NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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A doxa naturalista
a literatura e o suicídio

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO (UNL-DCC)
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A doxa naturalista

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Poucos anos separam Eça de Ferraz de Macedo. "Estas fontes torrenciosas e de origens múltiplas, causais da infelicidade de muitos humanos, são oriundas do jejum prolongado sistematicamente e do martírio físico, que se davam os desgraçados que rolavam pelo plano inclinado de tão triste quão perniciosa instituição clerical" (1). O que estava a mudar era o ponto de vista (o ponto de vista do Olho de Deus com que o autor pretendia rivalizar) e a multiplicação de visões do mundo que arrasta consigo uma subjectividade descentrada. Bastaria passar os olhos pelo livrinho de Luís de Granada, um autor espiritual do século XVI, para encontrar argumentos, apoiados na medicina e na filosofia pagã que justificam a prática do jejum. Não só os médicos, mas a Escritura ensinam a mesma coisa (Si 37, 29-31). "O abstinente prolongara o curso da sua vida", diz o Sábio (S1, 37-31). E Granada evoca Galeno, o príncipe dos médicos, e evoca Hipócrates, o medico famoso que diz que o mais excelente meio para conservar a saúde e comer pouco, ser diligente para o trabalho e o exercício corporal (2).

Na visão estreita de Ferraz de Macedo as inspirações divinas, a graça, a tendência para as coisas sobrenaturais, a literatura apocalíptica e obra do delírio e das alucinações. O diagnóstico e infalível: "Estas fontes torrenciosas e de origens múltiplas, causais da infelicidade de muitos humanos, são oriundas do jejum prolongado sistematicamente e do martírio físico que rolavam pelo plano inclinado de tão triste quão perniciosa instituição clerical" ( Ibidem, p. 19). Onde Eça reconhecia a decadência do positivismo na pessoa do Sr. Aulard, espancado porque "fechou o homem num laboratório a sós com a sua esposa clara e fria, a razão", Ferraz de Macedo mantém-se fiel ao manual positivista de onde expulsou as crenças por ignaras e o sobrenatural como consequência da estupidez.

O epistemólogo Stephen Toulmin chamou a atenção para o facto que os ideais de ordem natural supõem a admissão de uma regularidade que constitui um adquirido e não exige explicação (3). A medicina, a teoria dos temperamentos, os gabinetes de curiosidades, as viagens têm por função ligar culturas diferentes, alertando para a existência do monstro, do outro e da loucura. Os paradigmas que então regem o saber resumem-se em dois: desenvolvimento (modelo embriológico), evolução (modelo biológico). No século XXI talvez o meta-paradigma cibernético e a sua ideia da "generatividade da informação" venha a ultrapassar a alternativa, redutora, entre empirismo e racionalismo. Com o tempo, a natureza passou a significar realidades múltiplas, não um processo não justificado de unificação da vida pública e da repartição das capacidades de fala e de representação, que torna impossíveis a assembleia política e a convocação do colectivo numa República. Como Bruno Latour, batemo-nos contra três formas de natureza, a natureza 'fria e dura' das qualidades primeiras, a natureza 'quente e verde' da Naturpolitik , enfim a natureza 'vermelha e sangrenta' da economia política. " Naturalizar não significa apenas que se estende o reino da Ciência a outros domínios, mas que se paralisa a política. Podemos naturalizar a partir da sociedade, da moral, etc. Pelo contrário, quando se reúne o colectivo, deixa de haver razão para se privar das expressões de bom senso e de utilizar natural como aquilo que vai de si ou que é inteiramente membro do colectivo" (4).

Eça de Queiroz foi autor de pelo menos dois romances O Crime do Padre Amaro (1875) e O Primo Bazilio (1878), distanciando-se nas décadas seguintes do modelo do romance naturalista. Eça escreve, em 1893, nas Notas Contemporâneas que "em literatura, estamos assistindo ao descrédito do naturalismo. O romance experimental, de observação positiva, todo estabelecido sobre documentos, findou, e o próprio mestre do naturalismo, Zola, e cada dia mais épico, a velha maneira de Homero" (Ibidem, p. 257). E a vingança das paixões e terrores. E a chegada dos simbolistas e, com eles, do misticismo. Contra o positivismo, mais do que a força e a matéria, o apetite do divino, a necessidade da espiritualidade religiosa, tenha ela a forma do budismo, do espiritismo ou do cristianismo. "Em Paris, em todas as grandes cidades, onde o materialismo excessivo exasperou as imaginações, não se vêem senão homens inquietos batendo a porta dos mistérios". (Ibidem, 262).

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(1) Ferraz de Macedo, Varios Ensinamentos e Methodo Scientifico Natural , Lisboa, IN, 1882, p. 19.

(2) Louis de Granade, Trait é de l'oraison, du j e une et de l'aumone, Paris, Cerf, 2004, p. 116-119.

(3) Cf. Stephen Toulmin, Foresight and Understanding, pref. De Jacques Barzun, New York , Harper & Row, "Harper Torchbooks", 564, 1963, cap. 3 3 4, p. 44-82.

(4) Bruno Latour, Politiques de la nature, la découverte, 1999, p. 358.