REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 07

 

Toda reminiscência, interiormente, evoca, queira-se ou não, o conceito de memória. O que é a memória? Um arquivo que armazena blocos desordenados de fatos, sensações e acontecimentos vividos  exclusivamente por um eu? Ou, de fato, conforme já nos colocou Bergson, a memória seria pequenos pontos que, em si mesmos, contêm todas as nossas lembranças? Inacessíveis?  Até que ponto elas mantêm fluida nossa subjetividade? Enfim, em muitos aspectos a memória ainda está por ser revelada, desvelada. Duas coisas, certamente, já temos como postulados basilares: a memória identifica o ser. É fundamento do ser. Um outro ponto: quando o ser humano rememora  está  sempre condenado aos fatos de acordo com aquele momento em que está lembrando. A memória, sabe-se, filtra, hierarquiza, seleciona. A memória em si escapa. Condenação humana.

Pois bem: numa manhã abri a porta de meu apartamento e no meio de minhas correspondências (contas para pagar e outros tormentos de nosso cotidiano) um envelope diferente, vindo de Portugal, destacava-se. Abri ansiosa. Chão de Papel com uma delicada dedicatória de Estela Guedes. Dizia um grande escritor alemão, que, muitas vezes, adiamos uma leitura, um livro, porque sabemos que seu conteúdo deverá fascinar. Contudo, não pude adiá-lo. E, desde os primeiros momentos, sabia que estava diante de uma literatura densa, cativante. Estava realmente diante de um livro que era uma reserva de vida. Sim, os bons livros são reservas de vida, diria Giorgos Seféris. Reservas potencializadoras.

 

 
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Maria Estela Guedes  
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ANA HADDAD

 

«Chão de Papel»:

Estrelas de uma memória ressignificada

 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 
 

Nada de imagens líricas ou choros piegas, muitas vezes, evocando momentos que se foram e não voltam mais. Não. Eu estava diante de um livro cuja literatura materializou um passado vivido, em parte, na África.

Chão de Papel não evoca fatos ordenados, feitos a um diário ou com identificações precisas, cronológicas. Eis um ponto forte do livro: todos os poemas são jogados para os espaços dos leitores. Deve-se imaginar quase tudo.

Destaco, para efeito de comentários, A Formiga-Branca.

Que tempo seria? Provavelmente, o das chuvas

Aquele em que as plantas ressuscitam

Com pujança, e os animais, tendo alimento,

Mais se reproduzem.

Foi hoje, façamos de conta.

A poetisa não  lembra exatamente do momento cronológico, mas pelo acontecido deduz que seria o das chuvas. Não importa quando tenha sido: “Foi hoje, façamos de conta”. O que importa não é a data em si, mas o fato tal como ela o lembra no momento de sua escritura.

Descreve as cenas de uma recepção de casamento. Todos saboreando a canja e outras iguarias. De repente os insetos, as formigas brancas estragando tudo. Num primeiro momento pode-se pensar, como eu, que a poetisa está brincando. Mas o poema, no fundo, lembra cenas amargas. Prejuízo. Decepção. E somente restou o pato assado de uma Dona Leonor. Talvez uma mulher mesquinha que não quis abrir o pato para todos e pretendia levá-lo de volta. Não sei. São espaços que a poetisa nos deixa. Ou Dona Leonor pressentia o que viria a acontecer e o pato salvaria o jantar?

De qualquer forma todos os poemas deixam espaços que deveremos completar com nossa imaginação. Este tipo de literatura é justamente aquele que nos abre as comportas da imaginação, dos necessários exercícios de fantasia. A literatura de Estela é feita de silêncios. São os silêncios reveladores, indicadores, apenas. Não há certezas. Somente possibilidades nos espaços que completamos.

Contudo, o maior mérito de Chão de Papel está naquele das grandes literaturas: a escritora, por intermédio de sua perspectiva subjetiva, materializa momentos de sua vida que não pertencem somente a sua vida, num eu egoísta. Não. Haja vista que não há datações inúteis. Apenas um contexto africano, definido, mas que jorra imagens poéticas universais. E essas imagens pertencem a todos.

Retomei a leitura de Chão de Papel, diversas vezes, e, em alguns momentos, pensei, por conta de minhas associações subjetivas, somente por isso: quando Estela teria escrito Chão de Papel? Foram poesias planejadas e durante anos ela as retomava e arrumava? Será que houve algum fato que a impulsionou a escrevê-las? Por quê? Será que Estela fez um retiro somente para escrever Chão de Papel? São questões, bem sei, que beiram o processo de criação da artista. Mesmo que ela revele o processo, somente ela, a poetisa, pode produzir o efeito final da arte, somente o escritor, com sua sensibilidade incomum, está a serviço da verdade. Por isso, na Grécia Antiga os poetas, conforme se sabe, eram denominados os mestres da verdade.

Chão de Papel, estrelas miúdas, pontos brilhantes nos infinitos labirintos da memória, resgata um passado ressignificado e, como tal, restabelece, em parte, uma possível intersujetividade há muito tempo perdida no perverso cotidiano (intencionalmente provocado pelos poderes) da humanidade.

 

 

CHÃO DE PAPEL
Maria Estela Guedes.
Prefácio: Nicolau Saião.
Lisboa: Apenas Livros Lda.
46 págs. 2009, 3,80 euros.
E-mail: geral@apenas-livros.com

 Site: www.apenas-livros.com

http://www.triplov.com/estela_guedes/chao-de-papel/index.html

 

 

 

Ana Maria Haddad Baptista (Brasil).
Mestre e doutora em Comunicação e Semiótica. Pós-doutora em História da Ciência. Professora e pesquisadora da Universidade Nove de Julho, São Paulo, Brasil.

 

 

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