NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


powered by FreeFind

A doxa naturalista
a literatura e o suicídio

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO (UNL-DCC)
.

"Por natureza, todos, em tudo, do mesmo modo,
encontramo-nos naturalmente feitos para ser bárbaros e gregos" (Antifão)

.

"Ser ou não ser, eis a questão:

Será mais digno para o espírito suportar

Os golpes e as feridas de um infame destino

Ou revoltar-se contra a vaga de males

E pôr fim a tudo pela recusa de viver?

Morre, dormir. Acabou-se, e pelo sono esquecer

Os tormentos e todas as agressões

Que afligem a nossa condição. Eis aí o fim

Mais desejável. Morrer, dormir.

Dormir! Então talvez sonhar:

eis a questão ." Shakespeare, Hamlet, III, 1.

.
"Em literatura, estamos assistindo ao descrédito do naturalismo" (Eça de Queiroz
..

Pesa sobre a doxa uma suspeita antiga. A doxa define-se como aquilo que se opõe à verdade e à opinião, apresentando-se como o admitido, o aparente, a glória. A doxa é ideológica. Todo o sistema de valores é ideológico e funda a ideologia. No esquema polémico a eliminação do herói pertence ao contra-programa. Na lógica semiótica, um contra-programa é precisamente aquilo que é absolutamente incompatível com o programa de base. Nesta lógica, o ser é incompatível com o parecer. O lugar da doxa é entre o público, que é o domínio da lei e da opinião, e o privado, domínio em que legisla a natureza, i.e., a "verdade". E segundo esta lógica que Toth era acusado de fazer doxógrafos e que a poesia e a retórica aparecem no G ó rgias como "ilusões da opinião".

A natureza era o contrário da doxa. Os presocráticos escrevem tanto sobre a natureza como sobre a verdade. Parménides intitula o seu poema "Sobre a natureza ou sobre o ente". Górgias escreve "Sobre o não-ente ou sobre a natureza": nada é. Para os Gregos, a phusis é aquilo que cresce. A força da natureza é irresistível à técnica. O conceito de natureza obriga a perguntar: somos iguais por nascimento ( isogonia ), segundo a natureza ou pela lei ( isonomian )? A diferença grego/bárbaro funda-se como diferença cultural ou como diferença natural? Não é a natureza indiferente a essa distinção? A concepção da natureza como uma conformidade de processo e padrões é um pressuposto da cultura medieval. Subentendem-na os comentários dos teólogos a Escritura, em especial ao livro do Génesis; subentendem-na os teorizadores da "esfera" (Sacrobosco) e os confeccionadores de portulanos. Numa luminosa página sobre o opúsculo De principiis naturae de S. Tomas lê-se que o universo não foi criado de uma vez por todas. Ao sétimo dia da criação compete a obra de levá-la ao acabamento e plenitude. E a respeito do homem cabe aqui a advertência do Angélico: "Non intendit natura solum generationem prolis sed traductionem et promotionem usque ad perfectum statum hominis inquamtum homo est, qui est status virtutis" (supl. Q. 41, ª 1).. A grande revolução do conceito de natureza inicia-se na Renascença. A guerra da ciência que começa no século XVI e se prolonga ate hoje é essencialmente uma guerra de paradigmas. A perspectiva de Hume relativamente a religião é claramente "naturalista" e "causalista". Vejam-se os Di á logos sobre a Religião Natural (1779). Toda a "Naturphilosophie" é "livre pensamento". A técnica moderna suprimiu o fantasma do dia e a noite metafísica. Aparentemente. O que aconteceu é que, como nota P. Sloterdijk, "o romantismo e a técnica foram cúmplices numa colonização da obscuridade...O positivismo fundamental no projecto básico do 'mundo ocidental continua a ser preponderante nos estilos de pensamento pos-metafísicos de maneira pragmática e realista" (1). A physis pagã não era a natura cristã. E em nome do natural que António Mora pede o regresso dos deuses e o enterro do "cristismo". O maquínico substituiu a visão animista e magica do universo, a física substitui a metafísica. Aquilo a que chamamos "espécie biológica" é apenas fruto acidental do acaso: uma afirmação que faz tábua rasa da distinção grega entre as categorias natural" e "artificial". Estamos a sair da velha suspeita grega que fazia do simulacro uma degradação do ser, uma forma de não-ser, de facto um duplo ou um clone do real. Ora, como nos diz Deleuze, se o simulacro não e uma copia degradada (uma simples reprodução de reprodução), e preciso reconhecer que ela segrega uma "potencia positiva que nega tanto o original como a copia, o modelo e a reprodução (2). Também Rorty escreve assim: "se os paradigmas que correspondem as categorias naturais - as espécies biológicas - são apenas resultados fortuitos de encontros acidentais entre genes mutantes e um meio ambiente particular, então a ideia de naturalidade começa a parecer artificial" (3). A "sociedade de simulação" contribuiu para a criação de uma visão do universo reconfigurado a sua imagem. Não há duvida que a mudança de um regime de visibilidade para outro pressupõe que mudem determinados traços que compõem o campo em que as percepções são construídas. Jonathan Crary demonstrou essa mudança no caso dos novos meios de captação do real que rompem com o regime clássico de visualização (4).

No fundo, qualquer mudança de regime de visibilidade pressupõe a reorganização de toda uma "forma de vida". Matrix , o filme dos irmãos Wachowski diz-nos que o real é uma simulação para esconder que o real é já realmente uma simulação. O "meio" e o "real" são agora uma única nebulosa indecifrável (Baudrillard).

..
 

(1) Peter Sloterdijk, Extranamiento del Mundo, Pre-Textos, Valencia, 1998, p. 357.

(2) Deleuze, Logique du sens, Minuit, 1969.

(3) Richard Rorty, "Universalisme moral et tri economique", Futuribles, Setembro 1997, p. 30.

(4) Jonathan Crary, Techniques of the Observer , MIT Press, 2001.