MARIA ESTELA GUEDES
Foto: Ed. Guimarães
Música: http://triplov.com/letras/mario_montaut/Estela/index.htm

Antropomorfização da Natureza nos documentários de televisão

Homenagem a Germano da Fonseca Sacarrão . Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, 1 de outubro de 2015.

Hoje muita coisa mudou nos trabalhos de campo, nas suas ferramentas audiovisuais e mesmo no posicionamento teórico dos biólogos do comportamento animal, por isso, hoje, talvez o Prof. Sacarrão se deleitasse sem queixas a ver os documentários sobre História Natural que passam na TV Cabo, com chancela tão importante como a de David Attenborough, de grandes museus, da Smithsonian Institution e da National Geographic. Há vinte anos, porém, o Prof. Sacarrão, crítico da sociobiologia, paladino de um discurso científico isento de metáforas, e por conseguinte limpo de antropomorfizações, consideraria um erro a atribuição de sentimentos e capacidade estratégica aos animais. Ele não deixaria passar sem reparo que certos macacos fossem chamados ladrões e os cucos trapaceiros, que tão sistematicamente se considerassem assassinos os predadores, que se falasse do carinho, do nervosismo, da irritação ou da impaciência de uma mãe ursa por causa do filhote, da dor dos elefantes perante a morte de um dos seus, e por aí adiante.

A antropomorfização avoluma-se com a nossa proximidade na árvore filogenética, é maior com os mamíferos e máxima em relação aos primatas, mas também ocorre em classes distantes, e mesmo em formas metamórficas, para não dizer que «Evolução» e «Adaptação» substituem por vezes a palavra «Deus».

O Prof. Sacarrão alargava o comentário aos filmes de ficção científica. Era um cinéfilo, por isso dava atenção ao que no cinema se relacionava com os teus temas de conversa prediletos. Então asseverava que a imagem dos extraterrestres, por muito aberrante e fantasiosa, assentava sempre na estrutura do corpo humano: essas personagens andavam, tinham membros para agarrar, órgãos para ver e ouvir, cabeça com dispositivo anatómico para ingerir alimento e produzir raciocínios iguais aos nossos. Hoje, os alienígenas ainda lhe despertariam mais interesse, porque a forma e a estrutura anatómica perderam terreno em favor do orgânico. A antropomorfização, no cinema atual de ficção científica, incide na matéria mole, nos sucos, na baba, na coisa seminal e viscosa, enfim, em tudo o que no organismo humano é tão visceral que nos causa repugnância.

Voltando à Terra, vejamos um caso miúdo de antropomorfização. Pergunta alguém observando um charco: «Porque é que uns girinos se metamorfoseiam mais depressa do que outros?» Responde o zoólogo: «Têm de decidir o que mais lhes convém, consoante o ambiente; assim, uns decidem mais depressa e outros demoram mais. Se o girino decide ir para um local na água com mais sol, a água fica mais quente e ele transforma-se mais depressa».

Um pouco acima da forma metamórfica com capacidade intelectual para tomar decisões, temos uns peixitos que lançam um jato de água sobre os insetos que pairam no rio acima da sua cabeça, para os obrigarem a cair. Esta conjunção final para, em para os obrigarem a cair e assim capturarem a presa, é minha, mas no corpus em análise tal retórica é vulgaríssima. Podia eu evitar o erro? Como ensinava o Prof. Sacarrão, tanto pode ser para como porque, o facto de a conjunção para mover a uma interpretação evolutiva e a conjunção porque pedir a adaptativa não significa que alguma das exegeses seja a acertada. Se substituirmos a conjunção final pela causal, ficamos com o seguinte enunciado: «Porque o peixe é dotado da capacidade de emitir um jato de água para fora do seu meio, ele captura as presas dessa maneira».

Pode ser que o meu discurso tenha melhorado para os cientistas, mas, do ponto de vista literário, a diferença só acentua o antropomorfismo. Pergunta-se: “Então o peixe faz parte de uma cultura que aprendeu a usar partes do corpo como ferramenta para assegurar o seu sustento diário? Qual a diferença, nessa matéria, entre um jato de água e um pau, uma pedra, ou uma rede para caçar borboletas?”. Esta pergunta não é retórica, pois já nos habituámos a ouvir falar de cultura entre os animais. Esse é um dado da nossa própria observação, nós vemos claramente os adultos ensinarem as crias a selecionar e a desfolhar o melhor ramito para o introduzirem em certa entrada de formigueiro e dessa maneira o retirarem coberto de larvas; a tal ensino e aprendizagem só podemos chamar escola, logo cultura. Por consequência, já não espanta que num documentário sobre orcas nos garantam que, existindo embora em toda a parte, tenham culturas muito diferentes. «Cada grupo de orcas tem a sua cultura».

Voltemos entretanto ao happy end do documentário sobre a técnica de caçar insetos com um jato de água, para ouvirmos o narrador, uma vez capturada e engolida a presa: «O peixe sente ter cumprido a sua missão».

Não comento o sentimento de alegria do peixe por ter cumprido a sua missão, comento uma ambiguidade comum a muitos filmes, aliás também eu a estou a cometer, ao falar do peixe que lança um jato de água. Parece que nos referimos a certo indivíduo, adestrado para um número de circo, mas não, não é um peixe estrela de Hollywood, sim uma espécie ou população de uns milhões de indivíduos, e todos se comportam de igual modo, pelo menos na minha intervenção.

Além da metáfora, a sinédoque é a segunda figura de retórica a contribuir para a humanização dos animais: é frequente falar-se do tigre em vez dos tigres, isto é, toma-se a parte pelo todo, exibe-se o espécime em vez da espécie. Quando se trata de referir efetivos populacionais, a confusão pode ser total: em dada região “há dois milhões de insetos”, ouvi certa vez. O que é que esta frase quer dizer? Que há dois milhões de formigas, mosquitos, abelhas, borboletas e libelinhas recenseados um a um, ou que há dois milhões de espécies de insetos?

O assunto é importante porque o mais elevado grau de antropomorfização consiste em esquecer a população em favor do indivíduo, aquele animal que temos no ecrã em plano tão aproximado que nos dá vontade de o acarinhar se for um pintainho ou de fugir se for uma cascavel. Temos aqui o cerne da questão, que não será exatamente o de atribuirmos humanidade aos animais, sim de nos irmanarmos a eles, de empatizarmos, de nos comover o conhecimento de que aquele tão querido chimpanzé partilha connosco a quase totalidade dos cromossomas. E com esta fraternidade vem o caráter diagnosticante mais óbvio da antropomorfização, que é o de atribuirmos antropónimos aos animais. Antropónimos são os nossos nomes próprios, também chamados de batismo: Maria, Fred, João ou Kate. É possível, nunca dei conta mas tudo pode acontecer, que também já tenhamos batizado espécimes animais com os nossos nomes de família: Martins, Silva, Pitt, Wallace, Hooker, etc..

Ressalvo o caso de identificação de espécies, seja exemplo «Lanius newtoni Bocage, 1891», nome que traz apenso o do autor, Barboza du Bocage, e integrado o de Francisco Newton, descobridor dos espécimes que permitiram a Bocage apresentar essa nova espécie para a ciência. Além do binómio em latim identificador da espécie, funciona uma referência bibliográfica que seria útil ver referida sempre na íntegra. Aliás sou tentada a ver falta de ética no escamoteamento daquilo que equivale ao autor de uma obra de arte. Contra algum preconceito reinante, o antropónimo anexo ou integrante da designação de espécie não quer dizer vaidade de quem se julga criador dos animais, quer dizer responsabilidade de quem assina um texto, no caso com a descrição original da espécie. O nome refere o autor de uma obra publicada em certa data e não o de alguém que se julga Deus criador in illo tempore de plantas e animais. Além da taxonomia, lidamos com bibliografia, por isso aproveito a tribuna para solicitar, contra a tendência geral, que as referências bibliográficas, ao menos uma vez por artigo, venham completas, ou o recetor do discurso científico ficará defraudado. O defeito maior dos documentários de televisão, a meus olhos nus de amadora, vem da falta de identificação das espécies. É um total contrassenso que retira grande parte da cientificidade ao que tem alto valor científico, ao dar a ver e ouvir aquilo que mesmo especialistas nos grupos mostrados nunca viram nem ouviram nos seus trabalhos de campo. De um lado dá-se o nome de Prometeu a um espécime de leopardo, de outro não se identifica a espécie a que ele pertence. Pelo meio fica um tradutor atarantado, como alguns que recebi na biblioteca do Museu Bocage, pois nem sempre há nomes vulgares portugueses para animais que não fazem parte da nossa fauna.

Não falarei das traduções, em nada se relacionam com o tema escolhido, aproveito porém a oportunidade para lembrar esse caso divertido em que ouvimos dizer que o ornitorrinco tem bico de canário… O Prof. Sacarrão adorava contar anedotas, havia de se rir com esta tradução de “bec de canard”…

Continuando com os antropónimos atribuídos aos espécimes, é compreensível que tal aconteça nos jardins zoológicos, e o de Berlim tem-nos proporcionado documentários enternecedores sobre crias, não raro designadas como «crianças» e «bebés», além de chamadas Paulo e Virgínia e Romeu e Julieta; longe da ação maternal dos tratadores, nos jardins zoológicos, também compreendo que no habitat próprio, seja na Amazónia ou nas Berlengas, o zoólogo precise de identificar os indivíduos do grupo que estuda de maneira a entender os graus de parentesco e as relações que uns estabelecem com outros; não deixa porém de ser antropomorfização no seu grau mais elevado a atribuição de nomes próprios como David e Mary a orangotangos e lontras. No que respeita à comunicação da ciência aos espectadores, a situação pode ficar muito confusa, como a mim aconteceu certa vez, pensando que o Steven muito preocupado com o filho fosse o pai lontra, afinal Steven era o mamalogista, mas logo a seguir foi geral a preocupação com a cria, pois estava muito perto da margem do rio, em sério perigo de ser comida por um jacaré. Todos raladíssimos: Kaká, Viviane, Steven, John e Estela, a saber: pai e mãe lontras, o homem da câmara, o mamalogista e eu.
Foto de Francisco Carrapiço: Maria Estela Guedes apresenta a sua comunicação
Inconclusões

Com mais tempo e preparação, podia apresentar conclusões ou posicionar-me a favor ou contra o antropocentrismo e correlata antropomorfização, que podem certamente existir dentro dos limite do bom senso. Fá-lo-ei numa próxima oportunidade, por agora despeço-me com uma citação de Philippe Descola, cujo teor teria sido repudiado por G.F. Sacarrão há vinte anos; hoje, sinceramente, não sei:

«O antropocentrismo, ou seja, a capacidade de se identificar com não humanos em função de seu suposto grau de proximidade com a espécie humana, parece assim constituir a tendência espontânea das diversas sensibilizações ecológicas contemporâneas, inclusive entre aqueles que professam as teorias mais radicalmente anti-humanistas» (1).
(1) Philippe Descola - «Estrutura ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia». Mana vol. 4 n.1. Rio de Janeiro Apr. 1998. Online version: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93131998000100002&script=sci_arttext
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Maria Estela Guedes (1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov

Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.

LIVROS

“Herberto Helder, Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979;  “SO2” . Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”, Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa, 1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários : Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora, 1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”. Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007; “Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed. Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010. “Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010; "Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa, Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013; Folhas de Flandres,  Lisboa, Apenas Livros, 2014.

ALGUNS COLECTIVOS

"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.

TEATRO

Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.