Luiz Pacheco

Luiz Pacheco (ainda...) resiste

Entrevista de Guilherme Pereira

INDEX

Ainda resiste
Agonia do génio
Como é que ocupas aqui o tempo?
Cresceste numa família de militares...
E tu no Liceu Camões?
E a Contraponto?
Escreveste também na Seara Nova.
[Batem à porta do quarto, entra um homem]
Como é que era no Limoeiro?
Referes-te muitas vezes ao Café Gelo. Conta aí uma história.
O libertino passeia-se no lar.
 Foste um dos responsáveis pelo sucesso de O Que Diz Molero.
Opinião sobre o José Saramago, queres dar?
E a Admirável Droga?

E a Contraponto?
A Contraponto: Cadernos de Crítica e Arte saiu precisamente em Setembro de 1950. Era uma pequena intervenção, um caderninho no modelo de uns cadernos da Pathê Baby, que tinha um formato muito pequenino, era uma espécie de revistinha publicitária sobre cinema e fotografia. Eu vi que aquilo era feito na editora gráfica portuguesa, na Rua Nova do Loureiro, ali ao pé do Conservatório Nacional de Música, e fui lá. A tipografia era do Carlos Carvalho e dos irmãos, três ou dois, já não sei, um era meio patareco... fui lá e pedi um orçamento para dois mil exemplares e depois convidei quem?, convidei o Abelaira, o Jaime Salazar Sampaio, o Vasco Vidal, a Arlinda Franco Oliveira, uma engenheira agrónoma, e um tipo que tinha sido meu colega na Faculdade de Letras, o Eugénio Morais Cardigues, fumava cachimbo, era muito machista... foi director da Escola Comercial do Montijo, depois apagou-se por completo como figura intelectual que durante algum tempo chegou a ser... era uma revistinha de crítica assanhada, anti-salazarista... foi muito mal distribuída aqui em Lisboa e aquilo veio tudo devolvido porque a revista acho que foi acoimada de coisa reaccionária e fascista e não sei que mais... bem, o que é certo é que eu aí fiquei com uma grande desilusão, foi um bom choque que eu tive... O número 2 saiu em 1952 e o 3, só metade porque não havia dinheiro, só saíram as páginas 1, 2, 7 e 8. Quase ninguém soube que aquele número saiu, foi feito na Sertã, em 1962, dez anos depois do segundo número. A revista acabou ali, porque eu convenci-me que fazer uma revisteca a pagar aos colaboradores 200 escudos, o que na época era um dinheirão, era muito mais que 20 contos hoje, e publicar coisas que não me interessavam muito, porque a gente convidava um fulano para fazer um trabalho ou prestar colaboração e depois o tipo escrevia coisas que não nos agradava nada... então resolvi começar a fazer edições pessoais...

... e criaste a editora Contraponto...

Não, a editora começou a funcionar em 1951, logo a seguir ao primeiro número da revista. A primeira edição Contraponto foi o Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano, do Mário Cesariny de Vasconcelos. A editora tem origem na tentativa de uma terceira via, não neo-realismo, não surrealismo, mas uma terceira via. A Contraponto vivia um bocadinho da minha amizade com o Jaime Salazar Sampaio... o autor da Contraponto era o Jaime, dramaturgo, poeta, contista. Depois, quando apareceu o Cesariny, ele ficou muito lixado porque eu fiquei um bocado deslumbrado com o Mário… e estes gajos, que só querem um gajo para si, o que é uma estupidez, um gajo com uma ligação amorosa, carnal, com uma mulher ou com um homem, que tenha ciúmes é uma coisa, agora dois amigos, um amigo tem um 3º, um 4º, um 5º amigo, pois ainda bem, é bom sinal, é sinal que é estimado, não sou só eu que o aprecio, mas não, era uma inveja, uma ciumeira, a mesma coisa aconteceu depois com o Cesariny e o Herberto Helder, ora o Cesariny não tinha que ter ciúmes do Herberto… ficou f*****, de repente o Cesariny supunha que o Contraponto era só para ele... O Gaspar Simões chamava-me «o Sacristão do Surrealismo», por ter a editora, por publicar aqueles gajos...

E o António Maria Lisboa?

O Lisboa era um espírito insubmisso. Eu dei-me mais com o Lisboa foi em Benfica, na Villa Anna, no Verão de 1950, antes dele ir para Paris a primeira vez. Ele foi dormir lá a Benfica uma ou duas vezes. Lembro-me que íamos a pé às tantas da amanhã, quando perdíamos o último carro do Arco do Cego para Benfica, que era à uma e meia... então íamos a pé por aí fora. A minha mulher, a Maria Helena, e os miúdos estavam em casa dos meus pais, em Bucelas, ao pé do Moinho, e eu ia dormir a Lisboa, em Benfica, por causa do clima húmido de Bucelas, que me provocava grandes ataques de asma. Em Benfica era assim: de um lado a Villa Ventura e, do outro, a Villa Anna, o nº 674, que era a casa dos meus avós, onde depois também foi viver, para o andar de cima, o meu tio e padrinho, o coronel Fernando António Gomes. Ainda lá estão as casas, eu julgava que não estavam mas ainda lá estão. Ali mesmo ao lado havia a família Lobo Antunes, viviam numa vivenda formidável, tapada por um muro muito alto... porque os Lobo Antunes de repente tiveram... foi um gajo que me contou... eles não falam nisso... o pai destes Antunes todos, o médico, morava numa travessa muito pequenina, num prédio antigo... comprou um bilhete no Natal e saiu-lhe a sorte grande... na altura era uma coisa enorme... e depois ele comprou a vivenda... eu soube isto por um tipo que também morava lá... a vivenda deles foi abaixo, abriram uma avenida... Bom, mas voltando ao Lisboa. Eu depois perdi com o contacto com o Lisboa, que só venho a retomar em Cabeço de Montachique estava ele internado numa casa de saúde. É aí que ele me entrega o Ossóptico e Erro Próprio, edições dele, feitas em Coimbra, quando ele esteve internado no Sanatório dos Covões. Distribuí aquilo em Lisboa, ofereci, vendi, vendi muito pouco, lembro-me que havia uma gralha no Erro Próprio, que eu emendei até com tinta verde, que era uma tinta que eu usava na altura. Depois editei-lhe Isso Ontem Único, três livros-plaquetes. Quando ele morreu tive muita pena… ninguém sabe o que é que daria o Lisboa 50 anos depois… a vantagem de morrer cedo e com uma obra que foi para o lixo... o que se aproveitou não é nada…

Fizeste parte  da “equipa do terror”...queres falar disso?

Opá, isso não interessa para nada. A equipa do terror eram três gajos que viviam perto uns dos outros, eu, o Manuel de Lima e o Cesariny, a magicarmos projectos de cartas, de panfletos, de coisas assim... O Cesariny morava na Rua Basílio Teles, entre a Estada de Benfica e a Columbano, o Lima morava na Rua Dr. António Martins, que era também para ali, muito próximo de nós, eu estava na Palhavã, na Estrada de Benfica, com a mulher e os miúdos. Depois nunca se fazia nada... nunca houve terror... a gente não tinha dinheiro, não havia dinheiro... lembro-me que as nossas refeições era puré de feijão... o Cesariny em casa era um ovo para três, ele, a mãe e a irmã... Foi aí nesse quarto da Estada de Benfica que eu fiz o Contraponto 2, que se editou o Malaquias ou a história de um homem barbaramente agredido, do Lima, julgo que se publicou também o Carlos Wallenstein. O Isso Ontem Único também já estava publicado, esse ainda foi publicado no Bairro Tacha, na Buraca... Opá, não é fácil de repente reconstituir a vida de uma pessoa que tem andado numa vida de marginal...saltimbanco...putanheiro... eu já morei em quase toda a Lisboa...

Como é que tu apareces a escrever num jornal de automobilismo como O Volante?

O Volante era um jornal maluco, era a publicação mais antiga de automobilismo em Portugal. Era dirigido pelo Campos Júnior, que também tinha o Átomo, com o Gaspas [Gaspar Simões] como crítico literário, e o Pedro da Silveira a mexer lá por trás. A minha vantagem em relação ao Cesariny era que eu sabia andar de bicicleta. Num artigo sobre turismo, o Cesariny disse: “da Serra de Sintra vêem-se os montes do Alentejo”. Era a Arrábida... Fizemos, por exemplo, a cobertura do circuito de Monsanto, com o Fangio... depois traduzíamos artigos do L’Equipe. Depois o Pedro da Silveira arranjou-me um emprego no Mundo Motor ou Mundo Motorizado, que ficava na rua do Alecrim, era uma imitação d’ O Volante. Só lá estive um mês, nunca me pagaram. Aí também fazia traduções do L’Equipe, punha-se a riscar o jornal e o editor dizia: “não faça isso que o jornal é do homem do quiosque, que nos empresta”. O Volante ainda assinava o L’Equipe, esses nem isso...