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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2010 | Número 07
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I
Este é um livro com cheiro de África. E é uma África vista
com isenção por quem viveu na Guiné-Bissau de 1956 a 1966, ao tempo do
colonialismo que coincidiu também com o de sua formação pessoal. E
ninguém esquece os anos de sua formação. Muito menos um poeta. Por isso,
Maria Estela Guedes, nascida em Britiande/Lamego em 1947, reuniu os seus
poemas evocativos de uma Guiné-Bissau que já não existe neste livro,
Chão de Papel, que, como observa Nicolau Saião na apresentação, traz
uma mensagem lucidamente antilírica – “se entendermos como lirismo essa
escrita impressionista (um pouco defasada da realidade mas legítima e
soberana – que por aí vai dando cobertura a um romantismo de pacotilha,
ultra-sentimental e, por isso mesmo, refalso e, no fundo, claramente
pedante”). |
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DIREÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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ADELTO GONÇALVES
Poesia que brota
de Bissau
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Essa
evocação começa pela imagem que guarda dessa Guiné-Bissau, “um mapa de
ilhas, um arquipélago de lembranças”, especialmente da Fonte Vaz
Teixeira, àquela época “oculta na floresta, em ruínas”, que hoje,
provavelmente, não mais existe, “como tantas outras coisas que os anos
de independência fizeram desaparecer”, como diz Saião, que também lá
andou por 27 meses ao todo, à época em que havia a “província
ultramarina da Guiné” e os jovens portugueses de então eram obrigados a
defender, às vezes à custa da própria vida ou de abalos ao próprio
corpo, o sonho de grandeza salazarista que só existia na retórica dos
discursos oficiais.
O olhar feminino de Maria Estela capta na memória lugares e
momentos que o olhar de um poeta homem nunca seria capaz, como se
constata neste poema intitulado “A Praça”:
Ias à Praça – relíquia verbal de antigo
nome
Da Praça de S. José de Bissau –
Com as casas de sobrado e varanda
De madeira pintada de azul-mantenhas:
-- Cuma di corpo? E bo papé? E bo mamé?
Tens um objetivo em mente, o Mercado Municipal,
E um local preciso aonde vais em sonhos.
Que queres tu comprar? Sabes que é coisa
De comer, mas o quê? A vagem branca
E azeda de tamarindo? Castanha de caju?
Volta e meia sonhas com isso
Mas ainda não descobriste o que vais tu
Comprar à Praça com as suas casas de sobrado
E varanda de madeira pintada de azul-mantenhas.
Por baixo as lojas de varejo
-- Ali o estúdio fotográfico do pai do Erasmo,
Além a Casa Pintozinho –
A velha escola onde estudaste
Encostada a um majestoso mangueiro
E na esquina, instalada no chão com fogareiro
A gorda Nha Tilda torrava mancarra
Que comíamos ainda quente
A cheirar a vida airada e a gente de barriga cheia. |
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II |
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Como se vê, até reconstituição da fala crioula se tem neste
poema que, de tão denso e concatenado, teve de ser reproduzido aqui de
forma integral. Essa evocação sente-se também em “Cesarianas e
casuarinas” em que Maria Estela diz:
Passeios nas tardes de domingo
Pelo Jardim de Teixeira Pinto
Empurrando o carrinho com o bebé de D. Otília
Nascido entre dores e cortes de cesariana...
A estátua do militar no alto do outeiro
A dominar toda a cidade de Bissau
Mira ao longe as evoluções
Dos milicianos e da Mocidade Portuguesa
Diante do palácio do governador e do obelisco
No centro da Praça do Império,
Coroada com a legenda “Ao esforço da Raça”.
Hoje é o mesmo obelisco mas diversa a legenda:
“Monumento aos Heróis da Independência” (...).
Ao contrário do que se pode imaginar, estes versos de Maria
Estela não evocam o colonialismo com saudade nem procuram mostrar que os
tempos da presença portuguesa na África teriam sido melhores do que os
vividos hoje. Até porque tiranos são tiranos, tenham a pele clara ou
escura, como bem sabem os guineenses. E mesmo aqueles portugas, os
“tugas” que lá viviam, eram vitimas de um mundo mal construído e
distribuído que não lhes deixava outra opção que não fosse emigrar – até
porque para que meia-dúzia de famílias pudessem se refestelar no bem
arrumado jardim à beira-mar plantado, a choldra tinha de ser
praticamente expulsa para os quatro cantos do mundo, ainda que à custa
de desertificação do país. Havia sido assim desde os tempos da
monarquia. |
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III |
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A tragédia da Guiné-Bissau é que, depois que os tiranetes
brancos foram embora, ficaram os tiranetes negros e a mesma opressão de
uma classe sobre a outra. A sorte é que, como diz Maria Estela, “os
tiranetes duram pouco/ e os grandes tiranos, por muitos quarenta anos/
que governem, também pouco duram”, ao evocar no poema “A Kabi
Nafantchamna, no dia da sua morte”, a manhã de 2 de março de 2009, em que
os noticiários informaram sobre o levante que resultou no assassinato do
presidente Nino Vieira (1939-2009):
(...) Conheces o ditado “Quem com ferro mata...?”
Conheces, Nino? Ainda ninguém disse nada
Mas podes crer que
Mesmo sem despacho
Alguém te despachou para o tribunal do Irã.
Bárbaros, violentos, egotistas.
Iguais em tudo na guerra
E iguais em tudo na paz
Aos mais bárbaros, violentos e egotistas
Americanos, asiáticos e europeus.
Em “O
cais do Pidjiguiti”, Maria Estela, à semelhança de Camilo Pessanha
(1867-1926) em “À noite, no Pego-Dragão”, uma das suas traduções em
forma livre das “Oito Elegias Chinesas”, diz num poema perpassado de
efeitos sinestésicos: “Não quero partir sem voltar ao Ku Pelon / A ouvir
as serenatas do meu amigo”. E recorda que no Pidjiguiti dezenas de
trabalhadores foram abatidos, vítimas indefesas de um massacre, ao tempo
do colonialismo, para observar, em seguida, como se fizesse um mea
culpa em nome dos opressores de então, ainda que nada tivesse a ver
com aquilo e fosse apenas uma adolescente de 12 anos de idade, talvez
com a ingênua idéia de que, se os colonialistas tivessem oferecido
letras, ou seja, educação, em vez de opressão, talvez o caminho tivesse
sido outro, de entendimento, embora se saiba que o colonialismo, como o
escorpião, jamais renunciaria a sua natureza:
(...) Assim depois o crime repetido insaciavelmente
Por negros e brancos
E mulatos igualmente
Até o dia de ontem
Em que também foi assassinado
Nino Vieira, o presidente.
Sem grandes diferenças, na morte
Todos iguais
Sem precisão de invocar raças
Nem a paleta das cores (...).
Na evocação, Maria Estela lembra que o tempo do cais do
Pidjiguiti vai longe, 3 de agosto de 1959, dia em que começou a guerra.
(...) Nunca mais seríeis felizes como antes.
Não era nosso o Chão de Papel
Mas podia ter sido
Se em vez de chumbo, ódio, vinganças e cana
Tivéssemos semeado letras na terra.
Versos como esses refletem o caos emocional que sofre todo o
desterrado. E nesse caso Maria Estela é também uma desterrada, pois, ao
voltar a Portugal, nas noites de sua solidão, passou a perguntar pelos
amigos e familiares que haviam ficado na terra africana que a vira
crescer, pelos desaparecidos, sem conseguir banir da memória o drama
vivido, o drama da ruptura com um mundo que desapareceu.
Para aqueles que desconhecem a Guiné-Bissau, é preciso que
se diga que o título Chão de Papel aponta para a pátria-chica do
grupo étnico desta região guineense: a tribo dos Papéis, cerca de 40 mil
naquela altura, como explica o alentejano Saião, bom conhecedor da
região. Trata-se de um trocadilho, um simbolismo feliz, acrescenta
Saião. |
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IV |
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Editora da publicação eletrônica Triplo V (www.triplov.com),
Maria Estela Guedes tem uma vasta obra publicada de livros de e sobre
poesia em que se destacam Herberto Helder, Poeta Obscuro (Lisboa,
Moraes Editores, 1979), SO2
(Lisboa, Guimarães Editores, 1980), Eco, Pedras Rolantes (Lisboa,
Ler Editora, 1983), Mário de Sá Carneiro (Lisboa, Editorial
Presença, 1985), À Sombra do Orpheu (Lisboa, Guimarães Editores,
1990), A_maar_gato (Lisboa, Editorial Minerva, 2005), Lápis de
carvão (Lisboa, Apenas Livros, 2005), Ofício das trevas (teatro (Lisboa,
Apenas Livros, 2006), A Boba (monólogo em três insônias e um
despertador), com prefácio de Eugénia Vasques (Lisboa, Apenas Livros,
2006), À la Carbonara, em co-autoria com J.C.Cabanel & Silvio
Luis Benítez Lopes (Lisboa, Apenas Livros Lda., 2007) e Poesia na
Óptica da Óptica (Lisboa, Apenas Livros Lda., 2008). |
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Adelto Gonçalves (Brasil)
Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade
de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira
(Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).
E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande
PORTUGAL |
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