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JOSÉ EDUARDO FRANCO
AS VELHAS FACES DO MEDO:
NOVAMENTE A INQUISIÇÃO E OS JESUÍTAS

 

Comentário a propósito da publicação da tese de doutoramento de
Célia Tavares,
Jesuítas e Inquisidores em Goa
Lisboa, Roma Editora, 2004

 

Em torno da complexa problemática da Inquisição moderna no quadro da história cristã ocidental pairam um amontoado de noções, visões, imagens, umas destorcidas, outras ambíguas, a maioria delas hipertrofiadas. Estas percepções resultam de ilações simplistas, de associações temáticas e institucionais imprecisas, e ainda de muitos juízos que desconsideram o contexto mental do tempo histórico em que emergiu e vigorou o Santo Ofício como máquina judicial poderosa ao serviço da Igreja e dos poderes políticos que exigiram e subvencionaram a sua erecção.

Entre essas visões cristalizadas e “pré-conceitos” acríticos podemos recordar alguns dos mais recorrentes que não são mais do que o produto de intensivos tempos de propaganda e polémicas que teceram uma “lenda negra” do Santo Ofício e de instituições que colaboram ou conviveram com este tribunal. Essa marcante cultura de propaganda e polémica deu origem a avaliações desfasadas na integração e valorização da Inquisição naquilo que podemos chamar a história universal da repressão.

Eis algumas dessas hiper-focalizações. A exagerada concentração dos juízos em torno dos tribunais da inquisição ibéricos como sendo muito mais temíveis, violentos e repressivos do que os seus pares de outros países católicos europeus, visão apriorística que tornou os outros tribunais aparentemente mais benignos e mais inofensivos. A excessiva valorização dos tribunais do Santo Ofício como as instituições judiciais que mais usavam de métodos repressivos violentos e atrozes, esquecendo-se que no mesmo período histórico as instituições judiciais do Estado usavam paralelamente de práticas e métodos repressivos tanto ou mais injustas e esmagadoras. E ainda a hiper-focalização da atenção crítica nas formas institucionais de inquisição católica, sonegando-se ou obnubilando-se que nas sociedades protestantes e em sociedades e culturas estruturadas por outros sistemas religiosos também coexistiram e se desenvolveram, naquela mesma época, sistemas e formas de controlo com semelhante grau de vigilância repressiva.

Além destas percepções simplificadas e hiper-focalizadas nos Tribunais da Inquisição católicos, sedimentou-se uma visão mitificada que merece especial menção no quadro da apresentação deste livro. A associação íntima entre Inquisição e a Companhia de Jesus, ou se quisermos, a ideia da jesuitização da inquisição. Ou seja, a tese de que sempre existiu uma cumplicidade plena entre os Jesuítas e a Inquisição, uma aliança terrível para a ruína do país, para opressão do povo e para o retrocesso do Estado. Esta ideia foi desenvolvida em Portugal pela literatura antijesuítica produzida sob os auspícios do Marquês de Pombal e, em particular, ficou bem patente no novo regimento pombalino da Inquisição publicado em 1774, o qual se apresentava como o antídoto desse jesuitismo inquisitorial (1). Esta visão do jesuitismo inquisitorial foi muito reproduzida e propalada pela propaganda antijesuítica ao longo do século XIX e primeiras décadas do século XX. Os Padres da Companhia eram vistos como sendo os mais impiedosos conspiradores contra as liberdades do povo, sendo a sua Companhia uma máquina de guerra lançada contra a nação portuguesa, tendo sido a Inquisição uma criação sua (um decalque judicial da estrutura da Ordem de Loyola). A Companhia de Jesus a teria imposto ao país, e no país se desenvolveu e perdurou sob o controlo férreo da Ordem de Loyola (2).

Especialmente a Inquisição atrai com um magnetismo extraordinário, como nenhuma outra instituição, a projecção dos nossos juízos mais recriminadores. No seu repúdio não deixamos de projectar, como que se de uma deflagração do inconsciente se tratasse, os nossos medos e angústias. Nela projectamos o receio bem nosso do regresso dos tempos da tirania, da repressão social, da ausência de liberdade enquanto valor mais caro ao ser humano, o que mais o realiza e o que mais o torna autêntico.

A emergência da Inquisição Moderna com todo o seu aparato repressivo e a sua ambição omni-controladora desde as práticas sócio-culturais e comportamentais externas até ao fundo mais secreto das consciências pode ser entendida como uma reacção exacerbada e violenta à fractura crescente que se começou a operar na modernidade entre a esfera espiritual e a esfera secular temporal. As instâncias estruturantes e garantes do regime político-social e mental de Cristandade impuseram um organismo de controlo para fazer face às consequências da ameaça real da perda progressiva do poder unificador do religioso que tudo tecia – as atitudes, os pensamentos, os valores, as opiniões, os afectos – sob um mesmo horizonte de sentido (3).

Pensamos ser fundamental reflectir a expansão dos tribunais da inquisição como reacção poderosa a uma revolução de mundividências que a modernidade trouxe consigo como ponto de chegada de um longo período de gestação medieval da reflexão sobre o homem, o cosmos, a deriva da história e sobre a própria Igreja e o seu julgamento enquanto herdeira (fiel ou infiel) do legado de Cristo. A valorização antropologizante do indivíduo e das suas possibilidades e faculdades de iniciativa e de pensamento, a construção (proporcionada pelas viagens marítimas dos Portugueses e Espanhóis) da ideia de universalidade e da complexa diversidade cultural, étnica e religiosa do mundo, e paralelamente a agudização de uma consciência histórica teleológica de matriz apocalíptica acentuaram e hegemonizaram a posição dos sectores que alimentavam a tentação uniformizadora de uma sistema de ortodoxia doutrinal que o catolicismo da Contra-Reforma enfatizou até ao extremo da intolerância mais anticristã que alguma vez se conheceu na História da Igreja.

Por outro lado, o projecto de constituição de uma instituição judicial com carácter centralizado foi muito desejado por alguns príncipes católicos. Em particular, destacaram-se neste processo os monarcas das coroas ibéricas da época em que curiosamente prosperava o Renascimento e o Humanismo. Estes movimentos culturais que abriram as portas do mundo moderno suscitaram da parte dos “profetas” do puritanismo e da ortodoxia mais vigilante a crítica ao paganismo que teria tomado conta de alguns dos mais destacados produtores culturais dentro da própria cristandade, muitas vezes a expensas dos próprios príncipes eclesiásticos, seus mecenas. Esta onda de “paganização” que invadia os próprios antros da Igreja significou para muitos o prelúdio da vinda do Anticristo e a aceleração do epílogo desastroso da própria história que seria coroada com um severo juízo final, como asseveravam as profecias antigas.

Só na complexidade sócio-mental do dealbar da modernidade é que se pode entender plenamente as razões de fundo que levaram à montagem de um tribunal desta natureza e desta dimensão. No fundo, a criação de um tribunal deste género no seio da cristandade moderna traduz a dificuldade dessa mesma cristandade lidar com a emergência cada vez mais palpável, diversificada e concorrencial do Diferente, quer o Diferente interno (judeus, protestantes, esotéricos...), quer o diferente que se apresentava nos limites das suas fronteiras (gentios, infiéis...) (4). Esta “perigosa” aparição e afirmação do Outro, enquanto radicalmente diferente do Nós, como colectividade grupal, étnica, cultural, religiosa ou doutrinal fez tremer a cristandade de tradição medieval que ficou possuída pelo medo de que o seu edifício sócio-religioso e mental fosse seriamente corroído. A Inquisição é a face mais agressiva e violenta desse medo.

No que a Portugal diz respeito, o empenho diplomático de D. João III e dos seus sucessores, à semelhança do que tinham feito os vizinhos reis católicos de Espanha, conseguiu que fosse instalado e subsidiado no país e no ultramar, com a legitimação suprema do poder papal através de bulas, breves e privilégios de vária ordem, a imensa rede de vigilância activa do Tribunal do Santo Ofício e dos seus tentáculos com uma eficácia repressiva sem par na história deste reino. O projecto bem sucedido de imposição desta instituição judicial sobre as instituições e forças vivas seculares e religiosas do país não deixou de transportar consigo, para além do desejo de “purificação” doutrinal e moral, o desiderato íntimo do emergente Estado moderno português possuir uma instância de controlo da consciência colectiva para serviço de um ideário centralizador do poder monárquico que pretendia reforçar-se perante os outros pólos de poder.

De facto, o controlo social, mental, comportamental generalizado através da montagem de uma teia de medo por toda a monarquia, embora sustentada sobre pilares de ordem teológica, não deixou, por isso, de servir de algum modo o ideário centralista monárquico, que assim passou a usufruir de um poderoso instrumento de regulação das formas de pensar, de agir, de manifestar-se publicamente... Também aqui a questão económica não foi uma questão de somenos importância. A prática do confisco de bens permitiu a transferência de capital de bolsos dos investidores e produtores de riqueza para elites de poder tradicionais e para a própria instituição estatal que passavam por dificuldades de adaptação numa época revolução das fontes clássicas de enriquecimento (5). Da Inquisição, o Estado centralizado moderno e a elite que o sustentava, tiraram benefícios em termos de controlo do capital crítico e do capital a ele inerente de desestabilização social, favorecendo a sedimentação de um comportamento colectivo domesticado através de uma implacável pedagogia do medo que veio substituir a genuína pedagogia evangélica da misericórdia como denunciava na cara e na casa do Santo Ofício de Lisboa, Fernando Oliveira (c. 1507-c.1582), uma das figuras mais notáveis e originais do humanismo português (6).

A realidade histórica é sempre mais complexa do que aquilo que a fazem as simplificações muitas vezes maniqueístas dos nossos juízos. E quando da Inquisição e dos Jesuítas se trata tanto mais vasta e impetuosa é a tentação simplificante das nossos conclusões.

Mas acima de tudo, o terreno historiográfico do estudo das questões inerentes ao Tribunal do Santo Ofício é aquele em que as análises mais podem correr o risco de serem enfermadas pela paixão do historiador de hoje e pelas marcas da sua mundividência, isto é, do seu horizonte mental e ideológico. Trata-se, com efeito, de um terreno altamente movediço.

A complexidade da análise da problemática que representa a história da Inquisição deve considerar como tarefa crítica preliminar a integração da configuração institucional deste tribunal e da compreensão da sua larga base de apoio sociológico no contexto e na mentalidade do tempo e da sua avaliação no quadro da história comparada das instituições. O esforço de interrogação e de complexificação que o conhecimento histórico exige para abrir horizontes mais largos de compreensão não nos deve impedir, todavia, como pessoas do século XXI, de repudiar e de lamentar a desumanidade de que semelhantes instituições promoveram. Mas ficar por aí e não procurar o distanciamento que se exige para fazer uma história complexizante, é acrescentar pouco à construção do conhecimento histórico que deve ser “esse conhecimento das sociedades vivas, nunca o seu julgamento e enquadramento doutrinário” (7).

A história é um campo de conhecimento sempre em construção. Para tal urge perfilar cada vez mais corajosamente uma história aberta capaz de integrar e usufruir sem preconceitos dos contributos de outras áreas de conhecimento que possam levá-la mais longe na percepção do homem e do seu percurso através do tempo. A história joga o seu futuro precisamente nesta atitude “ecuménica” de saber aceitar e lidar com os métodos e conteúdo das outras ciências humanas e sociais. Assim a história poderá realizar o sonho de Fernand Braudel que idealizava a disciplina historiográfica como o ponto nodal, o lugar de cruzamento, onde se poderá realizar melhor a síntese interdisciplinar no quadro alargado das ciências o homem.

O historiador é por excelência aquele que deve ter a consciência “antidogmática” de que as suas conclusões são passíveis de serem reformuladas e que os seus juízos são transitórios.A história que ele constrói deve estar sempre aberta a novas abordagens que fazem da historiografia uma realidade dinâmica e aberta. É, por isso, tão actual e tão extraordinária a definição daquela que deve ser a melhor atitude do historiador perante o seu métier e perante os resultados da tecelagem da história estabelecida por Vasco de Magalhães Vilhena há quase cinquenta anos: “Ser historiador, é repudiar a falsa segurança, a certeza tranquila; é nunca renunciar a um íntimo recomeço, jamais desertar da obrigação de um perpétuo reajusto fundamentado que responda a necessidades novas de inteligibilidade. O historiador tem hoje, como nunca tivera até agora, a consciência de não criar para a eternidade (...). Só há história do imperfeito, do inacabado, do que tende incansavelmente a superar-se. Na medida em que é possível restituí-lo, o “passado” que é ainda presente, sempre se reconstrói” (8).

A tese de doutoramento de Célia Cristina Tavares que aqui é publicada na íntegra em forma de livro é exemplar à luz daquilo que se espera de um historiador contemporâneo, sério e aberto ao trabalho interdisciplinar. Ousando abordar um objecto difícil e complexo como a Inquisição de Goa na sua relação de colaboração/conflito com os Jesuítas e com outros actores em presença na construção da sociedade cristã goesa, a historiadora oferece uma abordagem inovadora, mostrando as diferentes faces da problemática em questão e, especialmente procurando desconstruir as visões simplicantes que chegaram até nós. As questões estão bem colocadas e a autora procura dar, de diferentes ângulos de visão, um panorama das instituições em estudo de uma forma arguta e com notável espírito se síntese. Assim, Célia Tavares apresenta-nos vários quadros problemáticos que permitem abrir um novo horizonte de compreensão da cristandade indiana: as diferentes metodologias e modelos pastorais em confronto, as divergências existentes entre as ordens religiosas, as visões exógenas das práticas institucionais e sociais da Inquisição. Procura, de um modo sagaz, analisar a formação da lenda negra do Santo Ofício através de narrativas de viagens, os conflitos entre a Inquisição e a Companhia de Jesus e a colaboração dos Jesuítas com a Inquisição, as conflitos no próprio seio da Inquisição e no seio da própria Ordem de Santo Inácio,...

Escrita de uma forma elegante e clara, mas sem descurar o rigor, este livro, apesar de ter sido elaborado para servir de prova de doutoramento, apresenta-se de leitura agradável capaz de encantar um público mais alargado que não só os especialistas na matéria, que muito poderá usufruir com esta síntese bem elaborada e documentada de aspectos importantes da presença portuguesa no Oriente.

A leitura desta obra aguça-nos a consciência de que a verdade história é uma verdade sempre em construção (9), uma verdade inacabada que cada geração faz e refaz à luz dos seus quadros epistemológicos e dos seus métodos e interesses científicos próprios.

Ao concluir a leitura deste livro que o leitor agora tem entre mãos fiquei com o sabor estimulante de que “a história permanece paixão, empenho e deslumbramento” (10). Por isso, a história enquanto ciência do passado continua com muito futuro.

 

(1) Cf. José Eduardo Franco; Paulo de Assunção, Metamorfoses de um polvo: Religião e política nos regimentos da Inquisição Portuguesa (séculos XVI-XIX), Lisboa, 2004.

(2) Para uma desconstrução desta imagem perfeita da cumplicidade entre os Jesuítas e Inquisição ver José Eduardo Franco, “Jesuítas e Inquisição: cumplicidades e confrontações no Brasil e no Oriente (Sécs. XVI-XVII)”, in Relações Luso-Brasileiras. Revista Convergência Lusíada , 19, 2002, pp. 220-234; e José Eduardo Franco; Christine Vogel, Monita Secreta (Instruções secretas dos Jesuítas): História de um manual conspiracionista, Lisboa, Roma Editora, 2002.

(3) Cf. José Augusto Mourão, “Da funesta liga do trono e do altar – A afecção (anti)clerical”, in Luís Machado de Abreu; António José Ribeiro Miranda (coords.), Actas do colóquio sobre Anticlericalismo Português: História e discurso, Aveiro, Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 2001, p. 27

(4) Ver Francisco Bethencourt, “Rejeições e polémicas”, in Carlos Moreira Azevedo (dir.), História Religiosa de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, p. 49 e ss.

(5) Cf. Luís Reis Torgal, A Inquisição: Aparelho repressivo e ideológico do Estado , Separata da Revista Biblos, Nº 51, Coimbra, 1975, p. 637; e António Borges Coelho, Cristãos-Novos Judeus e os Novos Argonautas, Lisboa, Caminho, 1998.

(6) Cf. José Eduardo Franco, O mito de Portugal: A primeira História de Portugal e a sua função política , Lisboa, Roma Editora, 2000, p. 57.

(7) Jorge Borges de Macedo, “Dialéctica da sociedade Portuguesa no tempo de Pombal”, in Como interpretar Pombal? , Lisboa - Porto, Edições Brotéria e Livraria A.I, 1983, p. 16.

(8) Vasco de Magalhães Vilhena, Filosofia e História, Separata do capítulo publicado em Panorama do Pensamento Filosófico, Lisboa, Edições Cosmos, 1956, pp. 181-182.

(9) Cf. Nelson GOODMANN, Modos de fazer mundos, Porto, Edições Asa, 1995.

(10) A. A. Marques de ALMEIDA, “A escrita da história: questões de teoria e de problematização”, in Clio , Vol. 5, 2000, p. 17.