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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências

ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 







Maria Estela Guedes
Foto: Ed. Guimarães

Quero ir para a prisão
 
Meus amigos, tantos que deram a alma ao TriploV durante dez anos, ainda não me estou a despedir e a anunciar o fecho do site, mas sinceramente não sei o que será de nós para o ano. A avaliar pelas quebras de visitantes, muito internauta já deixou de o ser. A verba começa a faltar para bens muito mais essenciais do que os pacotes das comunicações.

E não, ainda não sou eu quem suspira pela prisão, já que neste país há muito mais velhos do que lares para a terceira idade. Cruzei-me há dias na rua com uma velha prima, por aqui quase toda a gente partilha comigo alguns genes, pois mulheres houve na família que tiveram mais de dez filhos. Uma prima de oitenta e nove anos, que mora sozinha nesses montes, e sozinha ficou, durante mais de três meses, sem poder mexer o braço nem a perna, depois de um tombo pequeno. Os velhos caem muito, como se sabe, desequilibram-se, e o corpo já não recupera como na força da idade. «Passei dias sem comer, que não podia ir para a cozinha, e fome também não tinha, foi o que valeu». Um filho ia lá a casa deixar mercearias e levá-la ao hospital. Outra coisa que os velhos relutam ferozmente em fazer é sair de sua casa, não querem incomodar ninguém. E outros já ninguém têm a quem recorrer, quando necessário.

Sabemos todos o que se passa, não somos indiferentes. Inútil acusar os governantes, duvido que saibam o que se passa ou que andaram a fazer. Tenho para mim que elegemos os melhores para nos governarem, decerto elegemos os piores, os que agem contra nós em vez de nos apoiarem, portanto a responsabilidade pelo descalabro em que nos encontramos também é nossa.

Não era de nada disto que queria falar, sim do António, nome suposto para evitar qualquer encrenca. O António é um homem-rapaz que recebe uma pensão de invalidez de pouco mais de cem euros por mês. Invalidez psiquiátrica. Dá uma ajuda a transportar lenha, hoje limpou o chão com a esfregona, vai buscar o pão, serviços que justificam as moedas que leva. Com um outro fulano que entretanto escapou para França, entrou numa casa de emigrantes, sem ninguém a habitá-la, e roubou uns objetos. Agora está cheio de esperança no julgamento, amanhã. «Estão todos contra mim!», afirma, convicto. Mas a sua maior esperança nem é a de ser recolhido num estabelecimento prisional, sim num centro psiquátrico. «Já lá estive, durante oito anos! Tinha comida, cama, tomava banho. Agora ando para aqui vestido com o que me dão, as pessoas dizem que cheiro mal. Eu tenho vergonha!»

Vive numa casa em ruínas, ignoro como. Deixemos a miséria trabalhar as imaginações.


Levou dinheiro para a camioneta, amanhã. «Se não nos virmos mais, é porque fui preso!» - despediu-se. «António, olhe que você não vai preso por causa do roubo, isso não é um crime tão grave que mereça prisão!» - dissuadi-o. «Peça para ir para o centro psiquiátrico! Peça isso, pode ser que tenha sorte!».

Oxalá o António tenha sorte. Com tanto criminoso de colarinhos brancos à solta, é muito duvidoso que o prendam. E, se o prenderem, é só por uns dias. Toma um banho e nada mais.

Quantos não andarão por aí a desejar as grades? É uma esperança. A maior parte já a perdeu.



Maria Estela Guedes
Casa dos Banhos, 5 de novembro de 2012
 
 

Maria Estela Guedes (1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov

Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.

LIVROS

“Herberto Helder, Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979;  “SO2” . Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”, Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa, 1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários : Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora, 1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”. Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007; “Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed. Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010. “Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010; "Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa, Apenas Livros, 2011.

ALGUNS COLECTIVOS

"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010. "Munditações", de Carlos Silva, 2011. "Se lo dijo a la noche", de Juan Carlos Garcia Hoyuelos, 2011; "O corpo do coração - Horizontes de Amato Lusitano", 2011.

TEATRO

Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.