MARIA ESTELA GUEDES
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CARTAS DE CRUZEIRO SEIXAS |
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"Naufrágio de Ilustraletrações" é um luxo para bibliófilos, por isso as minhas primeiras palavras são para o alfarrabista e editor, Miguel de Carvalho, artista que voga nas ondas do Surrealismo, como o autor dos objectos contidos no livro-caixa que ora nos ocupa, para lhe agradecer a generosidade da oferta do penúltimo exemplar, o 39/40. Além dos 40, a tiragem, limitadíssima, incluiu mais 10, numerados de I a X, hors commerce. Oferta valiosa, que partilho com os leitores, mostrando-lhes um pouco dos conteúdos da caixa, incluído o índice, em http://www.triplov.com/surreal/Cruzeiro-Seixas/Naufragio/index.htm . Havendo na caixa-livro colaboração de autores diversos, a começar e a acabar por Miguel de Carvalho, que prefacia (1) a obra e assina, como artista, a colagem do cólofon (2), a maior parte dos trabalhos pertencem a Cruzeiro Seixas. São cartas, postais, ilustrados ou não com poemas e pintura ou desenho. Sarane Alexandrian (3) lamenta só agora ter conhecido Artur do Cruzeiro Seixas. É interessante a nota, porque também eu lamento algo idêntico no texto de abertura do dossier sobre o Surrealismo, editado por Floriano Martins e por mim na revista Atalaia-Intermundos (4). Em especial, ignorei a minha contiguidade surrealista até descobrir que TriploV era a célebre revista VVV, editada em Nova Iorque por André Breton. Não espanta assim que os estrangeiros só agora descubram surrealistas portugueses da velha guarda. Os surrealistas manifestam atracção por dadas técnicas, como a colagem. Na generalidade, ela consiste em recortar imagens e apô-las a outras, de forma metafórica, por se tratar de um transporte de formas/sentidos de um lugar seu para o que não lhe pertence. Essa técnica pode aparecer em obras diversas da collage, por exemplo na pintura, em que se acumulam objectos díspares, ou na carta, tão atraente como as de Cruzeiro Seixas, em que se juntam escrita e imagem, de tal forma que Sarane Alexandrian considera o artista um poeta-pintor. Em suma, Cruzeiro Seixas cria híbridos de tipos vários. Algo desejo acrescentar a este ponto, pois não se trata, em Cruzeiro Seixas, de acumular objectos que se mantenham autónomos uns dos outros, sim de levar um objecto a ir-se metamorfoseando noutro. A autonomia deixa de ser total, porque da conjunção dos contrários, matriz da criação, nasce um terceiro, que já não é A nem B, sim um objecto C. Se os objectos A e B podem pertencer ao registo das coisas reais, o objecto C é uma criação, algo que só existe na fantasia. Tal acontece na estampa que mostra um braço feito de uma folha de papel enrolado, cujos dedos se espraiam no deserto, desempenhando o papel de duna, sob os dizeres "... quantas vezes encontrei em tempos/ de luar antigo esta mão nas praias desertas..." Essa mão parece ter deixado cair duas figurinhas, um casal nascido da terra. É a mão do criador. |
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Não se trata, como é visível, de uma colagem de elementos autónomos, isolados uns dos outros, sim de um continuum de linhas que gera a imagem final: esta imagem final, impossível, não corresponde a uma soma de coisas reais, sim ao produto irreal do cruzamento de coisas e seres com contrapartida no mundo real. O onirismo, o delírio, a febre da alta criação fazem parte das vivências surrealistas, com os seus fogachos apocalípticos, como o acaso objectivo. Nada que não pertença à interioridade do artista. Tudo está nele, os deuses, externos, sejam eles quais forem, mais não podem do que desencadear processos, provocar estados de alma. Os cavalos manuais que rubricam as cartas, esses, não dependem da vontade divina, são criações do poeta. Tal como na estampa do muro em que se funde um corpo humano-vegetal (5), parte da energia criadora vem da chave pendurada na região da estampa correspondente à da zona genital. Eros é uma divindade orgânica, energia cujo continuum faz o homem devir planta e pingar metal. Tais passagens de um ser a outro, de um estado a outro, lembram a música. Realmente, embora tragam à mente a figura da colagem, não têm a cola como elemento de fusão, sim o pólen, o sémen. Estas figuras sobreviveram à passagem dos anos, estão em magnífico estado de conservação, pelo menos enquanto reproduções, e chegam agora até nós como um deslumbrante tesouro de piratas. Numa das estampas, parece que algumas se vão precipitar no abismo salgado de um mar de letras, mas não se precipitam, e por isso não naufragam. Não entendi por que motivo a caixa-livro tem o título de "Naufrágio", a menos que o naufrágio diga respeito às interpretações dos leitores. O problema não é do leitor, sim do lugar onde se deixam as chaves... |
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(1) Em: http://www.triplov.com/surreal/Cruzeiro-Seixas/Naufragio/pages/Miguel1.htm http://www.triplov.com/surreal/Cruzeiro-Seixas/Naufragio/pages/Miguel2.htm (2) Em: http://www.triplov.com/surreal/Cruzeiro-Seixas/Naufragio/pages/Zzz-colofon.htm (3) http://www.triplov.com/surreal/Cruzeiro-Seixas/Sarane-Alexandrian.htm (4) Maria Estela Guedes: Surrealistas que se ignoram. Atalaia-Intermundos - Revista do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa. Nº 11-12, 2002. Em linha em: http://www.triplov.com/surreal/estela.html (5) Em: http://www.triplov.com/surreal/Cruzeiro-Seixas/Naufragio/pages/CSeixas1.htm |
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