O capitão de Sarmento Pimentel, aquele que
encontramos no título Memórias do Capitão, é uma figura ficcional. Não quero dizer que o
Capitão seja produto da imaginação do autor, sim que é o herói de uma obra
literária. Aliás, a matéria narrada replica-se nas fontes, entre as quais
mencionarei apenas a fundamental, o Arquivo Histórico Militar. Por isso, a
questão de ser ou não ser o Capitão uma personagem criada por Sarmento
Pimentel não incide na problemática da verdade, sim na classificação do
texto.
Não é porém meu objetivo classificar as
Memórias do Capitão. Outros já o
fizeram, a exemplo de Jorge de Sena, que no prefácio justifica a
modernidade do livro justamente com a circunstância de ele ser
inclassificável. Pois bem, se as
Memórias, apesar do título, são uma obra inclassificável, mais um
motivo para afirmar que o Capitão é uma personagem. Como também anota
Jorge de Sena, por vezes o Capitão fala de si na terceira pessoa, o que
pode ser usual no romance mas já subverte a norma da exposição de
acontecimentos vividos própria do memorialismo, em qualquer das suas
formas, seja a autobiografia, o diário ou a epistolografia.
O título,
Memórias do Capitão, claramente prefere a distância da terceira à
subjetividade e confessionalismo próprios da primeira pessoa. O Capitão,
em suma, é um narrador que vai tecendo uma obra literária ao lembrar-se
disto e daquilo, mas sobretudo da parte que tomou em golpes contra os
inimigos da República, numa primeira fase, e da oposição e resistência com
que combateu a ditadura do Estado Novo, já como exilado no Brasil.
E aqui deixaria uma primeira conclusão: o livro de
Sarmento Pimentel é subversivo quanto à ideologia de esquerda em tempos de
dominação de uma direita fascizante – ele podia ter sido preso várias
vezes; porém, será ele subversivo quanto às expectativas literárias? Jorge
de Sena considera-o moderno decerto por não ser homogéneo, antes uma
colagem de textos, dispostos por ordem cronológica, sim, mas de natureza
muito diferente uns dos outros: ora retratos de figuras populares, de
cariz realista, a que Jorge de Sena recusa o rótulo de camilianos; ora um
conto a tender para o ultrarromantismo, acerca da morte por tuberculose de
uma jovem namorada; aqui uma descrição magnífica, a da partida do
contingente de militares para Angola, no
Cabo Verde, em condições
atrozes, e basta dizer que o navio ia carregado com pessoas e animais,
tendo os cavalos direito a veterinário mas sem direito a médico os
soldados… Enfim, trata-se de uma colagem de textos redigidos em épocas
distintas, de estilos diversos, movidos por emoções diferentes, cuja única
unidade é a proporcionada pelo herói que a tudo assiste e em toda a luta
está presente e toma partido, o Capitão.
Na sua tão longa vida de revolucionário e paladino
da democracia, Sarmento Pimentel só foi capitão durante vinte anos; quando
lutou ao lado de Machado Santos, no 5 de Outubro de 1910, ainda era cadete
da Escola do Exército. Já que dispomos de informação contida no seu
“Processo individual”, conservado no Arquivo Histórico Militar, podemos
até pormenorizar toda a sua graduação.
Datas de início de cada posto:
Alferes – 15 de novembro de 1912
Tenente – 1 de dezembro de 1916
Capitão – 3 de dezembro de 1918
Major – 22 de julho de 1938
Tenente-coronel – 20 de janeiro de 1942
Coronel – 13 de abril de 1945
Reserva – 14 de fevereiro de 1950 *
Não termina em 1950, com a passagem à reserva, a
graduação de Sarmento Pimentel, apesar de ele dar como terminada a sua
carreira militar no derrube da Monarquia do Norte, na cidade do Porto, em
1919. Já no pós-25 de Abril, em 1982, recebeu as estrelas de general em
São Paulo, a instâncias de José Verdasca junto do General Ramalho Eanes,
então Presidente da República.
Não é portanto das recordações
de João Maria Ferreira Sarmento Pimentel que trata o livro, e ainda menos
das balizadas entre 1918 e 1938, período em que foi capitão do Exército
Português, sim das do herói das
Memórias do Capitão, na sua categoria
de narrador intradiegético, ou seja, participante interno da
narrativa.
E com isto passamos ao meu tema de hoje, que é o
de Sarmento Pimentel, além de herói da República, também ser um escritor.
Cumpre agora agrafar uma nota à declaração de
modernidade adiantada por Jorge de Sena, e à sua rejeição da etiqueta
camiliana para algumas figuras retratadas, pertencentes à adolescência do
escritor. A modernidade reagiu contra o espartilho das formas académicas,
mas isso não significa que, ao juntar peças soltas, Sarmento Pimentel
tivesse premeditado a subversão dos géneros literários. Não, ele
comporta-se apenas segundo um natural estilo anárquico, reunindo
os textos para registo histórico e
não para se bater na vanguarda estética. Ele não é um esteta, embora se
note que saboreia com prazer a língua, é um político e muito provavelmente
um militar frustrado, obrigado a sair da carreira que ele mesmo escolhera,
ainda adolescente, ao contemplar um quartel de inverno, salvo erro em
Amarante, e ao refletir em que fazia parte de uma família de militares –
um deles foi o General Morais Sarmento (fundador do
Diário Popular). Outro, o
General António Carvalhal, governador militar de Lisboa à data da
implantação da República, que no dia 6 de outubro de 1910 estava no seu
posto, para dirigir aos lisboetas uma proclamação, a pedir disciplina e
obediência ao novo regime. Seu bisavô, Francisco Ferreira Sarmento de
Moraes Pimentel, fora Tenente-Coronel do Regimento de Milícias de Vila
Real e combatera na Guerra Peninsular, e mais militares ainda se contam na
família.
De outra parte, ainda a propósito do prefácio de
Jorge de Sena às Memórias do Capitão,
afirmar que não são camilianas as figuras porque esses tipos já existiam
antes de Camilo, chama a atenção para a formação clássica e romântica do
autor, em oposição às tendências de facto modernas do seu tempo, e que ele
conhecia bem. Em conversa com Amadeo de Souza Cardoso, seu amigo, comenta
que o artista amarantino pintava daquela maneira porque tinha dinheiro
para se dar a esse luxo; se precisasse de ganhar a vida com a pintura, não
teria outro remédio senão obedecer às normas da academia.
Como escritor, Sarmento Pimentel deu a público um
único livro, as Memórias do Capitão,
em primeira edição em São Paulo, em 1962; proibido como estava de publicar
em Portugal, a edição portuguesa só foi possível em 1974, certamente após
o 25 de Abril. Esta segunda edição, considerada completa pelo autor,
comporta uma segunda parte, relativa aos primeiros anos na América do Sul,
quando Sarmento Pimentel, delegado de uma empresa que comerciava tabaco,
viajou até Buenos Aires, onde se ocupou durante três anos na ampliação do
mercado.
Além das duas edições das
Memórias do Capitão, podemos
também considerar de sua autoria o título
Sarmento Pimentel, uma geração traída – Diálogos de Norberto Lopes com o
autor das “Memórias do Capitão”. Também neste caso houve duas edições,
a primeira de 1976, a segunda, de 1977, ampliada com “documentos inéditos
da luta contra a ditadura”.
Apesar de Sarmento Pimentel ter convivido com
escritores e artistas de todas as tendências, a principal força que o
orienta é a defesa da liberdade, liberdade política e cívica a que fica
anexa a luta contra a Censura, mordaça da liberdade de criação artística;
dispunha de dois exércitos com objetivo idêntico mas de práticas distintas
a dar-lhe guarida, se quisesse: o surrealista e o neorrealista. Tendo
passado pela direção da Seara Nova
e colaborado nela, sendo seus correligionários mais importantes os outros
diretores, motores aliás da revolta que o levou ao exílio, em 1927, o que
mais transluz na obra de Sarmento Pimentel é a claridade de meios, formas
e finalidades que habitualmente encontramos na estética neorrealista. A
esse golpe falhado de 1927, considerado o primeiro contra a ditadura
militar que conduziu ao Estado Novo, dei num artigo o nome de “Revolta dos
bibliotecários”, pois a sua liderança aquartelava-se na Biblioteca
Nacional, em Lisboa, com António Sérgio e Jaime Cortesão na linha da
frente e outros bibliotecários e intelectuais na retaguarda.
A obra escrita de Sarmento Pimentel não se esgota
naqueles dois títulos. Existem os seus relatórios militares, integrados no
do comandante, caso do General Pereira d’Eça, a dar conta da missão
centrada em Naulila, na I Grande Guerra. Incluem-se nos relatórios cartas
geográficas de vários pontos dessa região do Sul de Angola, na bacia do
Cunene; é preciso lembrar manifestos de edição subversiva e clandestina,
como a carta coletiva endereçada «Ao Povo Português», em 1927, e a «Carta
ao Exército Português», já nos anos cinquenta, e que não chegou a
circular, pois os oficiais a quem foi enviada tiveram medo e
esconderam-na; artigos na Seara Nova
e em jornais portugueses e brasileiros completam o lote da sua obra
édita. Inédita é a maior parte da sua produção escrita, maioritariamente
epistolográfica. Deste lote, prevê-se edição de duas centenas de cartas
para Jorge de Sena, preparadas por Mécia de Sena. Milhares de outras
cartas conservam-se no seu espólio, na Biblioteca Sarmento Pimentel, em
Mirandela; algumas foram encontradas por Ilda Crugeira na Torre do Tombo,
Arquivo da PIDE, dando larga razão a Sarmento Pimentel, quando se queixa
de suspeitos extravios de correspondência; também consultámos cartas na
biblioteca da Fundação Mário Soares e existem mais em arquivos
institucionais e particulares, caso de um lote de umas trinta, dirigidas
do Brasil ao seu cunhado, Fortunato Seara Cardoso, então diretor d’
O Comércio do Porto, que nos
foram oferecidas pela sua filha, sobrinha de Sarmento Pimentel, Maria
Elisa Pérez, entretanto falecida. Sobre estas cartas já tive ocasião de
falar, a propósito da visita de Mário Soares a Sarmento Pimentel, em São
Paulo, e da sua ligação com Lúcio Tomé Feteira. Todavia, a sua riqueza de
informação não se esgota em dois artigos.
Sintetizando: o manancial de textos escritos que
nos legou Sarmento Pimentel dá para alimentar muitas teses de mestrado e
de doutoramento, sobre aspetos vários da História de Portugal e do Brasil
no século XX. Não podemos, no nosso horizonte de vida, mais do que ir
descobrindo, nos noventa e nove anos que ele viveu, uns grãos de toda a
História de Portugal contida no celeiro das
Memórias do Capitão. Se atendermos a que ele esboça a sua árvore
genealógica a partir de sementes dos primórdios da nacionalidade, e que de
vez em quando se aventura em prognósticos para o futuro, os mais
importantes dos quais foram a descolonização e a revolução de 1974, é de
facto com cerca de mil anos de
História que nos vamos debatendo.
Sarmento Pimentel escreveu memórias que tendiam
para a novelística, mas a mordaça imposta pelo regime de Oliveira Salazar,
que o proibiu de publicar em Portugal, deve ter sido tão castradora que
ele perdeu o ímpeto, já que podia ter recorrido em liberdade às editoras
do Brasil, onde viveu afinal a maior parte da vida, e onde viram pela
primeira vez a luz as Memórias do
Capitão, obra que chegou a figurar nos cursos de Literatura Portuguesa
das universidades brasileiras.
O escritor nasceu, viveu e morreu no meio da
literatura, entre livros, intelectuais e figuras literárias, mais do que
aqueles que aqui é viável mencionar. Na adolescência, eram frequentes os
saraus na Casa da Torre, de sua mãe, Maria Margarida de Ataíde Pavão;
esboçavam-se peças de teatro, declamavam-se os poetas em voga, em
particular Antero de Quental, e o anfitrião, também dado às letras,
declamava poemas de sua própria autoria. O anfitrião, Leopoldo Ferreira
Sarmento Pimentel, seu pai, era um proprietário rural abastado que então
geria três quintas, com alguns intervalos políticos, quando o chamavam a
tomar as rédeas de administrador do concelho de Mirandela, funções que já
seu pai, tesoureiro da Alfândega de Bragança, desempenhara. Com efeito,
João Maria Ferreira Sarmento de Moraes Pimentel, nascido a 3 de julho de
1816, foi administrador do Concelho de Mirandela, em 1857, e do de
Carrazedo de Montenegro. Era casado com D. Maria Antónia Pereira de
Lacerda, Dama da Rainha D. Carlota Joaquina.
Leopoldo desempenhou papel relevante na
modernização das alfaias agrícolas, e papel principal há de ter
desempenhado também nos saraus da Casa da Torre.
Mais tarde, como vai contando nas
Memórias e nos
Diálogos
de Norberto Lopes, Sarmento Pimentel foi frequentador assíduo de
tertúlias, uma delas, de mais viva recordação, na Rua da Sovela, no Porto,
frequentada por Sampaio Bruno.
Com o Capitão, não é possível separar a arte e a
cultura da ação política, por isso são culturais e bem atrevidas
manifestações políticas como um “enterro do charuto”, em Braga,
empreendido com colegas do liceu, em que proferiram, e cito dos
Diálogos de Norberto Lopes:
«discursos furiosos contra a monarquia, contra o governo, contra os
políticos e suponho que, já, contra o monopólio e os latifúndios”.
Nesta ordem de ideias insere-se o jornal
O Povo de Felgueiras, que teve
como fundadores, entre outros jovens da família que passavam férias na
Casa da Torre, João Sarmento Pimentel e o seu irmão Alfredo. Alguns, como
Leonardo Coimbra, eram seus colegas no Liceu de Amarante.
Ao longo da vida, Sarmento Pimentel privou com a
melhor literatura e com os melhores escritores, brasileiros também, a
partir do momento em que se estabeleceu no Brasil. Remato com apenas duas
figuras, que pessoalmente mais me estimulam a imaginação e por acaso se
correlacionam nas Memórias do Capitão: Pêro Coelho e Teixeira de Pascoaes. Pêro Coelho
pertence à natureza do Capitão: é uma figura literária. Matador de Inês de
Castro, passou à História universal através das dezenas de obras,
nacionais e estrangeiras, que vêm tratando o tema dos amores de D. Pedro e
D. Inês: poemas, narrativas, peças de teatro, filmes, óperas, pintura...
Em que ponto se cruza Pêro Coelho com o Capitão? Pois bem, este refere que
na árvore genealógica de Sarmento Pimentel figuram Coelhos e que Pêro
Coelho teria sido um dos proprietários do solar de Sergude, a que
pertencia a Casa da Torre da sua infância, herdada por sua mãe. E mais
adianta: que certo dia, estando Miguel de Unamuno de visita a Teixeira de
Pascoaes, e interessando-se o escritor espanhol pela famosa história de
Inês de Castro, ele levara Unamuno a conhecer o solar de Sergude, em
Sendim, sempre no Concelho de Felgueiras.
A propósito do Solar de Sergude, que hoje abriga
uma instituição pertencente ao Ministério da Agricultura, corre uma lenda
sobre Inês de Castro. Ela morreu a 7 de janeiro de 1355. Diz então a lenda
que todos os anos, a 7 de janeiro, o
fantasma de D. Inês assombra os jardins do solar de Sergude, por ter sido
a casa de Pêro Coelho, um dos seus carrascos. Para nosso descanso, de
Henrique Dória e meu, que a chegámos a descortinar num painel de azulejos
a chorar sobre uma fonte, em visita recente ao local, os funcionários do
Ministério garantiram que nunca tinham visto o fantasma de Inês de Castro,
e eu acredito neles.
Quanto a Teixeira de Pascoaes, que hoje frutifica
na árvore genealógica dos surrealistas, pertencia à família de Sarmento
Pimentel. O último da família a morar no Solar de Sergude foi Teixeira
Coelho, segundo o funcionário do Ministério da Agricultura que nos recebeu
ali, ao Henrique e a mim, no passado dia 15. De outra parte, no livro de
heráldica Pedras de armas e brasões tumulares do Concelho de Felgueiras,
figura a informação de que na igreja da Casa da Torre, em Rande, as armas
dos Pimentel foram colocadas no lugar onde antes tinham estado as armas da
Família Teixeira. Que as duas casas estavam ligadas di-lo nas
Memórias do Capitão Sarmento Pimentel, quando rememora os da sua
linhagem, afirmando, de acordo com velhos tombos, que a Torre de Rande era
feudo de Sergude desde os primórdios da Nacionalidade.
A Torre, dita de vigilância no
Caminho de Santiago, tem essa função expressa nas vieiras do brasão da
família Pimentel.
Por consequência, antepassados de Teixeira de
Pascoaes viveram na Casa da Torre e no Solar de Sergude. Porém, se o
escritor nem com o neorrealismo, seu mais próximo familiar estético,
mostra total compatibilidade, com o misticismo de Teixeira de Pascoaes,
então, a familiaridade é nula. Mais relação com o poeta de
Maranus parece ter o irmão
aviador, Francisco Sarmento Pimentel, ao batizar com o nome de “Marão” o
aparelho em que praticou a pioneira viagem aérea de Portugal para a Índia,
em 1930.
Francisco não era o único irmão. Leopoldo e
Margarida tiveram cinco filhos, a saber, do mais velho para o mais novo:
Alfredo, nascido em 1885; Maria das Dores, 1886; Maria Helena, nascida em
1887; João Maria Ferreira Sarmento de Moraes Pimentel, o “Capitão”,
nascido em 1888; e Francisco, o aviador,
em 1995.
João Sarmento Pimentel não seguiu as pisadas
filosóficas do seu amigo Leonardo Coimbra, nem os voos líricos do seu
parente Teixeira de Pascoaes. Nada nele subverte a academia a ponto de se
encontrar com o futurismo de um Almada Negreiros, e chamar-lhe
neorrealista é desafiar Jorge de Sena, que o deu como inclassificável.
Realmente, Sarmento Pimentel, como escritor, é muito parecido com o
Capitão, a que eu aporia a etiqueta de herói solitário. Porém, não é para
agora a defesa de tal tese num homem de quartel, família e comícios,
solidário, amante de tertúlias, participante em movimentações de populares
e soldados, que sempre defendeu a questão social. Fique então o
problemático herói solitário para uma próxima reunião.
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