Oscar Portela é um poeta bem conhecido e reconhecido no seu país, a Argentina, e fora dela, no TriploV, por exemplo, é uma voz desperta e que nos desperta com a sua apaixonada insistência.
O tom em que canta este Orfeu sul-americano é agudo, a voz posiciona-se alto, talvez porque a temática se abeira perigosamente do precipício, e esta tensão para o épico equilibra uma vocação lírica, ostensivamente firmada no Eu ("Yo" é o poema de abertura de "Claroscuro", traduzido por mim como exercício exegético inicial), um Eu demasiado frágil para o peso divino que transporta.
Com efeito, Oscar Portela tem a audácia dos grandes aedos que se erguem do canto auto-equiparados aos deuses, a Deus, o Criador. Nós, poetas, criadores, à imagem e semelhança de. Se nós não criássemos cultura, metade do planeta que ainda trabalha estaria no desemprego, por falta de livros para traduzir e comentar, por falta de turismo que vos levasse às Portas de Tebas, por falta de cursos de Literatura para ministrar nas Universidades, por falta de nomes para pôr em chapa nas ruas e monumentos e edifícios públicos, por falta de concursos na televisão em que se pergunta em que data publicou Oscar Portela o seu terceiro livro, por falta de candidatos aos prémios literários que assim não existiriam, e mesmo por falta de candidatos às presidenciais - temos um poeta, Manuel Alegre, nas eleições a Presidente da República, no próximo dia 22 de Janeiro - e creio que não valerá a pena alongar-me mais nos exemplos de como os poetas são precisos, apesar de ignorados, em todos os estratos e áreas do conhecimento e da vida dos cidadãos.
Em "Claroscuro", livro em que se cruzam tendências antagónicas, de amor e ódio à res publica, de resto o poeta, em ensaios publicados no TriploV, manifesta a sua convicção em que o regime político configurado no conceito "República" está esgotado, já não é capaz de garantir a solução de problemas, pelo menos na Argentina, neste livro, dizia, Oscar Portela traduz com grande audácia e soberania as tensões sempre presentes entre o artista e o regime, entre o poeta e a polis, ou entre o que é desejo permanente de mudança e aquilo que exerce continuada força para se manter estável. Noutra acepção, esse braço de ferro entre o salto no abismo e a vontade de sobrevivência é sempre jogado no interior de cada um de nós. O uso em absoluto livre da liberdade, e a redundância está aí por ser precisa, seria estúpido. Somos livres para nos suicidar, eis um caso exemplar de uso absolutamente livre da liberdade, numa situação com significado individual, social e religioso. Sim, mas nada de mais inútil do que um poeta morto.
Estes problemas e outros subjazem à construção dos poemas, ou pelo menos àquela construção do poema que não depende do criador, sim do intérprete. Os textos não existem como seres dotados de sentidos, a menos que sejam lidos, e qualquer leitura é uma construção, um outro texto. Realmente nem é necessário que existam textos escritos e consignados como alta ou baixa literatura, para que a hermenêutica se exerça. Muitos vivem dentro das suas fantasias sem saberem que as têm, a sua mente está em permanência ocupada em interpretar sinais, palavras e acontecimentos. Coisas diárias, comezinhas, como perguntar o filho à mãe onde pôs a braseira, e a mãe:
- Mas não disseste que compraste um aquecedor a gás e que vai chegar daqui a nada? Onde é que já se viu ter braseira e aquecedor a gás na mesma sala? É que já nem falo da despesa e do trabalho, falo da saúde, e isto se não pegares fogo às cortinas ou se não morreres com falta de ar!
Esta tirada equivale a toda uma ficção, gerada por um espírito estruturalmente hermenêutico, habituado a interpretar, a construir textos ficcionais a partir de pequenos indícios.
Terrível é quando o poeta é mau oráculo, não sabe ler as sondagens, não consegue interpretar as estatísticas, nem os símbolos, nem as palavras mais banais ou mais preciosas, como aquela mãe de mente muito criadora, mas que falha com estrondo os vaticínios:
- Ó mãe - impacienta-se o rapaz - eu só perguntei onde pôs a braseira porque queria saber o que fez às cinzas...
Uma vez que o Eu de "Claroscuro" é um "Yo" órfico, divino, uma das presenças dos poemas é a hermenêutica, em várias facetas, desde a interpretação dos textos sagrados até às artes divinatórias. Neste campo, um aspecto me merece comentário, o de realmente se tratar de poemas órficos, isto é, de a bagagem mágica e simbólica de Oscar Portela não ser - visivelmente - a guarani nem a de outros povos índios da América do Sul, sim a greco-latina, a dos povos antigos do Mediterrâneo. Não se nota - eu não noto - nenhuma argentinidade (se tal existe) no poeta, o que há de argentino nele é dado em primeiro lugar pelo facto de ele ter nascido na Argentina e por isso falar castelhano. Em consequência, é um poeta europeu. Ou é um poeta global, já que a globalização, em termos de cultura, é de élites, visto que só as élites têm acesso à cultura internacional e apetência por ela.
Em Vigo, no mês passado, um grupo de portugueses - escritores e pintores - fomos ao MARCO, Museu de Arte Contemporânea, ver o que lá estava de mais substantivo - uma colectiva de artistas plásticos japoneses. Íamos justamente a discutir estatística sem sondagens, a fazer oráculos e hermenêutica, uns na expectativa de algo diverso, surpreendente, japónico, e outros a discorrer que iríamos encontrar o mesmo tipo de arte que praticam os europeus ou os americanos.
O que encontrámos era belo, sem dúvida, mas paisagens com néons já o Silvestre Pestana as faz há trinta anos, fotografia já a fazemos todos desde o século XIX..., e de japónico naquela exposição só havia alguns modelos, referentes de alguns objectos: pessoas de olhos em bico, letreiros em japonês, Budas, templos fotografados...
Bem, não vamos agora retirar japonicidade a Buda ou então não sobra nada de indígena na obra do que nós fazemos, como artistas.
Sim, o que há de especificamente português no TriploV? Chamo a atenção de quem me leia para dois sinais na fachada, que me senti na necessidade de ali pôr, ambos dignos de mais oportuna exegese: a bandeira portuguesa e as palavras "português" e "Portugal". O que há de mais argentino no livro de Oscar Portela é o facto de ele, autor, ser argentino. Este "ser" é muito complexo, envolve hereditariedade, e por isso biologia, além das línguas e culturas. Ele é argentino ao escrever sobre o "cementerio pueblerino" onde está enterrado o seu papá, e escrever sobre esse assunto é entrar em si mesmo, na sua argentinidade. Porque Oscar Portela é visceralmente argentino, apesar das divindades todas do Hades e do Olimpo, e das dedicatórias dos poemas a Antonin Artaud e até a Estela Guedes. Ele está mortalmente apaixonado por uma Argentina adormecida, que ele deseja "despierta", porque o seu modo de ser poeta - e Oscar Portela é um grande poeta, cheio de fogo trágico e de sugestões da filosofia -, contra os desejos de Platão, é indissociável do ser político. Bruxo, tecendo oráculos sobre o destino da sua pátria, o poeta tenta ressuscitá-la com o canto.
O lugar a onde vai buscar a sua amada é aquele a onde Orfeu desceu à procura da sua Eurídice - os Infernos.
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