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Antropomorfização da Natureza nos documentários de televisão
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Homenagem a Germano da Fonseca Sacarrão . Centro de Filosofia das Ciências
da Universidade de Lisboa.
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, 1 de outubro de 2015.
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Hoje muita coisa mudou nos trabalhos de
campo, nas suas ferramentas audiovisuais e mesmo no posicionamento teórico
dos biólogos do comportamento animal, por isso, hoje, talvez o Prof.
Sacarrão se deleitasse sem queixas a ver os documentários sobre História
Natural que passam na TV Cabo, com chancela tão importante como a de David
Attenborough, de grandes museus, da Smithsonian Institution e da National
Geographic. Há vinte anos, porém, o Prof. Sacarrão, crítico da
sociobiologia, paladino de um discurso científico isento de metáforas, e
por conseguinte limpo de antropomorfizações, consideraria um erro a
atribuição de sentimentos e capacidade estratégica aos animais. Ele não
deixaria passar sem reparo que certos macacos fossem chamados ladrões e os
cucos trapaceiros, que tão sistematicamente se considerassem assassinos os
predadores, que se falasse do carinho, do nervosismo, da irritação ou da
impaciência de uma mãe ursa por causa do filhote, da dor dos elefantes
perante a morte de um dos seus, e por aí adiante.
A
antropomorfização avoluma-se com a nossa proximidade na árvore
filogenética, é maior com os mamíferos e máxima em relação aos primatas,
mas também ocorre em classes distantes, e mesmo em formas metamórficas,
para não dizer que «Evolução» e «Adaptação» substituem por vezes a palavra
«Deus».
O Prof. Sacarrão alargava o comentário aos filmes de
ficção científica. Era um cinéfilo, por isso dava atenção ao que no cinema
se relacionava com os teus temas de conversa prediletos. Então asseverava
que a imagem dos extraterrestres, por muito aberrante e fantasiosa,
assentava sempre na estrutura do corpo humano: essas personagens andavam,
tinham membros para agarrar, órgãos para ver e ouvir, cabeça com
dispositivo anatómico para ingerir alimento e produzir raciocínios iguais
aos nossos. Hoje, os alienígenas ainda lhe despertariam mais interesse,
porque a forma e a estrutura anatómica perderam terreno em favor do
orgânico. A antropomorfização, no cinema atual de ficção científica,
incide na matéria mole, nos sucos, na baba, na coisa seminal e viscosa,
enfim, em tudo o que no organismo humano é tão visceral que nos causa
repugnância.
Voltando à Terra, vejamos um caso miúdo de
antropomorfização. Pergunta alguém observando um charco: «Porque é que uns
girinos se metamorfoseiam mais depressa do que outros?» Responde o
zoólogo: «Têm de decidir o que mais lhes convém, consoante o ambiente;
assim, uns decidem mais depressa e outros demoram mais. Se o girino decide
ir para um local na água com mais sol, a água fica mais quente e ele
transforma-se mais depressa».
Um pouco acima da forma metamórfica
com capacidade intelectual para tomar decisões, temos uns peixitos que
lançam um jato de água sobre os insetos que pairam no rio acima da sua
cabeça, para os obrigarem a cair. Esta conjunção final para, em
para os
obrigarem a cair e assim capturarem a presa, é minha, mas no corpus
em
análise tal retórica é vulgaríssima. Podia eu evitar o erro? Como ensinava
o Prof. Sacarrão, tanto pode ser para como porque, o facto de a conjunção
para mover a uma interpretação evolutiva e a conjunção porque pedir a
adaptativa não significa que alguma das exegeses seja a acertada. Se
substituirmos a conjunção final pela causal, ficamos com o seguinte
enunciado: «Porque o peixe é dotado da capacidade de emitir um jato de
água para fora do seu meio, ele captura as presas dessa maneira».
Pode ser que o meu discurso tenha melhorado para os cientistas, mas, do
ponto de vista literário, a diferença só acentua o antropomorfismo.
Pergunta-se: “Então o peixe faz parte de uma cultura que aprendeu a usar
partes do corpo como ferramenta para assegurar o seu sustento diário? Qual
a diferença, nessa matéria, entre um jato de água e um pau, uma pedra, ou
uma rede para caçar borboletas?”. Esta pergunta não é retórica, pois já
nos habituámos a ouvir falar de cultura entre os animais. Esse é um dado
da nossa própria observação, nós vemos claramente os adultos ensinarem as
crias a selecionar e a desfolhar o melhor ramito para o introduzirem em
certa entrada de formigueiro e dessa maneira o retirarem coberto de
larvas; a tal ensino e aprendizagem só podemos chamar escola, logo
cultura. Por consequência, já não espanta que num documentário sobre orcas
nos garantam que, existindo embora em toda a parte, tenham culturas muito
diferentes. «Cada grupo de orcas tem a sua cultura».
Voltemos
entretanto ao happy end do documentário sobre a técnica de caçar insetos
com um jato de água, para ouvirmos o narrador, uma vez capturada e
engolida a presa: «O peixe sente ter cumprido a sua missão».
Não
comento o sentimento de alegria do peixe por ter cumprido a sua missão,
comento uma ambiguidade comum a muitos filmes, aliás também eu a estou a
cometer, ao falar do peixe que lança um jato de água. Parece que nos
referimos a certo indivíduo, adestrado para um número de circo, mas não,
não é um peixe estrela de Hollywood, sim uma espécie ou população de uns
milhões de indivíduos, e todos se comportam de igual modo, pelo menos na
minha intervenção.
Além da metáfora, a sinédoque é a segunda
figura de retórica a contribuir para a humanização dos animais: é
frequente falar-se do tigre em vez dos tigres, isto é, toma-se a parte
pelo todo, exibe-se o espécime em vez da espécie. Quando se trata de
referir efetivos populacionais, a confusão pode ser total: em dada região
“há dois milhões de insetos”, ouvi certa vez. O que é que esta frase quer
dizer? Que há dois milhões de formigas, mosquitos, abelhas, borboletas e
libelinhas recenseados um a um, ou que há dois milhões de espécies de
insetos?
O assunto é importante porque o mais elevado grau de
antropomorfização consiste em esquecer a população em favor do indivíduo,
aquele animal que temos no ecrã em plano tão aproximado que nos dá vontade
de o acarinhar se for um pintainho ou de fugir se for uma cascavel. Temos
aqui o cerne da questão, que não será exatamente o de atribuirmos
humanidade aos animais, sim de nos irmanarmos a eles, de empatizarmos, de
nos comover o conhecimento de que aquele tão querido chimpanzé partilha
connosco a quase totalidade dos cromossomas. E com esta fraternidade vem o
caráter diagnosticante mais óbvio da antropomorfização, que é o de
atribuirmos antropónimos aos animais. Antropónimos são os nossos nomes
próprios, também chamados de batismo: Maria, Fred, João ou Kate. É
possível, nunca dei conta mas tudo pode acontecer, que também já tenhamos
batizado espécimes animais com os nossos nomes de família: Martins, Silva,
Pitt, Wallace, Hooker, etc..
Ressalvo o caso de identificação de
espécies, seja exemplo «Lanius newtoni Bocage, 1891», nome que traz apenso
o do autor, Barboza du Bocage, e integrado o de Francisco Newton,
descobridor dos espécimes que permitiram a Bocage apresentar essa nova
espécie para a ciência. Além do binómio em latim identificador da espécie,
funciona uma referência bibliográfica que seria útil ver referida sempre
na íntegra. Aliás sou tentada a ver falta de ética no escamoteamento
daquilo que equivale ao autor de uma obra de arte. Contra algum
preconceito reinante, o antropónimo anexo ou integrante da designação de
espécie não quer dizer vaidade de quem se julga criador dos animais, quer
dizer responsabilidade de quem assina um texto, no caso com a descrição
original da espécie. O nome refere o autor de uma obra publicada em certa
data e não o de alguém que se julga Deus criador in illo tempore de
plantas e animais. Além da taxonomia, lidamos com bibliografia, por isso
aproveito a tribuna para solicitar, contra a tendência geral, que as
referências bibliográficas, ao menos uma vez por artigo, venham completas,
ou o recetor do discurso científico ficará defraudado. O defeito maior dos
documentários de televisão, a meus olhos nus de amadora, vem da falta de
identificação das espécies. É um total contrassenso que retira grande
parte da cientificidade ao que tem alto valor científico, ao dar a ver e
ouvir aquilo que mesmo especialistas nos grupos mostrados nunca viram nem
ouviram nos seus trabalhos de campo. De um lado dá-se o nome de Prometeu a
um espécime de leopardo, de outro não se identifica a espécie a que ele
pertence. Pelo meio fica um tradutor atarantado, como alguns que recebi na
biblioteca do Museu Bocage, pois nem sempre há nomes vulgares portugueses
para animais que não fazem parte da nossa fauna.
Não falarei das
traduções, em nada se relacionam com o tema escolhido, aproveito porém a
oportunidade para lembrar esse caso divertido em que ouvimos dizer que o
ornitorrinco tem bico de canário… O Prof. Sacarrão adorava contar
anedotas, havia de se rir com esta tradução de “bec de canard”…
Continuando com os antropónimos atribuídos aos espécimes, é compreensível
que tal aconteça nos jardins zoológicos, e o de Berlim tem-nos
proporcionado documentários enternecedores sobre crias, não raro
designadas como «crianças» e «bebés», além de chamadas Paulo e Virgínia e
Romeu e Julieta; longe da ação maternal dos tratadores, nos jardins
zoológicos, também compreendo que no habitat próprio, seja na Amazónia ou
nas Berlengas, o zoólogo precise de identificar os indivíduos do grupo que
estuda de maneira a entender os graus de parentesco e as relações que uns
estabelecem com outros; não deixa porém de ser antropomorfização no seu
grau mais elevado a atribuição de nomes próprios como David e Mary a
orangotangos e lontras. No que respeita à comunicação da ciência aos
espectadores, a situação pode ficar muito confusa, como a mim aconteceu
certa vez, pensando que o Steven muito preocupado com o filho fosse o pai
lontra, afinal Steven era o mamalogista, mas logo a seguir foi geral a
preocupação com a cria, pois estava muito perto da margem do rio, em sério
perigo de ser comida por um jacaré. Todos raladíssimos: Kaká, Viviane,
Steven, John e Estela, a saber: pai e mãe lontras, o homem da câmara, o
mamalogista e eu.
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Foto de Francisco
Carrapiço: Maria Estela Guedes apresenta a sua comunicação |
Inconclusões
Com mais tempo e preparação, podia apresentar
conclusões ou posicionar-me a favor ou contra o antropocentrismo e correlata
antropomorfização, que podem certamente existir dentro dos limite do bom
senso. Fá-lo-ei numa próxima oportunidade, por agora despeço-me com uma
citação de Philippe Descola, cujo teor teria sido repudiado por G.F.
Sacarrão há vinte anos; hoje, sinceramente, não sei:
«O
antropocentrismo, ou seja, a capacidade de se identificar com não humanos
em função de seu suposto grau de proximidade com a espécie humana, parece
assim constituir a tendência espontânea das diversas sensibilizações
ecológicas contemporâneas, inclusive entre aqueles que professam as
teorias mais radicalmente anti-humanistas» (1).
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(1) Philippe Descola - «Estrutura
ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia». Mana vol. 4 n.1. Rio
de Janeiro Apr. 1998. Online version:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93131998000100002&script=sci_arttext |
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Índice antigo |
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Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
Membro da Associação Portuguesa de Escritores,
da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010;
"Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa,
Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um
bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013;
Folhas de Flandres, Lisboa, Apenas Livros, 2014.
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e
Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A
minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary
Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
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