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Maria Estela Guedes

«Caim», uma história divertida

José Saramago tem já uma tal destreza e mestria no manejo dos instrumentos narrativos, que os romances lhe saem, em aparência, rápidos e escorreitos como «Caim», apesar de «Caim» ser uma história que se desmistifica a si mesma enquanto romance bem contado, e bastante caótica, recheada de peripécias a que só justamente a perícia deste grande escritor concede alguma credibilidade. Mas vamos por partes, a saber minimamente de que trata o romance: pois trata em primeiro lugar da criação de um deus que exige provas de afecto mais terríveis do que as praxes em uso pelos estudantes, como a de pedir a um pai que lhe demonstre amor matando o próprio filho, que comete genocídio sobre os habitantes de um planeta, à excepção de uma família e de um casal de cada espécie de animais, sem poupar sequer as inocentes crianças, ou que se preocupa com o sexo alheio a ponto de destruir cidades porque nelas existem homossexuais, entre outros exemplos, cuja verosimilhança só se mantém de pé dada a mestria do autor, como já referi; em segundo lugar de importâncias, e não passarei decerto ao terceiro, «Caim» narra a história de um irmão que mata a outro por motivo que só não é fútil, ou fruto de psicose, talvez, porque esse homicídio original é o motor que desencadeia toda a sequência de factos futuros, ou de diversos presentes que ao homicida instigam ao questionamento. Razão do crime: a inveja, a natural inveja de quem acha que o pai não estima igualmente todos os filhos, preferindo certo irmão. Com efeito, abel (os nomes próprios, quer topónimos quer antropónimos, aparecem no livro sem maiúscula inicial, o que não deve tomar-se por gralha nem por negligência ortográfica), que se dedicava à pastorícia, e por conseguinte à produção de carne, leite e produtos derivados, oferecia ao senhor presentes muito mais ricos em proteínas do que caim, um agricultor, que nunca fora capaz de oferecer ao senhor mais do que o necessário para uma refeição vegetariana. Por isso caim mata abel, mas o senhor-deus, em vez de lhe aplicar uma pena que até nós, hoje, que já abolimos a pena de morte, considerássemos justa, limita-se a dizer-lhe que será para sempre um viajante, como se o turismo fosse um castigo, e para cúmulo impõe-lhe uma marca na testa para o proteger de morte violenta.

Desta forma, caim parte da sua terra para terras ignotas, acontecendo-lhe peripécias inenarráveis a qualquer outro que não fosse o nosso Prémio Nobel, de tal modo carecem de realismo que nos convença de que qualquer escritor as podia contar, como Agustina Bessa-Luís. Quando caim regressa a terras de lilith, a sua primeira mulher, conta-lhe, e ela lá acaba por acreditar, porque as mulheres, quando apaixonadas, acreditam em tudo o que dizem os homens, algumas dessas peripécias fabulosas, e cito:

Tranquilizados os espíritos, compensados da longa separação os corpos com juros altíssimos, chegou o momento de pôr o passado em ordem. Lilith tinha perguntado, Por que vieste, mas ele já havia declarado antes que não sabia como chegara ali, por isso ela modificou a interrogação, Que andaste a fazer durante todos estes anos, foi a pergunta e caim respondeu, Vi coisas que ainda não aconteceram, Queres dizer que adivinhaste o futuro, Não adivinhei, estive lá, Ninguém pode estar no futuro, Então não lhe chamemos futuro, chamemos-lhe outro presente, outros presentes, Não percebo, Também a mim ao princípio me custou a compreender, mas depois vi que, se estava lá, e realmente estava, era num presente que me encontrava, o que havia sido futuro tinha deixado de o ser, o amanhã era agora, Ninguém vai acreditar em ti, Não penso dizer isto a mais ninguém, O teu mal é que não trazes contigo nenhuma prova, um objecto qualquer desse outro presente, Não foi um presente, mas vários, Dá-me um exemplo. Então caim contou a lilith o caso de um homem chamado abraão a quem o senhor ordenara que lhe sacrificasse o próprio filho, depois o de uma grande torre com a qual os homens queriam chegar ao céu e que o senhor com um sopro deitou abaixo, logo o de uma cidade em que os homens preferiam ir para a cama com outros homens e do castigo de fogo e enxofre que o senhor tinha feito cair sobre eles sem poupar as crianças, que ainda não sabiam o que iriam querer no futuro, a seguir o de um enorme ajuntamento de gente no sopé de um monte a que chamavam sinai e a fabricação de um bezerro de ouro que adoraram e por isso morreram muitos, o da cidade de madian que se atreveu a matar trinta e seis soldados de um exército denominado israelita e cuja população foi exterminada até à última criança, o de uma outra cidade, chamada jericó, cujas muralhas foram deitadas abaixo pelo clangor de trombetas feitas de cornos de carneiro e depois destruído tudo o que tinha dentro, incluindo, além dos homens e mulheres, novos e velhos, também os bois, as ovelhas e os jumentos. Foi isto o que eu vi, rematou caim, e muito mais para que não me chegam as palavras, Crês realmente que o que acabas de contar acontecerá no futuro, perguntou lilith, Ao contrário do que costuma dizer-se, o futuro já está escrito, o que nós não sabemos é ler-lhe a página, disse caim enquanto perguntava a si mesmo aonde teria ido buscar a revolucionária ideia, [...] (pp. 134-135)

Como se deduz da citação, além das terríveis peripécias testemunhadas por caim, e na sequência ele mesmo provocará outras, matando, sem pestanejar, maridos incómodos e mulheres que certamente deixou de desejar, para não avançar demasiado para o infeliz desenlace em que vai assassinando, um após outro, todos os habitantes de uma embarcação em que uma família tentava salvar-se de uma enorme inundação que exterminou todos os outros representantes da espécie humana, além dessas, destas, e de outras, mais uma peripécia, que podia ser incómoda, mas já não é porque nos habituámos a ela, é a de José Saramago fazer parágrafos tão longos que, na maior parte dos casos, ou salvo uma única exceção observada, que pode então interpretar-se como desleixo ou gralha, esses períodos coincidem com o capítulo. Porém existe pontuação, escassa mas honesta o bastante para evitar ambiguidades no fluente discurso como um rio, de fluxo quebrado, aqui e ali, por divertidas notas estruturantes de uma narrativa sem tempos - tempos geológicos, será exagero dizer, mas tempos de uma cronologia tão longa que, por vezes, até implica que as personagens tenham muito mais de duzentos e trezentos e mesmo seiscentos anos - feita de presentes como diversos estados planetários, por isso tornando a narrativa permeável à intrusão de automóveis, aviões, tecnologias igualmente futuristas e correlatos guias michelin, em um tempo que se diria conhecer unicamente o burro como meio de transporte mais rápido, por aparente inexistência de cavalos e camelos. E é deste modo que a narrativa se auto-desmistifica, e também porque o narrador vai tecendo comentários com frequência irónicos, não ao que lhe é estranho - estranho a ele e a nós, leitores -, pelo contrário: ele só tece comentários, sérios e irónicos, ao que a ele a nós mais nos é familiar e intrínseco: esta narrativa entre ficção-científica e romance negro, plena também de maravilhas próprias de contos fantásticos e de fadas, com uma componente de sentido trágico: a tese subjacente de que em que todos nós, seres humanos, existe, como em janus, o deus bifronte, um lado de vítima e um lado de carrasco, ou seja, todos nós somos bons e maus, de um lado abel e de outro caim.

[...] para a tenda. Daquele que ainda estava por nascer, isaac, não se falaria mais. Quando chegaram às azinheiras de mambré, abraão entrou na tenda, donde sairia daí a pouco com os pães para os entregar a caim conforme havia prometido. Caim parou de ensilhar o jumento para agradecer a generosa dádiva, e perguntou, Como te parece que vai o senhor contar os dez inocentes que, no caso de existirem, evitariam a destruição de sodoma, crês que irá de porta em porta inquirindo das tendências e dos apetites sexuais dos pais de família e seus descendentes machos, O senhor não precisa de fazer escrutínios desses, ele só tem de olhar a cidade lá de cima para saber o que nela se passa, respondeu abraão, Queres tu dizer que o senhor fez aquele acordo contigo para nada, só para te comprazer, tornou caim a perguntar, O senhor empenhou a sua palavra, A mim não me parece, tão certo como eu me chamar caim, embora já me tenha chamado abel, existam inocentes ou não, sodoma será destruída, e se calhar esta mesma noite, É possível, sim, e não será apenas sodoma, será também gomorra e duas ou três outras cidades da planície, onde os costumes sexuais se relaxaram por igual, os homens com os homens e as mulheres postas de parte, E a ti não te preocupa o que possa suceder àqueles dois homens que vieram com o senhor, Não eram homens, eram anjos, que eu bem os conheço, Anjos sem asas, Não precisarão de asas se tiverem de escapar-se, Pois eu digo-te que vão chamar um figo a esses anjos se lhes põem as mãos e outra coisa em cima, e o senhor não ficará nada satisfeito contigo, eu, se estivesse no teu lugar, iria à cidade ver o que se passa, a ti não te fariam mal, Tens razão, irei, mas peço-te que me acompanhes, sentir-me-ei mais seguro, um homem e meio valem mais que um, Somos dois, não um, Eu já sou apenas metade de um homem, caim, Sendo assim, vamos lá, se nos assaltarem, a dois ou três deles ainda os poderei despachar com o punhal que levo debaixo da túnica, a contar daí esperemos que o senhor proverá. Então abraão chamou um criado e ordenou-lhe que levasse o jumento para a cavalariça. E a caim disse, Se não tens compromissos que te obriguem a partir ainda hoje, ofereço-te a minha hospitalidade para esta noite como um pequeno pago do favor que me farás acompanhando-me, Outros favores esperarei poder fazer-te no futuro, se estiverem na minha mão, respondeu caim, mas abraão não podia adivinhar aonde queria ele chegar com estas misteriosas palavras. Começaram a descer em direcção à cidade e abraão disse, Principiaremos por ir a casa do meu sobrinho lot, filho do meu irmão haran, ele nos porá ao corrente do que se tiver passado. Já o sol se tinha posto quando chegaram a sodoma, mas ainda havia muita luz de dia. Então viram um grande ajuntamento de homens em frente à casa de lot, os quais gritavam, Queremos esses que tens aí, manda-os cá para fora porque queremos dormir com eles, e davam golpes na porta, ameaçando deitá-la abaixo. Disse abraão, Vem comigo, damos a volta à casa e chamamos ao portão das traseiras. Assim fizeram. Entraram quando lot, por trás da porta da frente, estava a dizer, Por favor, meus amigos, não cometam um crime desses, tenho duas filhas solteiras, podem fazer o que quiserem com elas, mas a estes homens não façam mal porque eles procuraram protecção na minha casa. Continuaram os de fora furiosamente aos gritos, mas de repente os clamores mudaram de tom e agora o que se ouvia eram lamentações e choros, [...] (pp. 99-100)

CAIM

José Saramago

Prémio Nobel

 

Lisboa, Caminho, 2009

 
Britiande, 2 de Novembro de 2009

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo; Chão de papel. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008).