A literatura da
Guiné-Bissau está a nascer, tal como a própria nação. Por isso o
espaço é ainda confuso, e diversos nomes que fazem parte dela -
dela, literatura - acabarão por desaparecer, pois correspondem a
irrupções poéticas momentâneas, a diligências para levar a cabo
missões para as quais se escolheu a arte como veículo, e não
tanto a práticas de escrita decorrentes de vocação e ligadas à
persistência e ao espírito de sacrifício necessários para ir
construindo uma obra ao longo do tempo.
Não é o caso de
Abdulai Sila, um grande escritor em qualquer parte do mundo, com
obras várias publicadas a partir pelo menos de 1997. Ele
mostra-se perfeito mestre dos instrumentos e técnicas a que
deita mão, desde os narrativos e simbólicos até aos
linguísticos. Não diria que usa o português ideal, compendiado
nas gramáticas, mas José Saramago também não, como qualquer um
pode comprovar no seu último livro, Caim. Isso nada tem a
ver com a capacidade de expressão através da matéria verbal.
Por português não
ideal, entendo, por exemplo, a circunstância de certos
escritores, talvez na maior parte brasileiros, não contemplarem
a existência do passado anterior. Pode acontecer até que eu
tenha sido ultrapassada quanto a isso, e realmente já não
existam essas formas do passado (quisera, tinha querido,
além de quis) no português do Brasil, que o discurso de
Abdulai Sila evoca, nesta ou naquela frase. Hei-de informar-me
melhor.
Noutro plano, a
língua é motivo de reflexão no escritor bissau-guineense, para
afiançar, por exemplo, que um dos aspetos do domínio do branco
sobre o negro é a imposição da língua. Diz Amambarka, em As
orações de Mansata:
Se
precisarmos de viajar, temos que pedir ao branco, tem que
ser com o carro ou o avião que o branco construiu; se
precisarmos de construir casas grandes e bonitas tem que ser
com modelos e materiais do branco; até falar com os nossos
semelhantes agora só pode ser na língua do branco... Eles
têm todos os poderes (1).
Em Mistida
(2), o problema linguístico levanta-se quanto aos nomes
próprios, e o mesmo acontece no romance A última tragédia
(3), em que a patroa branca muda para Daniela o nome da criada
preta, por confundir com um nome russo (e por conseguinte
comunista) o seu antropónimo talvez mandinga, Ndani. Esta
questão é excessivamente labiríntica nos seus enredos, não vou
perder-me nela, anoto apenas que tenho visto o nome Abdulai Sila
em versões como Abdulah, Abdula, Silla e Silá. Em geral os
escritores guineenses adoptam outros nomes, o que atrasa e
complica o processo de os conhecer, o que de resto acontece com
todos os que usam pseudónimos, para já não falar de heterónimos.
Os escritores da Guiné-Bissau usam os nomes de forma caótica,
juntando os nomes de casa aos de cartão de identidade,
usando só os primeiros, prescindindo do nome de família, ou só
os de casa, haja em vista Tony Tcheka, Didinho, José Carlos, com
e sem Schwarz, e termino com o reparo de que no terceiro caso
aparece também a variante José Carlos Schwartz. A maior parte
das variações resulta da transposição para uma língua escrita de
vocábulos de línguas apenas orais, ou então com escrita em
alfabeto diferente do latino, como seria o árabe, se esse é o
caso de Abdulai Sila.
Sila escreve em
português, com fraseado pontual em crioulo e algum léxico
mandinga, de acordo com a informação de Russel G. Hamilton,
prefaciador da obra de que agora me ocupo, As orações de
Mansata. O crioulo é discreto e hibrida-se perfeitamente com
o português, porque a grafia adoptada é a do português, como em
mantenha, couro e confiado. Outras grafias
apresentar-nos-iam, quem sabe?, mantaña, kouru ou
koru e konfiadu, e vão-me perdoar os filhos da terra que
tal abundância de kk e de uu adoptaram para o que
identificam como kriol (!), mas essa grafia fonética
parece o linguajar de chat. Vamos lá, ainda não é tarde
para atribuir ao crioulo a elevação que tanto reclamam para ele
os que se ofendem com Manuel Ferreira, v.g., que
sistematicamente o tratou como "dialecto crioulo" (4). O
crioulo é uma língua e não um dialeto, e ainda menos um calão de
Internet.
De facto, tem
razão Abdulai Sila, o colonizador domina pela língua, e diria
que essa é a mais eficaz maneira de dominar, se por tal
entendermos também unir para governar. As nacionalidades
assentam em lentas batalhas para unificação linguística, e um
dia a Guiné-Bissau, quer abandone quer conserve o português como
língua oficial, terá de se empregar com veemência na unificação
linguística do país, ou ele será ingovernável. Fará sentido os
políticos precisarem de intérpretes para se fazerem entender
pelos "nacionais"? Poder-se-á falar de nacionais enquanto não
existir nação? A nação funda-se na comunhão de comportamentos,
tradições, culturas de um povo, e sobretudo na comunhão de uma
língua-mãe. A Guiné-Bissau carece ainda dessa unidade, só etnias
devem ser mais de vinte.
Se só 10% dos
bissau-guineenses fala português, se nos centros urbanos a maior
percentagem de pessoas fala crioulo, se no interior do país cada
etnia só fala a sua língua, em que argumentos de unidade e união
se poderá assentar a defesa de uma nacionalidade? O que seriam
os Estados Unidos da América se as pessoas não falassem todas
inglês? O que seria o Brasil, se...? O português, enquanto a
tese latina vigorar, é um resultado de colonização por parte de
Roma, na pessoa sobretudo dos seus soldados e acompanhantes -
vendilhões, artistas de circo e prostitutas -, que estavam longe
de imitar as sofisticações literárias do discurso de Cícero,
Horácio ou Catulo. O bilinguismo que se perfila no horizonte
político da Guiné-Bissau não será conseguido sem repressão das
línguas étnicas. Aproveito a ocasião para transcrever um artigo
do regulamento do liceu onde estudei, em Bissau, que na altura
própria não li, embora conhecesse de prática a legislação.
Tratemos então de rentabilizar a fotocópia obtida na semana
passada na Biblioteca Nacional:
Art. 34º.
É proibido falar crioulo dentro do Colegio-Liceu.
§ único. Os alunos que infrinjam o disposto neste artigo
serão objecto de sanções a aplicar pelo Conselho
Disciplinar. (5).
Era proibido
falar crioulo nas aulas, quando os portugueses ainda detinham o
estatuto de colonizadores, porque era preciso unificar
linguisticamente a Guiné, tal como em outras colónias procederam
outros colonizadores com relação a línguas indígenas. Claro que
o procedimento resultou em fracasso, se, trinta e tal anos
depois, além de tantas feridas, ainda sobra mais essa chaga
viva, a da falta de união, a de nação ainda incumprida, por
falta de uma língua comum a todos os bissau-guineenses.
Já agora, um
breve excurso, para citar algo que devia ser geral, na
regulamentação dos estabelecimentos de ensino metropolitanos e
ultramarinos, mas não deixa de ser interessante para o caso
concreto da Guiné-Bissau, em que as turmas eram mistas e
miscigenadas:
Art. 3º. É
dever fundamental dos alunos manter entre si a mais delicada
e afectuosa camaradagem.
Não, nós,
enquanto alunos desse estabelecimento de ensino, nunca lemos o
regulamento, mas não nos fez falta para nos darmos bem. Não foi
à força que criámos laços de amizade. Não existia discriminação
racial entre nós, e ainda hoje muitos mantêm as relações de boa
camaradagem. Basta pensar no almoço anual dos antigos alunos do
Liceu Honório Barreto, em que se juntam centenas de pessoas.
Como diz alguém no blog do Didinho (6), talvez ele mesmo num dos
seus editoriais, os bissau-guineenses são pacíficos - e
afectuosos, acrescentaria eu -, não é por vontade nem interesse
daquele povo constituído por diversos povos que existe guerra e
violência. A violência só pode entender-se como fenómeno
individual, é a bebedeira de militares e políticos que se julgam
mais poderosos e invencíveis do que deuses e que podemos
encontrar nas obras de Abdulai Sila, para voltar à peça de
teatro com o título de As orações de Mansata, que trata
disso mesmo: de violência, de traição, de tudo aquilo que o
autor condensa num provérbio, "Ko nafata kon fow lorrai", a
traduzir por: "Só há duas classes de homens: os que honram a sua
nação e os que a desonram".
Tal como
Mistida, obra narrativa de Abdulai Sila, publicada em 1997,
As Orações de Mansata giram em torno do Poder, ou da mais
desvairada das prepotências. Poderes há vários, todos eles
impotentes, todos eles precisando de fazer sangue para se
imporem, por isso não vale a pena dar traduções, basta enumerar
o título de cada acto para ficarmos cientes de que os poderes
que não assentam na honra devida à nação são todos eles poderes
fantoches:
Primeiro Acto
- Poder blufo
Segundo Acto
- Poder djapuf
Terceiro Acto
- Poder malgós
Quarto Acto -
Poder à la carte
Quinto Acto -
Poder fantosh
Sexto Acto -
Poder em índice
Não se trata
então de um poder régio, presidencial, ministerial, conjunto de
possibilidades de actuação com vista à execução de um programa
legítimo, legitimado em eleições, sim um poder nascido na
sarjeta, poder de desenrascanço, um poder a que se aspira mesmo
que vindo de tenebrosas práticas de feitiçaria, quando a
situação real fica incontrolável.
Em Mistida,
certas personagens ficavam ébrias de poder, como se estivessem
drogadas e a droga lhes transmitisse o sentimento de serem
divinas. Nesta tragédia, que visa reproduzir Macbeth na
Guiné-Bissau, o sangue, a raiva, a volúpia de ter bens materiais
- e nem tanto pela sua prestação de conforto, sim pelo poder de
sinalizar estatuto social e riqueza (belos carros, boas casas) -
cega-as. O sentimento de ser poderoso é tanto maior quanto mais
objetos de luxo se possuem, mas o facto é que a nação governada
por tais ministros, ou a nação, governada por tais ministérios (Amambarka,
conselheiro para assuntos de tchumul-tchamal; Popnyate,
conselheiro para assuntos de tafal-tafal; Yem-Yem, conselheiro
para assuntos de mukur-mukur; etc..) e liderada por Mwankeh,
Supremo Chefe da Nação, está em absoluto desprovida de todos os
bens essenciais e infraestruturais, como fica claro no discurso
de Amambarka, quando quer convencer outros a submeterem-se,
perguntando-lhes se não querem uma nação avançada, com escolas,
universidades, etc., se não querem ter luz em casa e nas ruas (cena
1 do 6º acto, pp.: 98-100, ver extracto). O seu discurso
propagandístico deixa perceber o que falta naquela nação
impotente, governada por criaturas demenciais, capazes de
fundarem nos órgão genitais um outro tipo de poder, a
matchundade (palavra derivada de macho), e por isso
de elegerem a castração como forma de tortura e homicídio - o
que, num caso ou noutro, não sendo de certeza originalidade da
Guiné-Bissau, tem a força suficiente para nos horrorizar e por
isso para conferir à obra a dinâmica habitual da literatura da
Guiné-Bissau, que visa uma estratégia de cidadania, a função de
fundar uma ética e na sequência os alicerces culturais da nação.
Britiande, 6 de Agosto de 2010
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Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
Membro da Associação Portuguesa de Escritores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Géisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos portugueses”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira. |