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JOSÉ EDUARDO FRANCO |
O ANTIJESUITISMO EM PORTUGAL:
HISTÓRIA E MITO (1) |
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"Não devemos esquecer que Inácio de Loyola foi, no seu tempo, um «marginal», nem que a Companhia de Jesus ganhou muita glória das provas por que passou em nome da sua paixão pelo pluralismo e do seu respeito pelas diferenças. Da promoção dos «ritos chineses» à invenção dos «redutos» do Paraguai e ao reconhecimento do sinantropo, o jesuíta é aquele que se ri das fronteiras do tempo e do local e exalta a alteridade". Jean Lacouture
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1. Considerações teóricas preliminares |
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Se nos quisermos dedicar seriamente ao estudo da Companhia de Jesus, necessitamos de realizar quase permanentemente dois auto-exorcismos. O exorcismo do demónio do encantamento e do encómio pela organização, eficácia e obra dos Jesuítas que nos pode possuir, impingido pelos abundantes livros filojesuíticos. E o exorcismo do demónio da acusação e da execração da acção dita perversa dos mesmos Jesuítas que nos pode também facilmente enfermar as análises, inculcado pelos mananciais de literatura antijesuítica produzida por séculos de polémicas e lutas contra a Companhia de Jesus e que deixaram na nossa mentalidade e na nossa cultura arquétipos ou estereótipos, dos quais temos dificuldade de nos despir. Urge que façamos esta ascese intelectual para abrir caminho de uma história cada vez mais crítica e para nos distanciarmos da chamada história partidária, no dizer de Borges de Macedo, que dividiu transversalmente a nossa historiografia desde o Marquês de Pombal e nos pode impedir de sermos mais equânimes na avaliação dos protagonista do nosso passado nacional.
A figura lendária dos Jesuítas e do Jesuitismo tornou-se um dos mais fabulosos e mais significativos mitos engendrados na história da cultura portuguesa, congénere do mito internacional da Companhia de Jesus. Produzido pela militância propagandística do movimento antijesuítico, a génese deste processo de mitificação dos Jesuítas surge no seio da própria Igreja. Os mentores e activistas do combate contra os religiosos da Companhia foram primeiramente eclesiásticos. Com o evoluir da história desta Ordem, o legado antijesuítico primigénio foi sendo apropriado por outros sectores menos comprometidos com a Igreja hierárquica. No período do iluminismo, a tradição antijesuítica foi gerida e desenvolvida empenhadamente pelos adversários regalistas da supremacia do poder papal, para, depois, no tempo do liberalismo e do republicanismo emergente de oitocentos, o antijesuitismo ser herdado e recriado pelas elites culturais nacionalistas de filiação laica e anticlerical, e pelos mais acerbos intelectuais anticatólicos.
Se percorrermos atentamente os ficheiros das principais bibliotecas e arquivos portugueses e estrangeiros, por toda a Europa e nos países onde a Companhia de Jesus esteve presente, não podemos deixar de ficar surpreendidos com os mananciais de documentação antijesuítica que amiúde encontramos. De facto, é de mananciais de literatura antijesuítica que se trata quando lançamos o olhar sobre os acervos documentais que dão forma ao mito fantástico dos Jesuítas na história e na cultura portuguesa.
Michel Leroy na sua tese de doutoramento em Literatura sobre o Mito Jesuíta em França, advoga que "o mito e a literatura mantêm relações de contiguidade e de ambiguidade. Com efeito, o mito político é um enunciado cujo conteúdo é dado por autêntico e tende a provocar, no seu destinatário, segundo as regras tradicionais da retórica, uma emoção (indignação, receio, desprezo, pena ou confiança...), ela própria produtora de acção, no plano político. O mito joga, por isso, com a ilusão do real, como a ficção literária, dramática ou romanesca; mas esta, mau grado as convenções que criam um efeito de realidade, não pretende reenviar para um referente autêntico. Mito e literatura situam-se um e outro nas fronteiras do imaginário: o mito apoia-se na dinâmica do imaginário para agir sobre o mundo real; a literatura transfigura o real para criar um mundo imaginário. O mito utiliza e parasita a ficção literária, apresentando-a como um condensado de realidade" (1).
Este mito negativo que se inscreve no género mais alargado dos famigerados mitos conspiracionistas da história Ocidental (v.g. complot templário, complot judeu, complot maçónico), desenvolve uma figuração do Jesuíta como o Outro, não um outro de carácter divino ou como o estrangeiro na acepção normal, mas um outro como negação extrema do Nós, como o estrangeiro por excelência, alheio a qualquer fidelidade pátria, que não seja a fidelidade ao seu instituto, considerado uma "máquina" temerária, orientada para promover a ruína das nações. A ruína das instituições de poder da nação que a Companhia propugnaria visa, segundo os antijesuítas na sua ideografia do mito, instalar uma nova ordem, assente no universal domínio da Societas Iesu.
Este vector ideológico-político basilar do mito, assente num receio regalista e nacionalista em relação à presença de uma instituição de obediência ultramontana, muito poderosa dentro do Estado, teve em Portugal, como o seu grande fundador e promotor, o Marquês de Pombal. Ele forjou nos seus catecismos antijesuíticos a imagem preclara do mito negro dos Jesuítas. Aqui os religiosos da Companhia de Jesus são dados como os grandes conspiradores da história, com uma força tão cheia de significado que constitui uma referência inspiracional para os antijesuítas coetâneos e vindouros, quer em Portugal, quer ao nível Europeu. Pombal, aliás, vai investir, pelos canais diplomáticos e com os meios do Estado, na tradução de libelos e documentos antijesuíticos nas principais línguas internacionais da época no sentido de fazer surtir efeito nas monarquias europeias a sua odiosa campanha contra a instituição que ele via como uma espécie de doença degenerativa e contagiosa que corrompia a sociedade onde instalava o seu habitat.
Não obstante os interesses e as animadversões pessoais estarem misturadas com uma ideia de Estado regalista, o grande ministro de D. José I deu a esta campanha um sentido nacional e estatal, como sendo um serviço imperioso e nobre ao serviço do Estado e para sua salvaguarda e progresso.
O mito jesuítico forma-se na relação intrínseca entre uma determinada acção político-ideológica e a sua codificação literária. Mais uma vez Michel Leroy teoriza que "o mito é constituído para fins de eficácia política (...). Esta instrumentalização não permite, contudo, de lhe recusar uma dimensão literária (...). Porém, a eficácia do mito não é sempre proporcional ao valor literário, à originalidade do seu tratamento (...). O mito pessoal é mais rico de significados e mais durável que o mito colectivo. Mas a história imaginária que contam os mitos não deixa de exercer uma profunda influência na história real. O estudo do mito permite esclarecer as manifestações da propaganda e os seus laços com a escrita, neste período da nossa história em que se esboçam as ideologias, em que desabrocham as instituições políticas modernas (...)" (2).
No caso do mito da Companhia de Jesus, ou seja, a construção de uma ficção que se faz passar por indubitavelmente verdadeira, a ficção é confeccionada no passado, mas apresenta uma virtualidade explicativa e uma função mobilizadora no presente e para o futuro. Este mito é dado como uma proposta global de explicação de uma realidade, neste caso particular, uma realidade apresentada e lida de forma negativa. Esta explicação é dada através da busca de uma causalidade única, uma causalidade diabólica (3).
Na esteira do que perscrutou Michel Leroy, o mito jesuíta no qual se deve inscrever o nosso estudo da visão do outro, bebe em elementos tradicionais, na sua maioria extraídos da literatura anticlerical, como é o caso da imagem do mau padre, do hipócrita, do desonesto, do oportunista, em que recai uma longa história de suspeita e de acusação (4). Foi de tal ordem espantosa a história de hostilização e de infamação dos religiosos da Companhia de Jesus que se pode afirmar, a partir da leitura global dos documentos que traçam a evolução deste processo, que todos os crimes, malefícios, todas as caras do mal e do negativo que afloraram à imaginação humana foram atribuídas e identificadas com os Jesuítas. Esta instituição foi identificada com o próprio mal, no sentido mais incarnado e mais destrutivo do termo. Sob uma denominação sagrada e santa este mal se teria instalado no seio dos "sagrados" Estados dos homens - a companhia de Jesus.
Por mais ameaçadora e até escandalosamente caluniosa que se apresente esta história oprobriosa dos Jesuítas, consignada na literatura negra antijesuítica, ela deve ser interpretada de forma complexizante e crítica, sine ira et studio, despida da paixão que a sua leitura pode suscitar. O vector hermenêutico fundamental que deve presidir à nossa análise é o entendimento de que esta literatura edifica um mito negativo, monstruoso mesmo, baseado na avaliação do papel negativo de uma instituição que se tornou preponderante e hegemónica na sociedade portuguesa e até noutras sociedades em termos internacionais. A compreensão das causas que estão na origem desta formulação negativa deve considerar não só fundamentalmente uma animadversão do foro pessoal, mas sem descurar esta, devemos ter em conta as concepções políticas, culturais e até sócio-pedagógicas e filosófico-religiosas que informam e dão justificação teórica aos também presentes, e não menos mobilizadores, objectivos relacionados com os interesses pessoais, económicos e do baixo interesse político. Recordemos aqui aquele célebre epigrama de Benjamin Constant que fazia dos Jesuítas o inimigo de recurso para desviar as atenções dos problemas políticos quando não havia outro alibi melhor: "On a tort de s'embarrasser pour l'opposition. Quand on n'a rien de bien, il nous reste les jésuites. Je les sonne comme un valet de chambre: ils arrivent toujours" (5).
Esta perspectiva hermenêutica deve-nos levar a servir o mais possível a verdade, fazendo deste esforço interpretativo e explicativo um "instrumento de liberdade" (6), cumprindo uma formação da história que é "esse conhecimento das sociedades vivas" (7) e nunca o seu empolamento e adaptação para fins de julgamento doutrinários.
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2. O Marquês de Pombal, fundador do mito dos Jesuítas |
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Stefan Gatzhamer assevera de forma significativa no seu estudo sobre o Antijesuitismo europeu que "o antijesuitismo não conhece fronteiras" (8). Pois além de o antijesuitismo remontar à génese da própria Companhia de Jesus, enquanto instituição aprovada pelo Papa Paulo III em 1540, ele acompanha fielmente a afirmação desta ordem religiosa nos diferentes espaços nacionais suscitando tanto o filojesuitismo mais fiel, como o antijesuitismo mais hostil. Com efeito, o antijesuitismo quer a nível nacional, quer a nível internacional é fenómeno uterino, pois nasceu no âmbito do processo de formação e de implantação da Companhia de Jesus. Por isso, ele é um fenómeno originário que surge no seio da própria Igreja. Em primeiro lugar, o antijesuitismo engendra-se no decurso das polémicas em torno do questionamento da ortodoxia doutrinal do fundador desta ordem, Inácio de Loyola. Portanto, o antijesuitismo foi em primeiro lugar um anti-iniguismo. A que sucede imediatamente as controvérsias em torno da natureza e identidade do instituto regular dos Jesuítas enquanto Ordem religiosa aprovada pela Santa Sé. Nesta fase genesíaca do movimento antijesuítico ele resulta de um exacerbamento do clericalismo e do congreganismo em relação a este elemento estranho, porque novo e com características que se distanciavam dos parâmetros clássicos próprios da Ordens Religiosas católicas; e além disto, este elemento peculiar afirmar-se com um extraordinário dinamismo concorrencial. O capital crítico que a Companhia de Jesus pretende representar para a renovação do monaquismo e vida cristã tradicionais carentes de reforma, bem como os terrenos de influência e os privilégios conquistados pela nova ordem em detrimento das antigas ordens instaladas não poderiam deixar de causar reacções contundentes.
Nos primeiros dois séculos de existência da Companhia de Jesus em Portugal, o antijesuitismo acompanha permanentemente a acção dos religiosos inacianos nos diferentes cenários em que se instalam. Na metrópole, o antijesuitismo manifesta-se nas disputas, nos debates e nas polémicas ocorridas em torno do poder, da riqueza e do expansionismo educativo dos Jesuítas. No Oriente e na África, o antijesuitismo desenvolve-se especialmente nas controvérsias sobre as metodologias missionárias, sobre a prática comercial dos Jesuítas e em torno das disputas de territórios de missão e de influência. No Brasil, o antijesuitismo ganha uma importante visibilidade e eficácia no decurso dos inúmeros conflitos com os colonos por causa da dilemática questão da escravatura dos índios e das aldeias missionárias sob administração jesuítica.
Embora se deva inscrever as raízes da produção crítica à ordem inaciana nos alvores da implementação e afirmação desta em terras lusitanas, é com o Marquês de Pombal que o mito se estrutura doutrinalmente de forma sistemática no nosso país. Pombal dá forma teórica acabada ao mito dos Jesuítas, imprimindo-lhe a eficácia que as críticas esparsas e pontuais feitas aos Jesuítas careciam. Careciam de um edifício argumentativo, de uma doutrina, de uma caracterização e sistematização global que lhe desse nome, forma, meios e por fim um efeito mobilizador. Isto foi feito pelos manuais de propaganda pombalina que conduziu à expulsão de Portugal em 1759 e à extinção internacional pelo Papa Clemente XIV em 1773.
O mito dos Jesuítas começa por ganhar consistência quando passa do boato, da calúnia, da suspeita oralizante para a forma sistematizada pela linguagem escrita, em suma, quando se consuma literariamente numa sistematização doutrinária. Pombal, o grande fundador do mito em Portugal, dá-lhe uma vasta e prolixa forma literária. Escreve, promove, supervisiona e patrocina a produção de obras, de panfletos, de libelos e leis contra os Jesuítas, as quais se pode denominar de forma geral de literatura antijesuítica pombalina. É esta que estabelece o mito nos seus contornos essenciais e globais. Forma também o protótipo do mito do complot jesuítico que vai inspirar toda a posteridade antijesuítica portuguesa de forma indelével.
Neste processo de efabulação literária, regista-se uma inter-influência de dados, de opiniões, de pareceres, de livros, de histórias, de casos, proporcionada pela história escrita do antijesuitismo internacional. Traduz-se obras para português a fim de dar razão e apoiar o programa de escrita antijesuítica pombalino. Mas mais do que isso Sebastião José de Carvalho e Melo tem a preocupação de investir grandemente na internacionalização da imagiologia que ele mesmo constrói em Portugal dos Jesuítas e da avaliação da sua acção histórico-cultural, política, educativa, religiosa, etc. Para o efeito promove uma campanha europeia de tradução das obras, leis, libelos, cartas pastorais, pareceres escritos em Portugal contra os Jesuítas (9). Por exemplo, no "Prólogo del Traductor" da edição espanhola da Deducion Chronologica y analitica, diz-se que esta obra é dada à luz para dar a conhecer os efeitos nefastos da obra sistemática de fanatismo promovida pela Companhia de Jesus em Portugal, a fim de servir de exemplo à Espanha para se precaver contra "este sistema de perversão". E elege como modelos por excelência destes impostores jesuítas, quais heróis da desgraça portuguesa, Simão Rodrigues, António Vieira e Gabriel Malagrida (10).
Isto é realizado paralelamente aos esforços diplomáticos para unir a diplomacia dos diferentes Estados absolutistas no mesmo escopo de fazer pressão junto da Santa Sé para obter a extinção da ordem, como se este fosse uma prioridade fundamental para estabelecer a paz no seio da própria Igreja e na Europa cristã (11).
Este empreendimento de tradução nas principais línguas das obras que figuravam os Jesuítas como uma autêntica e terrível peste, como uma doença contagiosa, como uma máquina de desavença, de intriga e de destruição dos poderes legítimos e da ordem social estabelecida, contribui para a criação de uma mentalidade antijesuítica e instiga os intelectuais iluministas e regalistas espanhóis, franceses, italianos, alemães, entre outros, a defender a necessidade de seguir o "bom" exemplo português de combater a poderosa Companhia de Jesus.
O ministro de D. José I fê-lo em nome da necessidade de Portugal passar a andar ao passo da Europa iluminada, responsabilizando a Companhia de Jesus por toda a decadência e pelo consequente atraso que Portugal sofria, atraso que o colocava abaixo do nível do progresso e do prestígio cultural dos países cultos da Europa. Todavia, no processo de mitificação dos Jesuítas e da promoção da sua exterminação, Portugal foi o pioneiro. A Europa seguiu-lhe o exemplo. A Companhia de Jesus foi oficialmente extinta pelo Breve Dominus ac Redemptor (12). E Pombal obteve uma das vitórias mais paradoxalmente ambíguas e amargas da História de Portugal.
Ao longo do século XIX a tradição liberal e republicana antijesuítica divulgou menos a sua produção antijesuítica no estrangeiro que traduziu e difundiu em Portugal obras contra o jesuitismo, particularmente de língua francesa. Já com a primeira República e a suas obras saídas a lume para sustentar pela força da palavra escrita as campanhas persecutórias contra os Jesuítas, verifica-se novamente um investimento na tradução, particularmente par a língua diplomática de então, o francês, de alguns livros que faziam dos Jesuítas os representantes aguerridos do velho regime deposto e os fautores do obscurantismo, do fanatismo e da ignorância que o republicanismo queria extirpar.
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3. As imagiologia mítica dos Jesuítas
3.1. Na literatura antijesuítica pombalina |
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Entre a vasta literatura antijesuítica vinda a lume sob o patrocínio, inspiração e até do labor escrito do Marquês de Pombal, ergue-se, pesada e dura, aquela obra que se vai tornar paradigmática no quadro do antijesuitismo português: a célebre Dedução chronologica e analytica. Na primeira parte desta obra prolixa e fastidiosa, o autor faz a história da acção nefasta da Companhia no plano político, isto é, no quadro das instituições político-sociais do Estado Português, distribuída em dois volumes. Na Segunda Parte, desenvolve a análise histórica da acção da Companhia de Jesus, no âmbito das estruturas da Igreja, num volume apenas. O quarto e quinto volume é dedicado à apresentação das ditas "provas" que são constituídas por cartas, ofícios, regimentos, etc., para dar fundamento documental a este requisitório (13).
A doutrina antijesuítica desenvolvida nesta obra arquétipa encerra e estabelece a lenda negra dos Jesuítas portugueses como síntese global de toda a literatura antijesuítica pombalina, esta que foi considerada a opus monumentale, "a obra porventura a mais importante de quantas se têm publicado contra os Jesuítas" (14). Esta obra é atravessada por uma ideia-chave, uma tese orientadora que a estrutura, tese univalente que pretende oferecer uma explicação global para a decadência e o obscurantismo que marcou os últimos século de história portuguesa, por contraste ao presente português que renasce pelas Luzes imprimidas pela acção benéfica do despotismo iluminado. A tese é simples: até ao momento em que a Companhia de Jesus se estabeleceu em Portugal, no ano de 1540, o país vivia uma florescente idade de ouro, uma era de prosperidade e de glórias que conferiram ao país um largo prestígio internacional. A partir do momento em que a Companhia começou a se implementar, a se expandir e automaticamente a inocular a sua nefasta influência, teve início um período de uma progressiva decadência que instalou no reino uma idade de ferro, um tempo de trevas, ignorância e fanatismo. O reino ficou cadaveroso, sofrendo um vergonhoso retrocesso que o rebaixou em termos de prestígio frente à Europa dita culta e iluminada. Esta situação teria atingido o seu ponto culminante no início do reinado de D. José I, época em que os "perniciosos regulares" foram expulsos, permitindo a Portugal regenerar-se e reabilitar-se do quebrantamento extremo a que foi sujeito pela máquina de intriga e de sujeição da Companhia de Jesus.
O Marquês de Pombal apresenta-se, de facto, como o herói deste tempo novo, deste tempo de regeneração e de recuperação do prestígio e da dignidade perdida pelo país. Os Jesuítas, os Ingleses (15) e alguns sectores da alta nobreza foram os inimigos que o ministro de D. José teve que combater. Mas acima de tudo o "monstro jesuítico" e a sua máquina adjectivada de tenebrosa, esse bode expiatório constituído para justificar todos os males, sequelas e anquiloses de Portugal. E o sinal mais claro e mais luminoso desta renovatio temporum é a afirmação sem limites, sem obstáculos do poder absoluto do rei, dobrando e avassalando todos os poderes, instituições e grupos. Neste sentido se entende o encómio que Pombal faz a si próprio, melhor dizendo, à sua governação nas suas Observações Secretíssimas, em que eleva Portugal acima da Europa por se ter adiantado na pacificação social, precisamente pela vigência do respeito de todos à autoridade real. Escreve Sebastião José, falando do "Quinto efeito" da política do rei D. José I, pela mão do seu ministro omnipotente: "Quando a consistência do governo da maior parte das cortes da Europa se acha enervada e enfraquecida, ou com discórdias e divisões intestinas, como está sucedendo em França e Inglaterra, ou com sedições clandestinas e cinzânias brotadas pelas venenosas raízes jesuíticas, que não puderam arrancar até agora, como está sucedendo em Espanha, Sabóia, Roma e grande parte de Itália e Alemanha, depois de terem visto os estrangeiros, pelo contrário, que em todo o Portugal e seus domínios não soam outras razões que não sejam as que baixam do real trono de S.M., que lhe são ouvidos com suma reverência, por se acharem vassalos do mesmo senhor constituídos na finíssima fé de que ele só resolve e determina o que é mais útil aos seus vassalos e de que a todos os ama e ampara como a filhos, e não como a súbditos; acabou-se de ver agora (...) a quasi incomportável estátua equestre para se transportar (...) como em triunfo, tirada pelos fortíssimos cabedais que o peso dela fez precisos" (16).
Para atingir este patamar de progresso teve como prioridade absoluta do programa do seu governo a aniquilação uma instituição poderosa a vários níveis (cultural, pedagógico, religioso, económico), designado como sendo "um estado dentro do Estado" como condição prévia para edificar plenamente o poder absoluto do Estado. Enquanto ministro fac totum de um rei absoluto fac nihil, socorre-se das mais variadas estratégias, desde "acusações, "envolvimentos e cumplicidades", através de "sugestões insidiosas", com "subornos subtis", de forma aberta ou de maneira simulada (17). Esta violenta campanha nunca vista em Portugal contra uma instituição religiosa consolidada e em exercício de um vasto trabalho de assistência religiosa, educativa e missionária, superando em dimensão de serviços prestados todas as outras ordens, conheceu duas grandes frases abrangem dois momentos, que são bem sintetizados por Manuel Antunes: "Abrange a primeira (1751-1760) todo o espaço que medeia entre as "instruções secretas" a seu irmão Francisco Xavier Furtado de Mendonça e a cabal execução do decreto expulsório de 3 de Setembro de 1759; abrange a Segunda (1760-1773) todo o tempo da acção do Marquês conducente à extinção completa da Ordem cuja existência habitava o seu espírito como objectivo primacial de ódio, de obsessão, de temor e de rancor" (18).
Os motivos que estão na base de tão contundente hostilidade não se podem reduzir a uma questão meramente pessoal, particularmente pelo facto dos Jesuítas terem colocado em questão interesses do próprio Marquês e puderem vir a perigar a sua permanência e ascensão na hierarquia do poder do Estado. Estes são os motivos sentimentais que não deixam de ser importantes e bastante mobilizadores. Mas há outros que justificam e escondem estes no plano da doutrina escrita e da campanha de desacreditação: as razões económicas e ideológico-políticas. Os interesses da coroa e de particulares em termos comerciais estavam a ser postos em causa, especialmente no Brasil. No quadro da obra missionária dos Jesuítas junto dos índios nas famosas reduções do Paraguai contra a cobiça dos colonos e da nova companhia comercial monopolista criada em 1755 para a região do Maranhão e Pará, onde estavam em jogo lucros substanciais.
No plano ideológico-político, os teólogos da Companhia eram críticos em relação à nova concepção reforçadora do poder absoluto do Estado encarnado na pessoa do rei, que concentrava todos os poderes. Os mentores e protagonistas do despotismo como era o caso do Marquês de Pombal na sua forma mais acabada, entendiam que o poder era dado directamente por Deus ao rei, o qual tornava o príncipe como supremo senhor, omnipotente, absoluto e despótico, sendo tudo feito ad arbitrium Principis. Os Jesuítas introduziram um elemento mediador (e moderador) deste poder, pois defendiam que o poder vinha de Deus, mas era dado aos reis per populum (isto é, através do povo). Logo, o rei estaria ao serviço do povo e governava para promover a sua felicidade e merecer a sua confiança e outorgação. Quando tal exercício se tornasse despótico e derivasse na tirania, o soberano devia ser substituído. Ora, isto era inadmissível para um defensor do absolutismo real, lançando a suspeita sobre a Companhia na sua relação com o poder absoluto, tanto mais que alguns dos seus teólogos (v.g. Mariana) tinham defendido, na linha da teologia política de filiação tomista, que em casos extremos o rei tirano poderia ser licitamente deposto pelo processo do regicídio.
E é precisamente em torno da questão do poder que é construída basilarmente a imagem negativa da Companhia de Jesus. A Dedução chronologica e analytica apresenta a ordem inaciana como o reverso do poder legítimo dos Estados, em determinado sentido, como um verdadeiro antipoder. Toda a sua acção histórica teria sido conduzida em ordem ao enfraquecimento de todos os Estados e instituições de poder onde ela exerceu a sua acção. Esta acção corrosiva da Companhia teria sido desenvolvida demoradamente desde as origens, a fim de cumprir um grande plano secreto, um plano de dimensão universal. Este plano é desvendado não só pela Dedução mas é também insinuado por toda a literatura pombalina, como a grande revelação e o grande tópico que informa o mito jesuítico: a aniquilação da ordem social, do poder do Estado de modo a instaurar o poder da Companhia de Jesus pelo vínculo da obediência cega e opressora. Este poder não envolveria apenas alguns Estados, mas o mundo inteiro.
A esta luz toda a actividade dos Jesuítas na assistência e missionação de Portugal e dos territórios ultramarinos é interpretada. Cada membro da Companhia de Jesus teria agido em função do cumprimento deste plano, cada com um papel específico a desempenhar, fazendo valer para tal as suas qualidades e perfil, adequados a diferentes funções para que foi cuidadosamente destinado. Com efeito, a Companhia de Jesus é comparada a uma máquina de destruição em que cada membro é uma peça dessa máquina que age maquinalmente em razão da força do voto de obediência perinde ac cadaver, a fim de realizar as tarefas em vista da consecução dos supremos objectivos da sua Ordem. Assim teria feito, por exemplo, António Vieira, uma das grandes figuras da história de Portugal e, precisamente devido à sua notoriedade, foi o alvo mais visado do requisitório patente no catecismo antijesuítico pombalino. Vieira é, de facto, apresentado como uma espécie de modelo negativo por excelência do Jesuíta (19). Todo o seu papel ao serviço do Estado Português é desmascarado como sendo um brilhante serviço da Companhia - uma qualificada representação teatral. O Quinto Império, a utopia que sobressai da sua obra profética, nome simbólico da História do Futuro e do Reino de Cristo Consumado na Terra em plenitude, não seria mais do que uma simulação retórica, que esconde o verdadeiro e universalizante projecto do poder jesuítico. Para a realização deste projecto se orientava e se explicava todo o trabalho do "ardente engenho e turbulento espírito de seu António Vieira" (20), que não teria feito mais do que "maquinar", isto é, desestabilizar e enfraquecer o poder do Estado e a ordem social. Isto de modo a contribuir para a afirmação cada vez maior da Companhia sobre as ruínas das instituições de poder legítimas.
Esta hermenêutica dedutiva da história da Companhia de Jesus nas suas relações com o Estado Português e com a hierarquia e instituições eclesiásticas insere-se claramente na lógica e na morfologia do mito do complot. Todos os actos dos religiosos jesuítas são vistos como uma participação perfeitamente concertada em vista da consecução do grande plano secreto de conspiração não só nacional, mas, mais do que isso, também de uma fabulosa conspiração internacional. A Companhia de Jesus, os seus membros e a sua acção são qualificados pelo recurso aos adjectivos que expressam o lado mais negro e perigoso da realidade: o nefasto, o pérfido, o doentio, o contagioso, o conspirador, o cobiçoso, o intriguista, o hipócrita, o sedicioso, o simulador, o maquinador, etc.
Ao passo que a atitude da parte do Estado perante este monstro de carácter demoníaco pelos qualificativos tirados do lado luminoso e até do lado mais piedoso dessa positividade: a honestidade, a humanidade, o bom senso, a razão edificante, a piedade, a liberdade, o respeito, o perdão e a reconciliação, a bonomia, a tolerância, a generosidade, etc. A acção política do Rei e dos seus ministros é apresentada sempre como uma verdadeira epopeia de paciência, de bom senso, de chamada à razão, mas também de firmeza e coragem para extirpar o mal que alegadamente teimava em infectar o reino com a sua intriga perniciosa e demolidora.
Este esquema dicotómico caracterizador do agente da decadência e do herói combatente do inimigo da nação instalado no seu próprio seio, está bem claro não só na Dedução Chronologica e analytica (21) como já o tinha sido avançado no libelo publicado em 1757, sob o título de Relação abbreviada, que pretende ser uma espécie de relatório para demonstrar os impedimentos graves que os Jesuítas colocaram à aplicação do Tratado dos Limites, celebrado entre Portugal e Espanha em 1750. Neste documento, da mão de Sebastião José, mandado traduzir em várias línguas europeias e espalhado internacionalmente, os missionários da Companhia de Jesus são acusados de terem preparado os índios para a guerra e de os terem sublevado contra os exércitos portugueses e espanhóis que tinham sido enviados às reduções dos índios a fim de procederem à redefinição das fronteiras dos territórios pertencentes às duas coroas ibéricas (22).
São espantosas as razões desta resistência dos Jesuítas. Estas razões dão-nos a medida fundamental do mito dos Jesuítas e a imagem do Outro, do totalmente Outro, da negação do Nós, entendido como o Estado e o bem do Estado e dos seus vassalos. Informa a Relação abbreviada, logo à partida, que os "Religiosos Jesuítas se tinham feito de muitas anos a esta parte de tal sorte poderosos na América espanhola e portuguesa que seria necessário romper com eles uma guerra difícil" (23) para dar cumprimento efectivo ao tratado em causa. Os Jesuítas teriam edificado as chamadas reduções ou aldeias, organizando os índios e isolando-os do contacto dos "homens brancos seculares". Teriam erguido uma "verdadeira república" em que os Jesuítas detinham o absoluto domínio temporal e espiritual dos Índios. Teriam ensaiado a criação de um verdadeiro Estado à parte, longe do controlo e da vassalagem devida ao rei português e espanhol, aos quais as reduções índias pertenciam por direito de descoberta, conquista e colonização.
Além desta secessão política considerada criminosa, apuseram-se e fizeram tudo para obstruir a aplicação do Tratado assinado ao mais alto nível pelos dois países. Estas obstruções teriam sido alegadamente levadas a cabo pelos métodos da intriga, dos pedidos de prorrogação, pela maquinação secreta, no sentido dos missionários ganharem tempo para preparar os índios para a guerra. Por seu lado, os índios teriam sido premeditadamente isolados do contacto com os vassalos dos reis ibéricos por vários processos perversos de educação. Teriam feito uma verdadeira educação racista, dando uma imagem altamente depreciativa e criminosa do homem branco, do colono europeu. Os Jesuítas teriam feito crer aos índios que os "homens brancos seculares" eram gente sem lei e sem qualquer escrúpulo religioso, "que adoravam o ouro como Deus e traziam o demónio no corpo", sendo capazes das piores crueldades. O branco quando entrasse nos territórios dos índios colocaria as comunidades sob ferro e fogo, sacrificando homens, mulheres e crianças e profanando os locais sagrados (24).
Os missionários além de terem inculcado nos ameríndios esta imagem dos europeus, teriam ido mais longe, impondo como língua obrigatória o Tupi-Guarani e proibindo a aprendizagem das línguas europeias de modo a impedir a comunicação com os vassalos do rei e com qualquer branco a não ser com os Jesuítas que sabiam a sua língua.
Dois grandes motivos são dados para explicar a construção deste isolamento dos índios, ardilada pelos inacianos. O primeiro motivo era de ordem económica, portanto material. Este isolamento teria sido levado a cabo para esconder grandes riquezas, um tesouro imenso de bens e de potencialidades naturais que os Jesuítas exploravam avidamente, longe dos olhares do homem branco e à custa da escravidão e da miséria dos índios, a fim de alimentar e reforçar a grande máquina de guerra e intriga internacional quer era a Ordem de Santo Inácio.
Ao lado deste mito da riqueza e dos tesouros escondidos, aparecia o segundo motivo: o intento da construção de uma república jesuítica, edificada sob os pilares da ignorância e da obediência. Este estado tão rico como disciplinado, estava tão ciente da sua auto-determinação absoluta que já teria ousado fazer alianças com outros estados circunvizinhos governados por outros índios. Para o autor do libelo este poder autocrático e solipsista erguido pelos Jesuítas violentava todo o direito e a suprema autoridade do Estado dita legítima, assim como privava os vassalos índios da magnanimidade do seu verdadeiro rei. O novo Estado erguido pela Companhia de Jesus seria o balão de ensaio e o ponto de partida para a implantação na nova ordem jesuítica universal, dominada pelo poder opressor ultramontano do seu Geral que vergaria pela lei terrível da obediência cega todos os povos, reinos e impérios do mundo.
Perante esta tamanha figuração mítica e tão fabulosa hiperbolização do poder objectivo das poucas centenas de religiosos Jesuítas que trabalhavam na América espanhola e portuguesa, se compreende a afirmação patente na Lei de Expulsão dos Jesuítas. Esta asserção justifica tão grave medida pela necessidade imperiosa de eliminar uma ordem que alimentava no seu seio tão medonho intento. De tal modo a situação é apresentada como sendo gravíssima que, se os Jesuítas não fossem atalhados a tempo, nem todos os exércitos da Europa unidos entre si os conseguiriam dominar. Esta ideia está bem patente logo na introdução da Lei de Expulsão dos Jesuítas de Portugal. Precisamente a primeira razão que é evocada para servir de argumento justificativo da medida de expulsão é a questão do Brasil e os problemas surgidos em torno da aplicação do Tratado dos Limites:
"Desde o tempo em que as operações que se praticaram para a execução do Tratado dos Limites das conquistas sobre as informações e provas mais puras e autênticas, e sobre a evidência dos factos mais notórios, não menos do que a três exércitos, procurei aplicar todos quantos meios a prudência e a moderação podiam sugerir para que o governo dos regulares da Companhia, denominada de Jesus, das províncias destes reinos e seus domínios, se apartasse do temerário e façanhoso projecto com que havia interpretado, e clandestinamente prosseguido na usurpação de todo o Estado do Brasil, e com um tão artificioso e tão violento progresso que, não sendo pronta e eficazmente atalhado, se faria dentro do espaço de menos de dez anos inacessível e insuperável a todas as forças da Europa unidas" (25).
A literatura antijesuítica em geral, como a pombalina em particular, demoniza autenticamente este poder e atribui-lhe consequentemente capacidades sobrehumanas. Os Jesuítas são vistos como estando possuídos do maligno, ou sendo mesmo a sua encarnação. Para alguns são o próprio Anticristo ou os seus percursores. São, assim, o lado negativo do sagrado, o reverso do poder divino benfazejo, a antítese do poder do Estado. A Societas Iesu é o reverso do Estado porque a antinomia do progresso, da ordem, da verdade, da sã moral, da autêntica relação de vassalagem, caracterizada pela veneração sã da autoridade. A Companhia de Jesus é uma instituição do mundo ctónico e críptico, marcada com a sina das trevas e pelo destino do mal. Mas subsiste bem disfarçada sob o nome santo que ousa encimar - o nome de Jesus. Daí que a literatura pombalina sempre que nomeia esta Ordem tem o cuidado sistemático de referir "Companhia, denominada de Jesus", que, quer dizer, auto-denominada de Jesus ou que se arroga ilegitimamente de tal nome. Isto para evidenciar a impropriedade de tal aplicação nominal - uma entidade demoníaca designada por um nome santíssimo.
Assim sendo, perante tamanho sacrilégio e tão grande manifestação do diabólico, a Companhia de Jesus não poderia deixar de ser vista à luz de uma conotação apocalíptica, como a percursora dos últimos tempos anunciados pelos textos proféticos da Bíblia. Na tradução da ontologia publicada a expensas do Marquês de Pombal no ano de 1761, denominada Retrato dos Jesuitas feito ao Natural, os membros da Companhia de Jesus são logo à entrada apresentados por Melchior Cano, bispo de Canárias, como os percursores do Anticristo, classificando esta Ordem de anticristã: "Dizia este ilustre e religioso prelado que esta Companhia causaria à Igreja males sem número, que era uma sociedade anticristã, companhia de percursores do Anticristo, que não podia deixar de aparecer brevemente; pois começaram a aparecer os seus percursores e os seus emissários" (26).
A profusão da literatura antijesuítica no tempo de Pombal, marcada pela repetição obsessiva dos mesmos tópicos temáticos e dos mesmos contornos imagéticos, obteve o efeito mobilizador típico do mito de complot, que não só explica a origem da decadência portuguesa, atribuindo-lhe, portanto, uma causalidade diabólica, como também comporta uma eficácia, capaz de agir em consequência sobre a realidade mitificada.
O Marquês de Pombal obteve das mãos do rei o decreto de expulsão da Companhia de Jesus em Portugal, no ano de 1759, e, pelos esforços da pressão diplomática e da formação de uma opinião pública internacional antipatizante dos Jesuítas, conseguiu ver publicado o breve de extinção da Companhia em 1773 pelo Papa Clemente XIV. Deste prometaico acto de hecatombofilia levado a cabo em termos internacionais, pelo qual se efectiva a demolição oficial da poderosa Ordem fundada por Santo Inácio, Pombal foi indubitavelmente o grande protagonista. Neste caso, Manuel Antunes não tem duvidas a este respeito: "Nem Chöiseul, nem Aranda, nem Tanucci lhe levavam a palma no ódio e na fúria contra Companhia de Jesus. Tudo lhe servia: a ameaça de cisma pelas potências burbónicas; a ameaça de invasão dos Estados Pontifícios; a propaganda intensa pela excelente máquina entretanto alargada, aperfeiçoada, lubrificada por altos subornos (...)" (27).
Mas mais do que a obra política antijesuítica, o Conde de Oeiras, pela literatura produzida sob a sua supervisão, estabelece o cânone do antijesuitismo português e cria uma verdadeira mentalidade e cultura antijesuítica em Portugal. Ele delineou e teorizou o mito do jesuitismo como filosofia de vida, como um projecto político de poder, como um estilo de acção social e um estado de espírito, que de forma geral é caracterizado como uma grave doença que corroí as nações que aspiram ao progresso e à elevação cultural pelas luzes da razão.
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