::::::::::::::::::::::::::::::::ADELTO GONÇALVES
Luandino Vieira e a literatura como “arma”

LUUANDA: ESTÓRIAS
José Luandino Vieira
Lisboa: Caminho, 158 págs., 2004
E-mail: caminho@editorial-caminho.pt
Site: www.editorial-caminho.pt

In: Diário dos Açores, 22 de Maio de 2007. Em linha em
I

As ligações de José Luandino Vieira com o Brasil são antigas e datam talvez de 1956, quando o autor ainda vivia em Luanda e assinava-se literariamente José Graça. Nascido em 1935 na Lagoa do Furadouro, em Portugal, José Mateus Vieira da Graça, levado criança pelos pais para Angola, viveu sua adolescência e juventude num ambiente sufocante em que um bom número de jovens interessados em desenvolver uma literatura de caráter regionalista — e alguns até com obra feita — não podiam publicar porque não havia editora na colônia e as edições de autor estavam fora do alcance de seus bolsos, estudantes uns, pequenos empregados outros.

Era o que dizia José Graça em carta de 10/1/1957 a Salim Miguel, como se lê em Cartas d´África e Alguma Poesia (Rio de Janeiro, Topbooks, 2005, p.30). Salim Miguel vivia em Florianópolis, no Estado de Santa Catarina, e procurava impulsionar a cultura em sua cidade com a publicação da revista Sul, sessões de arte na cinemateca local e discussões com os seus amigos intelectuais, inclusive com o escritor carioca Marques Rebelo (1907-1973), a essa altura nome consagrado, que, conferencista convidado, seria o responsável pelo intercâmbio de idéias e livros que jovens intelectuais brasileiros e africanos de expressão portuguesa passariam a fazer.

A uma época em que o salazarismo tinha olhos e ouvidos espalhados por toda a colônia, os jornais locais, dizia José Graça, eram controlados e não publicavam nada que tivesse jeito de "regionalismo". Com certeza, porque qualquer manifestação que tivesse cor local seria interpretada como nacionalismo. E reivindicações autonomistas eram tudo o que as autoridades coloniais não queriam ouvir.

O regime exigia que tudo fosse submetido ao seu crivo antes de ser publicado. Mesmo assim, organizar uma editora na base da cooperativa para publicar cadernos de poesia, contos e ensaios foi a saída que alguns intelectuais da Luanda então procuraram. Mas, entre outros obstáculos, as autoridades exigiam um depósito de garantia de 25 mil escudos. Por isso, José Graça imaginava que, se ele e seus amigos conseguissem publicar três cadernos — sem caráter de movimento cultural nem de identidade de temas —, já se podiam considerar gente de sorte.

Depois, como se sabe, a história de vida de José Graça, ou melhor, Luandino Vieira, passou a se confundir não só com a luta pela independência de Angola como com a história da cultura em seu país. Dois anos mais tarde, sempre trocando idéias através do Atlântico com os rapazes da revista Sul, de Florianópolis, haveria de lançar, ao lado de Arnaldo Santos, Costa Andrade, Ernesto Lara Filho, Henrique Abranches, Mário Guerra, entre outros, a revista Cultura, que seria publicada até 1961, contribuindo decisivamente para a consecução do projeto de nacionalização da literatura angolana, como muito bem observa a professora Vilma Lia Martin, coordenadora dos Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo, no ensaio "Luandino Vieira: engajamento e utopia", que escreveu para o livro África e Brasil: letras em laços, de Maria do Carmo Sepúlveda e Maria Teresa Salgado, organizadoras (São Caetano do Sul-SP, Yendis Editora, 2006).

II

O primeiro livro de Luandino, A cidade e a infância, seria publicado em 1960 pela Casa dos Estudantes do Império, instituição que procurava atrair as melhores cabeças das colônias para um projeto utópico e sem saída: a sobrevivência do mambembe império português em meio às marchas e contramarchas da guerra fria entre capitalismo e comunismo. Em 1959, Luandino seria detido pela Pide, acusado de exercer atividades subversivas e liberado em seguida. Em 1961, seria de novo detido e condenado a 14 anos de prisão. Depois de cumprir pena por três anos em Luanda, seria transferido em 1964 para o campo de concentração de Tarrafal de Santiago, em Cabo Verde, onde passou oito longos anos, até que foi libertado, sob regime de residência vigiada em Lisboa.

Foi em 1963, durante o tempo em que esteve no pavilhão correcional da Pide em São Paulo de Luanda que José Luandino Vieira escreveu Luuanda: estórias, livro-chave em sua carreira literária, que, em 2006, mais de quatro décadas depois, seria decisivo para que lhe fosse atribuído o Prémio Camões, honra que recusou, talvez porque, depois de ter se mantido por quase trinta anos sem publicar, não se via com méritos para tanto. Modéstia acendrada ou excesso de zelo, sejam lá quais foram as razões íntimas que o levaram a tal gesto, a verdade é que recusar um prêmio de 100 mil euros por princípios éticos, no mundo de hoje, não é para qualquer um. Só mesmo uma figura de caráter excepcional.

Luuanda foi publicado em Angola em 1964 e, no ano seguinte, obteve o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, o que foi considerado pelo regime salazarista uma afronta, já que o escritor era preso político de Estado. A reação foi tão intensa que a própria Sociedade Portuguesa de Escritores foi extinta pelo governo.

Desde então, em 40 anos, o livro teve 16 edições, além de uma ilegal que circulou em Portugal em 1965 com a indicação falsa de ter sido impressa em Belo Horizonte, Minas Gerais. Em 2004, foi publicado pela Editorial Nzila, em Luanda, e pela Editorial Caminho, em Lisboa. Já foi traduzido para o russo, alemão, checo, sueco, dinamarquês, inglês, italiano e francês. E, até o final do ano, deve ganhar edição em castelhano em tradução de Alex Tarradellas para El Gall Editor, de Pollença (Mallorca), Ilhas Baleares, que comprou os direitos de publicação ao agente literário Mertin Litag.

III

Com a Revolução de Abril e a efervescência política que levou às colônias, Luandino atirou-se em busca de seus ideais de ver uma Angola livre do jugo colonial, envolvendo-se numa das facções em luta, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Com a chegada do MPLA ao poder, o escritor chegou a exercer cargos de mando no governo auto-intitulado de revolucionário, trabalhando como presidente da Rádio Televisão Popular de Angola e como secretário-geral da União de Escritores Angolanos. E ficou, praticamente, sem tempo para se dedicar à literatura.

Por isso, sua obra, na grande maioria, foi escrita nas diversas prisões por onde passou. Produziu quatro romances — o último, Nosso musseque, saiu em 2003 — e oito livros de estórias, termo que descobriu em Guimarães Rosa (1908-1967) ainda no começo dos anos 60 e resolveu adotar para os seus contos, em que procurou dar vida literária a personagens que conhecera ao tempo em que, ainda criança e adolescente, vivera nos bairros populares de Angola, os musseques. Hoje, longe de Angola e, provavelmente, decepcionado com os rumos que a conjuntura política tomou, depois da guerra civil que, praticamente, dizimou o país, vive de maneira discreta em Vila Nova de Cerveira, no Minho, próximo ao Porto, Norte de Portugal.

Em boa parte do que escreveu, havia a idéia ingênua de que a literatura poderia ser usada como "arma" para a libertação de Angola. Isso não quer dizer que procurasse imitar ou deixar-se influenciar por Jorge Amado, especialmente o da primeira fase, que seguia a orientação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e procurava escrever romances ou biografias que se confundiam com panfletos, ainda que de inegáveis qualidades literárias. Como se sabe por uma carta de 1964 de Luandino ao seu amigo Carlos Everdosa, intelectual que também fez parte da geração da revista Cultura, de Luanda, Jorge Amado, à época ainda a serviço do PCB, movimentava suas influências para dar a Luuanda uma edição brasileira.

De fato, ao contrário do Jorge Amado dessa época – da biografia O Cavaleiro da Esperança, sobre a vida do líder comunista Luís Carlos Prestes, e mesmo dos romances Seara vermelha e Os capitães da areia e da trilogia de Os subterrâneos da liberdade —, Luandino Vieira nunca fez de seus personagens autômatos que se movimentavam em favor de uma causa que, pretensamente, pretendia oferecer aos deserdados o paraíso na Terra.

Luandino, aparentemente, já descobrira que nem precisava disso: bastava ficcionalizar o que vivera nos musseques de seu tempo e que, infelizmente, continuam lá sem saneamento básico, água encanada e luz elétrica, tal como as favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo, vítimas de um modelo de industrialização que se deu (e ainda se dá) no Brasil à custa de um descontrolado êxodo rural e uma enorme brecha entre ricos e pobres.

Os musseques a essa época funcionavam como guetos que isolavam as populações africanas dos brancos mais ricos que habitavam a Baixa, a parte central de Luanda, embora houvesse igualmente brancos pobres, como a família de Luandino, que sobreviviam em meio aos musseques ou em seus arredores, que a roda da fortuna não era assim tão pródiga: não bastava ser branco ou procedente da metrópole para, na colônia, conhecer uma vida de largueza.

Hoje, ironicamente, os musseques isolam populações paupérrimas daqueles que souberam aproveitar as oportunidades abertas para alguns setores da sociedade pela ascensão do MPLA. Mas quem já esteve em Angola ou com angolanos conviveu em Portugal sabe como são os preconceitos e as diferenças que sobrevivem entre as etnias que formam o país e que não se diferenciam em nada dos preconceitos e diferenças entre brancos, negros e asiáticos, pois, afinal, a raça humana continua a ser a mesma em suas mazelas, independente da cor da pele de cada um.

IV

O que distinguiu a literatura de Luandino, com Luuanda à frente, foi a maneira como o escritor soube recriar o falar das classes baixas, tornando-o uma linguagem inovadora, resultado da mistura do português metropolitano com a oralidade praticada pelas populações marginalizadas, como já apontaram africanistas como as professores brasileiras Vilma Lia Martin, Carmen Lucia Tindó Secco, Maria Aparecida Santilli e Tânia Macedo. Essas populações marginalizadas falavam, na maior parte, o quimbundo, majoritário em Luanda, e o umbundo e o quicongo, as principais línguas nativas dessa região em que hoje está assentada a nação angolana.

“Possa! Esse homem... Compra?! Então a galinha me nasceu-me doutra galinha, no meu quintal, como é vou ter recibo?”, diz uma personagem de “Estória da galinha e do ovo”, o último dos três contos reunidos em Luuanda. Por aqui se vê o esforço do escritor em reproduzir a oralidade daquelas pessoas com as quais convivera de perto, sem perder, porém, a conexão com o português-padrão, de modo que, sem muito esforço, o seu texto pudesse ser lido em qualquer ponto do planeta onde haja alguém tributário da língua de Camões. À parte uma ou outra variação, a um brasileiro, por exemplo, não é difícil perceber que a expressão possa! corresponde a poxa! ou puxa!.

É claro que, imaginadas dentro da prisão por alguém detido por razões políticas, as estórias de Luuanda deixam escapar aqui ou acolá manifestações que podem ser entendidas como intrínsecas a um processo de resistência popular. E, naturalmente, esse era o objetivo do autor.

Algumas personagens até exibem uma conscientização política que, dificilmente, encontramos entre os marginalizados, mas nunca assumem a condição de iluminados que se vê em personagens de outros autores dessa época. E, portanto, o texto nunca descamba para o panfleto político, deixando que as denúncias ocorram através da insinuação e do jogo de ambigüidades e de sutilezas psicológicas que se dão pela ação, pelo falar ou pelo pensamento das personagens.

É o que ocorre, por exemplo, no conto que encerra Luuanda em que há um arremedo de conscientização popular, como se os deserdados descobrissem, de repente, que, se se juntassem, poderiam afrontar o poder colonial. Naturalmente, à época, o autor (e, portanto, os protagonistas de seus contos) não poderia imaginar que a opressão colonial do branco haveria de ser substituída, como de fato foi, pela opressão de homens da mesma cor, ainda que bem vestidos. Esse arremedo de conscientização popular, no entanto, não se dá por parte de uma denúncia consciente, deliberada, mas de maneira involuntária, como conseqüência do que é exposto e do que é vivido pelas personagens.

E esse procedimento a que recorreu o jovem Luandino é notável porque, naquele tempo, faziam muito sucesso os livros do escritor uruguaio Eduardo Galeano, para quem os guerrilheiros que haveriam de enfrentar e dizimar a burguesia viriam das favelas cariocas e paulistas, dos mocambos do Recife, dos alagados de Salvador, das malocas de Porto Alegre, das villas misérias de Buenos Aires, das barreadas de Lima, das quebradas de Caracas, dos jacales do México e, por extensão, dos musseques de Luanda. Hoje, como se sabe, os filhos das favelas só engrossam os exércitos do tráfico de drogas, ao lado dos filhos da classe média.

V

Já “Estória do ladrão e do papagaio”, o conto central de Luuanda, funciona como ponte entre a falta de solidariedade social que marca o primeiro relato, “Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos”, e “Estória da galinha e do ovo” em que as personagens descobrem a necessidade da união para lutar contra um inimigo comum, o colonizador. Essa estória relata o encontro de três marginalizados (dois angolanos e um caboverdiano) na cadeia — Xico Futa, aquele que sabe das coisas, Garrido Fernandes, aleijado de paralisia, e Lomelino dos Reis, que tem mulher e dois filhos e rouba patos porque não lhe autorizam trabalho honrado. Os três descobrem o valor da solidariedade para escapar da situação desesperadora em que vivem.

Como algumas das personagens de Jorge Amado, o Xico Futa de Luandino Vieira é aquele que já descobriu o que está por trás das injustiças do mundo, a razão de uns poucos terem tanto e a imensa maioria não ter nada e que Deus não tem nenhuma responsabilidade nisso, sendo tudo culpa dos homens, que um nunca se satisfaz com o que tem e sempre quer mais à custa da miséria alheia. É quem fala por metáforas ou parábolas.

Já o conto de abertura, “Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos”, reconstitui a vida difícil de uma mulher idosa que vive com seu neto numa cubata e não vê perspectivas para sair daquela situação de miséria extrema. Sem conscientização política, sem identificar no colonizador os inimigos de sua classe social, vivem ao desamparo, a sós, sem esperança de mudança. O conto, o único que o autor não intitula de estória, é apenas um flagrante da difícil vida de duas criaturas sob os zincos baixos do musseque e, aparentemente, não tem qualquer pretensão política. Como se a própria situação das personagens fosse suficiente para chamar atenção para a chaga social que os bem-sucedidos preferem não ver.

É o melhor exemplo daquilo que o próprio autor entendeu que poderia funcionar como “arma” para a libertação de seu povo. Ao expor a vida sofrida daquela gente, pretendia utilizar a literatura como denúncia, embora fosse difícil imaginar que algumas daquelas pessoas que lhe haviam inspirado as “estórias” pudessem vir, um dia, a lê-las. Ou que aqueles que estavam por cima pudessem levá-las em conta. Contradições daqueles anos em que acreditávamos que a revolução estivesse logo ali na esquina.

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br