afigura mais provável é a seguinte: Sebastião
viveu, porventura só, ou junto com alguns amigos, vai por ali fora e
faz-se à vida como cavaleiro cristão, talvez mercenário. Mesmo vivo
era um rei derrotado, e um rei derrotado é abandonado pelos
poderosos, talvez com umas excepções, poderá ter recebido apoios
secretos. É sabido que Filipe II de Espanha comprou os votos de
nobres e clérigos de Portugal, a troco de mercês e de benfeitorias,
o que se veio a expressar nas cortes de Tomar, em 1581, de onde saiu
Filipe I de Portugal.
Sebastião pode ter sido o prisioneiro de Veneza, é uma história que
parece bater certo com a descoberta do quadro da figura 6 em terras
italianas, havendo notícia de réplicas, memória local dessa
presença. O último breve papal é bem tardio, poucos anos antes da
restauração da independência do reino, e há quem especule se
Sebastião, também chamado o Encoberto, não terá estado o tempo todo
a fazer esforços para restaurar a soberania do país - perdida pela
sua temeridade ou por desígnio de Deus, conforme as interpretações
-, que teriam sido bem sucedidos no final, afinal.
Estar-se-ia então no caso de que a promessa do regresso foi cumprida
secretamente recordando que no quadrado da veridicção o secreto é o
lugar daquilo que é e não parece, Sebastião era rei de Portugal e
não parecia, será uma aplicação. Ao alijar a coroa para outra
dinastia Sebastião libertaria os seus filhos desse peso, dessa cruz,
passava a bola do reino por assim dizer - os novos destinatários
seriam os duques de Bragança, recordando que havia quem dissesse que
Catarina, duquesa de Bragança, era quem detinha a candidatura mais
legítima, embora pesasse contra ela o lastro da lei sálica e os
interesses de Filipe. Porventura terá havido um acordo também
secreto, multissecular, para manter a história secreta de Sebastião
e assim alimentar o mito? Ou teria sido desejo de reserva expresso
pelo rei?
Pode dizer-se que o cardeal-rei Henrique no seu testamento [v. 12]
deixa a questão de tal modo aberta - para ser decidida na Justiça
entre seus sobrinhos -, que contempla tacitamente a possibilidade de
Sebastião estar vivo, aí incluído. Noutro lugar referi que podia ser
essa a interpretação da ausência de castelos no escudo de armas do
rei de Portugal nos Calafates, em Lisboa [13], onde zero castelos
pode ser convertida em índice da presença de uma ausência: a do
legítimo rei.
O
mito sebastianista tornou-se elemento essencial da identidade
lusitana de então para cá, na opinião de tantos, tratando-se de um
messianismo que tem correspondência noutras culturas e povos, cada
um em seu estilo, com o seu código de representação - em qualquer
caso um código é um sistema de significados que se relaciona com um
sistema de significantes [14] - mas que, entre nós, tomou
ressonância singular, havendo quem afirme reportando-se à política
de Salazar e à sua durabilidade: o mito do sebastianismo
desenvolveu-se ao longo da História e serviu, politicamente, para
fixar a ideologia dominante, espoliando o povo da liberdade de
escolha de seu destino e tornando-o preso a uma imagem irreal de
lusitanidade [v. 15]. O mito é o nada que é tudo, dizia Pessoa, e no
século XVII o padre António Vieira empenhava-se em demonstrar a
necessidade lógica da ressureição de João IV, o primeiro rei da
dinastia de Bragança, numa deriva messiânica [v. 16]. Também João VI
foi revisto como figura sebastianista em Portugal quando da sua
estadia no Brasil [17], e no Brasil, ainda no século XIX, os
camponeses esperavam um enviado sebastiânico, réplicas sucessivas da
idéia do regresso do redentor. Essa figura também se pode enquadrar
no tema universal do eterno retorno, com tantas manifestações
diferenciadas [v. 18] - e que recorre sobretudo em períodos de
crise, recordando no entanto que, no sentido original, o termo
crise, gerado da palavra grega krísis, significa escolha,
decisão [19].
Coda
Esta reflexão que ora deixo visa em primeiro lugar corrigir escritos
meus que referenciei em [1] e [9], onde repetia a notícia da morte
de Sebastião em Alcácer-Quibir. Sou daqueles que acha que não é
preciso fazer testes de DNA aos restos mortais que constam nos
Jerónimos. Filipe II de Espanha além de prudente era calculado e
manipulador, como convinha aliás, e bem pode ter tomado providências
adicionais. O seu filho Carlos falecera em 1568, mandado prender
pelo pai, e, dizem as más línguas, envenenar, embora haja outras
versões. A tese de que Sebastião não só sobreviveu à batalha como
esteve décadas a urdir a restauração da independência, discreto ou
secreto, é tão sóbria e possante que o rei bem pode quedar-se numa
aura mítica merecida. Sebastião é ainda hoje o mais das vezes
referido de forma pejorativa: autoritário, doente, birrento,
homossexual, incapaz. A crónica de Amador Rebelo, escrita
provavelmente no final do século XVI, dá outra visão, bem como as
palavras do padre Luís Alvares nas exéquias funebres nos Jerónimos
[v. 20]. Em suma poderá dizer-se que o povo lhe tinha amor, e assim
terá resguardado a memória da sua não-morte. Que outra força, senão
o amor, para ser da morte vencedor? Ao que me dizem, hoje conta-se
aos miúdos nas escolas em Portugal a versão de que o rei desapareceu
na batalha, assim libertando a data do decesso num domínio
indeterminado. A ode de Pessoa terá então ainda outra leitura [v.
21], e acabei de ver que já foi defendido em livro, recentemente,
por uma historiadora portuguesa, que Sebastião reapareceu em Itália
em 1598 e por lá continuou...
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Referências
[*] O padre Amador Rebelo era companheiro do padre Luís Gonçalves da
Câmara, mestre de Sebastião; citação extraída de Aurora Gedra Ruiz
Alvarez: O Mito nas Tramas do Grotesco – El-rei D. Sebastião,
AletriA, nº14, 2006, p: 186-197, Disponível em:
http://www.letras.ufmg.br/poslit
[1] José Pinto Casquilho, A metamorfose das armas do rei de Portugal
na dinastia de Avis, Monografias.com, 2008, acessado em
Dezembro de 2011,
http://br.monografias.com/trabalhos913/metamorfose-dinastia-avis/metamorfose-
dinastia-avis.shtml
[2] Sebastião de Portugal, Wikipedia, acessado em Dezembro
de 2011, http://pt.wikipedia.org/wiki/Sebasti%C3%A3o_de_Portugal
[3] D. Sebastião, O Portal da História, acedido em de
Dezembro de 2011
http://www.arqnet.pt/portal/portugal/temashistoria/sebastiao.html
[4] René Thom, Modèles mathématiques de la morphogénèse (2
ème ed.). Paris : Christian Bourgois Éditeur, 1980, 315 p.
[5] Jean Petitot-Cocorda, Physique du sens – da la théorie des
singularités aux structures sémio-narratives. Paris : Éditions
du Centre National de la Recherche Scientifique, 1992, 449 p.
[6]
Antonio Villacorta Baños-García,
D. Sebastião Rei de Portugal, A Esfera dos Livros Editora,
2006, 389 p.
[7] Manuel Sousa, Reis e Rainhas de Portugal, Mem Martins:
Sporpress, 2000, 201 p.
[8]
Aurora Gedra Ruiz Alvarez, id.
[9] José Casquilho, O Sancy – mais de cinco séculos de história,
Triplov.com, 2008, acedido em 13 de Dezembro de 2011,
http://www.triplov.com/casquilho/sancy/index.html
[10] Annemarie Jordan, Retrato de Corte em Portugal – o legado de
António Moro (1552-1572), Quetzal Editores, Lisboa, 1994, 199 p.
[11] Perfil biográfico de António, prior do Crato. Wikipedia,
acedido em 13 de Dezembro de 2011,
http://en.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio,_Prior_of_Crato
[12] Mário Domingues, O Cardeal D. Henrique – o homem e o monarca.
Lisboa: Livraria Romano Torres, 1964, 402/XIV p.
[13] José Pinto Casquilho, Das armas de Portugal, Revista Triplov de
Artes, Religiões e Ciências (Nova Série), nº 8/9, 2010, acedido em
13 de Dezembro de 2011,
http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_08/jose_casquilho/index.html
[14] José Augusto Mourão, Código in Dicionário Crítico de Arte,
Linguagem, Imagem e Cultura, Lisboa: CECL&IGESPAR, 2010, acedido
em 13 de Dezembro de 2011,
http://194.65.130.227/index.php?Language=pt&Page=Saberes&SubPage=ComunicacaoELinguagemLinguagem&
Filtro=23&Slide=57
[15] Aurora Gedra Ruiz Alvarez, id., p: 186.
[16] Padre António Vieira,
Apologia das Coisas Profetizadas (org: Adma Fadul Muhana).
Cotovia, Lisboa, 1994, 315 p.
[17] José
Tengarrinha, A crise no final do Antigo Regime, in Crises em
Portugal nos séculos XIX e XX (coord: Sérgio Campos Matos),
Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2002, p:
25-32.
[19] Sérgio Campos Matos, A crise do final de oitocentos em
Portugal: uma revisão, in Crises
em Portugal nos séculos XIX e XX (coord: Sérgio Campos Matos),
Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2002, p:
99-115.
[20] José
Casquilho (org.), O elmo de D. Sebastião,
Triplov,
http://www.triplov.com/historia/D-Sebastiao/Elmo/index.htm
[21]
Fernando Pessoa, D. Sebastião, Rei de Portugal,
Triplov, http://www.triplov.com/historia/D-Sebastiao/Fernando-Pessoa/index.htm |
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José Pinto
Casquilho.
Centro de Ecologia Aplicada Baeta Neves (CEABN/UTL),
Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens
(CECL/UNL).
josecasquilho@gmail.com
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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