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«Caim», uma história divertida
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José
Saramago tem já uma tal destreza e mestria no manejo dos instrumentos
narrativos, que os romances lhe saem, em aparência, rápidos e
escorreitos como «Caim», apesar de «Caim» ser uma história que se
desmistifica a si mesma enquanto romance bem contado, e bastante
caótica, recheada de peripécias a que só justamente a perícia deste
grande escritor concede alguma credibilidade. Mas vamos por partes, a
saber minimamente de que trata o romance: pois trata em primeiro lugar
da criação de um deus que exige provas de afecto mais terríveis do que
as praxes em uso pelos estudantes, como a de pedir a um pai que lhe
demonstre amor matando o próprio filho, que comete genocídio sobre os
habitantes de um planeta, à excepção de uma família e de um casal de
cada espécie de animais, sem poupar sequer as inocentes crianças, ou que
se preocupa com o sexo alheio a ponto de destruir cidades porque nelas
existem homossexuais, entre outros exemplos, cuja verosimilhança só se
mantém de pé dada a mestria do autor, como já referi; em segundo lugar
de importâncias, e não passarei decerto ao terceiro, «Caim» narra a
história de um irmão que mata a outro por motivo que só não é fútil, ou
fruto de psicose, talvez, porque esse homicídio original é o motor que
desencadeia toda a sequência de factos futuros, ou de diversos presentes
que ao homicida instigam ao questionamento. Razão do crime: a inveja, a
natural inveja de quem acha que o pai não estima igualmente todos os
filhos, preferindo certo irmão. Com efeito, abel (os nomes próprios,
quer topónimos quer antropónimos, aparecem no livro sem maiúscula
inicial, o que não deve tomar-se por gralha nem por negligência
ortográfica), que se dedicava à pastorícia, e por conseguinte à produção
de carne, leite e produtos derivados, oferecia ao senhor presentes muito
mais ricos em proteínas do que caim, um agricultor, que nunca fora capaz
de oferecer ao senhor mais do que o necessário para uma refeição
vegetariana. Por isso caim mata abel, mas o senhor-deus, em vez de lhe
aplicar uma pena que até nós, hoje, que já abolimos a pena de morte,
considerássemos justa, limita-se a dizer-lhe que será para sempre um
viajante, como se o turismo fosse um castigo, e para cúmulo impõe-lhe
uma marca na testa para o proteger de morte violenta.
Desta
forma, caim parte da sua terra para terras ignotas, acontecendo-lhe
peripécias inenarráveis a qualquer outro que não fosse o nosso Prémio
Nobel, de tal modo carecem de realismo que nos convença de que qualquer
escritor as podia contar, como Agustina Bessa-Luís. Quando caim regressa
a terras de lilith, a sua primeira mulher, conta-lhe, e ela lá acaba por
acreditar, porque as mulheres, quando apaixonadas, acreditam em tudo o
que dizem os homens, algumas dessas peripécias fabulosas, e cito:
Tranquilizados os espíritos, compensados da longa separação os corpos
com juros altíssimos, chegou o momento de pôr o passado em ordem. Lilith
tinha perguntado, Por que vieste, mas ele já havia declarado antes que
não sabia como chegara ali, por isso ela modificou a interrogação, Que
andaste a fazer durante todos estes anos, foi a pergunta e caim
respondeu, Vi coisas que ainda não aconteceram, Queres dizer que
adivinhaste o futuro, Não adivinhei, estive lá, Ninguém pode estar no
futuro, Então não lhe chamemos futuro, chamemos-lhe outro presente,
outros presentes, Não percebo, Também a mim ao princípio me custou a
compreender, mas depois vi que, se estava lá, e realmente estava, era
num presente que me encontrava, o que havia sido futuro tinha deixado de
o ser, o amanhã era agora, Ninguém vai acreditar em ti, Não penso dizer
isto a mais ninguém, O teu mal é que não trazes contigo nenhuma prova,
um objecto qualquer desse outro presente, Não foi um presente, mas
vários, Dá-me um exemplo. Então caim contou a lilith o caso de um
homem chamado abraão a quem o senhor ordenara que lhe sacrificasse o
próprio filho, depois o de uma grande torre com a qual os homens queriam
chegar ao céu e que o senhor com um sopro deitou abaixo, logo o de uma
cidade em que os homens preferiam ir para a cama com outros homens e do
castigo de fogo e enxofre que o senhor tinha feito cair sobre eles sem
poupar as crianças, que ainda não sabiam o que iriam querer no futuro, a
seguir o de um enorme ajuntamento de gente no sopé de um monte a que
chamavam sinai e a fabricação de um bezerro de ouro que adoraram e por
isso morreram muitos, o da cidade de madian que se atreveu a matar
trinta e seis soldados de um exército denominado israelita e cuja
população foi exterminada até à última criança, o de uma outra cidade,
chamada jericó, cujas muralhas foram deitadas abaixo pelo clangor de
trombetas feitas de cornos de carneiro e depois destruído tudo o que
tinha dentro, incluindo, além dos homens e mulheres, novos e velhos,
também os bois, as ovelhas e os jumentos. Foi isto o que eu vi, rematou
caim, e muito mais para que não me chegam as palavras, Crês realmente
que o que acabas de contar acontecerá no futuro, perguntou lilith, Ao
contrário do que costuma dizer-se, o futuro já está escrito, o que nós
não sabemos é ler-lhe a página, disse caim enquanto perguntava a si
mesmo aonde teria ido buscar a revolucionária ideia, [...] (pp.
134-135)
Como se deduz da
citação, além das terríveis peripécias testemunhadas por caim, e na
sequência ele mesmo provocará outras, matando, sem pestanejar, maridos
incómodos e mulheres que certamente deixou de desejar, para não avançar
demasiado para o infeliz desenlace em que vai assassinando, um após
outro, todos os habitantes de uma embarcação em que uma família tentava
salvar-se de uma enorme inundação que exterminou todos os outros
representantes da espécie humana, além dessas, destas, e de outras,
mais uma peripécia, que podia ser incómoda, mas já não é porque nos
habituámos a ela, é a de José Saramago fazer parágrafos tão longos que, na
maior parte dos casos, ou salvo uma única exceção observada, que pode
então interpretar-se como desleixo ou gralha, esses períodos coincidem
com o capítulo. Porém existe pontuação, escassa mas honesta o bastante
para evitar ambiguidades no fluente discurso como um rio, de fluxo
quebrado, aqui e ali, por divertidas notas estruturantes de uma
narrativa sem tempos - tempos geológicos, será exagero dizer, mas tempos
de uma cronologia tão longa que, por vezes, até implica que as
personagens tenham muito mais de duzentos e trezentos e mesmo seiscentos
anos - feita de presentes como diversos estados planetários, por isso
tornando a narrativa permeável à intrusão de automóveis, aviões,
tecnologias igualmente futuristas e correlatos guias michelin, em um
tempo que se diria conhecer unicamente o burro como meio de transporte
mais rápido, por aparente inexistência de cavalos e camelos. E é deste
modo que a narrativa se auto-desmistifica, e também porque o narrador
vai tecendo comentários com frequência irónicos, não ao que lhe é
estranho - estranho a ele e a nós, leitores -, pelo contrário: ele só
tece comentários, sérios e irónicos, ao que a ele a nós mais nos
é familiar e intrínseco: esta narrativa entre ficção-científica e
romance negro, plena também de maravilhas próprias de contos fantásticos
e de fadas, com uma componente de sentido trágico: a tese subjacente de
que em que todos nós, seres humanos, existe, como em janus, o deus
bifronte, um lado de vítima e um lado de carrasco, ou seja, todos nós
somos bons e maus, de um lado abel e de outro caim. |
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[...] para a tenda.
Daquele que ainda estava por nascer, isaac, não se falaria mais.
Quando chegaram às azinheiras de mambré, abraão entrou na tenda,
donde sairia daí a pouco com os pães para os entregar a caim
conforme havia prometido. Caim parou de ensilhar o jumento para
agradecer a generosa dádiva, e perguntou, Como te parece que vai o
senhor contar os dez inocentes que, no caso de existirem, evitariam
a destruição de sodoma, crês que irá de porta em porta inquirindo
das tendências e dos apetites sexuais dos pais de família e seus
descendentes machos, O senhor não precisa de fazer escrutínios
desses, ele só tem de olhar a cidade lá de cima para saber o que
nela se passa, respondeu abraão, Queres tu dizer que o senhor fez
aquele acordo contigo para nada, só para te comprazer, tornou caim a
perguntar, O senhor empenhou a sua palavra, A mim não me parece, tão
certo como eu me chamar caim, embora já me tenha chamado abel,
existam inocentes ou não, sodoma será destruída, e se calhar esta
mesma noite, É possível, sim, e não será apenas sodoma, será também
gomorra e duas ou três outras cidades da planície, onde os costumes
sexuais se relaxaram por igual, os homens com os homens e as
mulheres postas de parte, E a ti não te preocupa o que possa suceder
àqueles dois homens que vieram com o senhor, Não eram homens, eram
anjos, que eu bem os conheço, Anjos sem asas, Não precisarão de asas
se tiverem de escapar-se, Pois eu digo-te que vão chamar um figo a
esses anjos se lhes põem as mãos e outra coisa em cima, e o senhor
não ficará nada satisfeito contigo, eu, se estivesse no teu lugar,
iria à cidade ver o que se passa, a ti não te fariam mal, Tens
razão, irei, mas peço-te que me acompanhes, sentir-me-ei mais
seguro, um homem e meio valem mais que um, Somos dois, não um, Eu já
sou apenas metade de um homem, caim, Sendo assim, vamos lá, se nos
assaltarem, a dois ou três deles ainda os poderei despachar com o
punhal que levo debaixo da túnica, a contar daí esperemos que o
senhor proverá. Então abraão chamou um criado e ordenou-lhe que
levasse o jumento para a cavalariça. E a caim disse, Se não tens
compromissos que te obriguem a partir ainda hoje, ofereço-te a minha
hospitalidade para esta noite como um pequeno pago do favor que me
farás acompanhando-me, Outros favores esperarei poder fazer-te no
futuro, se estiverem na minha mão, respondeu caim, mas abraão não
podia adivinhar aonde queria ele chegar com estas misteriosas
palavras. Começaram a descer em direcção à cidade e abraão disse,
Principiaremos por ir a casa do meu sobrinho lot, filho do meu irmão
haran, ele nos porá ao corrente do que se tiver passado. Já o sol se
tinha posto quando chegaram a sodoma, mas ainda havia muita luz de
dia. Então viram um grande ajuntamento de homens em frente à casa de
lot, os quais gritavam, Queremos esses que tens aí, manda-os cá para
fora porque queremos dormir com eles, e davam golpes na porta,
ameaçando deitá-la abaixo. Disse abraão, Vem comigo, damos a volta à
casa e chamamos ao portão das traseiras. Assim fizeram. Entraram
quando lot, por trás da porta da frente, estava a dizer, Por favor,
meus amigos, não cometam um crime desses, tenho duas filhas
solteiras, podem fazer o que quiserem com elas, mas a estes homens
não façam mal porque eles procuraram protecção na minha casa.
Continuaram os de fora furiosamente aos gritos, mas de repente os
clamores mudaram de tom e agora o que se ouvia eram lamentações e
choros, [...] (pp. 99-100)
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CAIM
José Saramago
Prémio Nobel
Lisboa, Caminho, 2009 |
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Britiande, 2 de Novembro de 2009 |
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Maria Estela Guedes.
Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo;
Chão de papel. Espectáculos levados à cena:
O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008).
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