Pedro da Silveira é uma das mais fascinantes personalidades da cultura açoriana e a sua obra um contínuo desafio para os leitores. É verdade que não temos ainda uma biografia, nem mesmo sequer uma cronologia que nos sirva de guia para uma melhor compreensão do homem e da obra. Não temos mesmo, ainda, uma bibliografia completa e difícil de realizar por que Pedro da Silveira dispersou-se por livros, jornais, revistas e folhetos e isso dificulta a recolha dos seus trabalhos. Beneficiei da generosidade de João Afonso que me permitiu a consulta da sua recolha, a mais completa que existe, a integrar na Bibliografia Geral dos Açores, no volume VIII, mas mesmo assim sabemos, eu e ele, que escaparam muitas coisas. Contudo, com tanta limitação, creio ser possível uma abordagem ensaística ao tema que me proponho e a primeira constatação é que nos multi-facetados interesses do nosso autor, a História tem um lugar central, até quando se ocupa de matérias pouco ligadas ao conceito clássico de historiador.
Pedro da Silveira tem surpreendido aqueles que se abeiram da sua obra por que na diversidade todos encontramos trabalhos de qualidade incontestável e que fazem vacilar a hierarquia da sua produção. É evidente que Pedro da Silveira é, acima de tudo, um poeta, mas, já isso constatou Urbano Bettencourt, ele é preferencialmente conhecido pela erudição e também pela investigação, talvez por que dela todos temos beneficiado (B ettencourt , s.d.).
A sua verdadeira paixão pela investigação em vários domínios fez dele um historiador, acima de tudo um historiador de literatura, mas é bom relembrar que nem toda a investigação, e muito menos a erudição, conduzem à História por que esta pressupõe um pensamento sobre aquilo que se investiga e muita investigação acaba em si própria. É útil, é generosa quando dispensada aos outros, mas não é História. Com Pedro da Silveira isso também acontece quando ele se apressa a divulgar o fruto da sua investigação com consciência da utilidade que ela possa ter para os outros.
Mesmo apreciada de uma forma superficial e talvez impressionista, a produção de Pedro da Silveira divide-se por três grandes áreas: a poesia, a história da literatura e crítica literária e a etnografia, ou melhor dito, a antropologia cultural. Em todas elas a História está presente. E está presente também de uma forma gritante a sua formação ideológica. Ideologia e cultura ou cultura e ideologia estão de tal forma entrançadas na obra de Pedro da Silveira que, atrevo-me a afirmar, isso é não só a marca mais saliente do que produziu como é ainda o fio condutor da unidade do seu pensamento que trespassa o conjunto da sua produção quer literária, quer de historiador, quer de etnógrafo, quer de crítico.
Não é muito fácil, com os dados disponíveis e que se concentram essencialmente nalguns poucos testemunhos pessoais (A lmeida , 1987; Quarto Crescente, 1987; Focus, 2001) e memórias do próprio autor, descortinar a sua formação política e cultural, mas a marca fundamental de ambas é o autodidatismo assente numa vontade férrea e numa curiosidade sem limites. É preciso dizer que Pedro da Silveira nunca se mostrou muito entusiasmado pelo memoralismo ou pelo gosto de falar de si, a não ser na poesia, como veremos, mas a instância de amigos lá deixou algumas páginas que se tornam importantes para o nosso propósito. Considerava ele que o início de uma perspectiva literária se dera em Angra entre o Outono de 1941 e a entrada do Verão de 1942, quando tinha 19 anos. Nessa cidade, numa tertúlia de amigos, ora no Jardim, ora na Biblioteca Municipal (cf. S ilveira , s.d.: 1), na Livraria Andrade, com gente da terra e com outros “exilados” no cumprimento do serviço militar ou em missão de soberania e defesa (Silveira chamar-lhes-ia depois a invasão do piolho cinzento, em alusão à cor das fardas) começava a formação estética do jovem florentino. Mas o curioso é que nunca aludiria ao tempo anterior que passara no Seminário Episcopal como aluno. Matriculou-se no ano lectivo de 1934-35 e por lá andou um ano e parte do seguinte (M edeiros , 1998: 153). Foram tempos que esqueceu e não parecem ter deixado memória digna de referência, nem mesmo para alicerçar o seu proverbial anticlericalismo, que terá tido outras origens. Nem aludirá de forma explícita à sua formação académica, no Liceu ou na Escola Técnica, não tenho elementos para o clarificar. O que fixou como “escola” foi antes a tertúlia de amigos, a convivência com alguns grupos de intelectuais citadinos, a muita leitura, a busca incessante das novidades literárias. De todos, um mestre por excelência, o poeta cabo-verdeano Jorge Barbosa, que só mais tarde conheceria pessoalmente mas com quem, nesse início de experiências se correspondeu. Nemésio, também, mas em menor escala.
Paralelamente, uma formação ideológica segura, também ela nascida de modo heterodoxo, selada ainda na sua adolescência nas Flores, onde conheceu alguns exilados políticos, que, confessa ele, lhe revelaram quem era Salazar e ao que vinha. Com eles primeiro, com um grupo anarquista em Angra depois, consolidaram-se os princípios essenciais que o acompanhariam por toda a vida, como havia de confessar já no fim, ao revelar a sua inclinação política numa célebre entrevista concedida ao jornalista terceirense Joel Neto, publicada na Focus (2001).
Foi pois em Angra, no “Núcleo da Juventude Anarco-Sindicalista, impulsionado pelo regicida Alfredo Costa”, que consolidou os seus dois inimigos: Lenine e Salazar.
Porquê esta pormenorização formativa de Pedro da Silveira? Simplesmente porque são estas duas linhas de força que irão servir de base à sua filosofia cultural e interpretativa da história e da criação literária. O gosto pela açorianidade, a compreensão de que regional e universal não são antagonismos e a interpretação da história açoriana como um colonialismo político e cultural fruto do imperialismo português. Sem se ter presente estas opções dificilmente se entenderá a mensagem cultural de Pedro da Silveira.
Mas, regressemos ao tema, a História na obra de Pedro da Silveira, começando pela sua criação poética. O poema que serve de pórtico ao seu famoso livro A ilha e o mundo (S ilveira , 1952: 11-13) intitula-se, precisamente, «História» e é uma espécie de resumo da história das ilhas, bebido nos cronistas, na tradição e na observação, os três pilares da sua sabedoria. É uma “história das angústias e das raivas” que fazem o açoriano, neste caso o florentino, aqui fixado como paradigma. O poema marca uma periodização da história de um povo subjugado e explorado, mas submisso. São “gritos de revolta nem sequer esboçados” e os capítulos dessas páginas de uma história lírica do povo açoriano chamam-se: «Sangue do povo», «Lágrimas do povo», «Saudades do povo» e «Sonhos do povo».
«História» é um poema espantoso que em duas páginas de um livro ensina mais do que muitos compêndios e, de facto, quem quiser ir ao âmago de uma história das ilhas deve começar por lê-lo e interiorizá-lo. Se o compreender, fica com a chave para desvendar cinco séculos de história açoriana.
Mas outro poema famoso, o soneto autobiográfico à maneira de Bocage, intitulado «Soneto de identidade», incluído no livro Poemas ausentes (S ilveira , 1999: 14), é um bom exemplo da carga da História na obra de Pedro da Silveira. Aí invoca as suas raízes, as insulares e as outras, as flamengas, as castelhanas, as alemãs, todas aquelas que fizeram as raízes do açoriano e sobretudo a “outra pátria (ou língua?) que me coube e tomo” e que todas o transformaram ou ele as transformou, creio ser isso, no “Ilhéu da casca até ao cerne”.
É o fascínio pela História, pela sua compreensão e pelo gosto de assumir essa condição insular, moldado pelo que se sedimentou em séculos, que deixaram sulcos que não se podem apagar e que cada um carrega consigo. Assim, se define na primeira quadra:
«Chamo-me Pedro, sou Silveira e sou
também Mendonça: um tanto duro, como
Pedro é pedra; picante agudo assomo
de silva dos silvedos – não me dou!»
Contudo, é na história da literatura que se encontra de uma forma mais explícita a vocação de historiador em Pedro da Silveira, mas de um historiador comprometido e fiel aos princípios formativos. Ele próprio dirá: “cada qual tem a sua verdade ou, então, o que dá no mesmo, o seu modo de ver (ou ajeitar ...) a verdade” (Quarto Crescente, 1987). Não se pode ser mais explícito, porque a verdade, mesmo a verdade histórica fundamentada em documentos, pode e deve ser feita de leituras interpretativas. É isso que faz da História aquilo que ela é e justifica o fascínio que sempre exerceu e as paixões que sempre despertou.
Recorrendo a dois dos mais conhecidos trabalhos de história da literatura produzidos por Pedro da Silveira, o famosíssimo e polémico «Prefácio» à Antologia de poesia açoriana (S ilveira , 1977: 1-41) e as «Notas» à publicação das Almas cativas e poemas dispersos, de Roberto de Mesquita (1871-1923) ( M esquita , 1973), encontram-se os exemplos fundamentais para se compreender o trabalho do historiador.
A Antologia de poesia açoriana ( S ilveira , 1977) é um trabalho de maturidade, fruto de uma vida de investigação e de crítica, e o «Prefácio», que levantou uma tempestade de críticas, acusações e despeitos, um quase testamento onde a literatura açoriana (nunca posta em causa) é explicada como a consequência lógica e paralela a outras experiências do colonialismo cultural. Uma espécie de reacção e resistência de colonos de uma colónia de povoamento europeu, como se deu um pouco por toda a parte onde existiram esses fenómenos colonizadores. É por isso que Pedro da Silveira aproxima o caso cultural açoriano não das colónias africanas onde floresceram ou vieram a florescer literaturas nacionais em língua portuguesa, mas antes da experiência norte-americana e canadiana.
A primeira vez que Pedro da Silveira falou da possibilidade da existência de uma literatura com expressão artística da condição de açoriano foi no «Almanaque Açores», mal iniciou a sua vida literária. Nas edições para 1943 e 1944, Pedro da Silveira publicou artigos, poemas e um conto. Naquele para o ano de 1944, publicou um pequeno artigo de crítica literária e evocação do malogrado poeta João de Matos Bettencourt (S ilveira , 1943: 49-50), onde se aponta a sua obra, conjuntamente com a de Roberto de Mesquita e Armando Cortes-Rodrigues, como precursores de uma literatura (como já em Cabo Verde) “expressão de nós mesmos, açorianos, e não visões doentias daquilo que não somos”.
Para Pedro da Silveira, o século XIX foi o tempo por excelência da longa e difícil elaboração da identidade dos açorianos e, consequentemente, de todas as experiências e de todos os ensaios com as inevitáveis lições, algumas bem amargas, entre as quais a compreensão que um Estado açoriano de todo independente era uma utopia. Assim, nasceria a Autonomia que, mesmo com várias limitações, buliu com a literatura contagiando-a com o seu ideal. Isto é, nos Açores, o processo de emancipação cultural foi paralelo e profundamente ligado ao processo político como se terá dado noutras experiências que sempre fascinaram Pedro da Silveira. Entre todas essas experiências aquela que sempre lhe serviu de paralelismo preferencial e de onde, através dos seus teóricos, retirou lições e conclusões, Cabo Verde, mas também outros colonialismos culturais bem mais europeus, como acima de todos o caso da Galiza.
Este merece uma reflexão mais atenta pois o interesse pelos galegos, pela sua experiência cultural e pela sua luta contra o imperialismo castelhano terá despertado desde muito cedo, ainda na adolescência, pelo convívio com uma família galela estabelecida nos Açores, na ilha das Flores e em Angra, os Macide, cujo chefe era, ele próprio, um activista político, nacionalista de inspiração anarca. O paralelismo entre a Galiza e os Açores ou, melhor dito, entre as experiências literárias galega e açoriana parece evidente e, mais ainda, com o ensaio de Pedro da Silveira sobre as relações culturais de escritores galegos e portugueses (S ilveira , 1986).
O que é de salientar na construção teórica da história da literatura açoriana de Pedro da Silveira é a ideia de que tal literatura é um produto de consciencialização do açoriano, da sua própria identidade e das consequências daí advindas, como libertação dos colonialismos culturais e políticos, que estudou em paralelo com outros fenómenos semelhantes, insulares ou não.
Pedro da Silveira deixou expresso na Focus (2001) a sua inclinação para uma solução política federalista como forma de conciliação, pelo respeito e pela liberdade das consciências nacionais ou regionais subjugadas e abafadas pelos centralismos ibéricos. O Federalismo Ibérico sempre lhe despertou grande interesse e sonhou com uma federação que incluísse os Açores, a Madeira, as Canárias e Cabo Verde onde, finalmente, conviveriam, em pé de igualdade, os Estados que, no fundo, constituíam, por laços culturais, a Ibéria.
Era, evidentemente, uma utopia, mas que mais ou menos conscientemente influenciou os caminhos que Pedro da Silveira percorreu para marcar a sua teoria do nascimento e consolidação da literatura açoriana e mais amplamente da História dos Açores ou do açoriano.
Ainda em 1987, na entrevista concedida a Álamo Oliveira (Quarto Crescente, 1987), a ideologia voltava, claramente, a evidenciar a sua visão do que era a literatura açoriana e atacava os seus críticos e detractores acusando-os de usarem “antolho ideológico-imperial” que vinha da “Mocidade Portuguesa” com passagem por “marxismo de catecismo à russo-tártaro”.
Não resta pois dúvida de que a teoria da história em Pedro da Silveira é um produto da sua formação ideológica, do seu horror às formas ditatoriais e aos imperialismos contra os quais sentia o dever cívico de combater por todos os meios, à boa maneira anarquista, ainda que tenha usado meios pacíficos, mas servindo-se de uma linguagem crítica, agressiva, que é uma marca indelével da sua obra. Contudo, num ensaio que se propõe reflectir sobre a História na obra de Pedro da Silveira não se devem esquecer outros aspectos do ofício de historiador que caracterizam a sua obra e em que se vislumbram mais os mecanismos da investigação aturada até se concretizar um trabalho final.
O poeta conterrâneo de Pedro da Silveira, Roberto de Mesquita, depois de um ensaio de Vitorino Nemésio (N emésio , 1939), tornou-se no símbolo por excelência da açorianidade literária e da prova que o regionalismo podia atingir a universalidade e ombrear com o melhor que produziam as escolas literárias nacionais, neste caso o simbolismo. Pedro da Silveira compreendeu que o caso estudado por Nemésio era essencial para fundamentar a sua teoria literária e passou a dedicar uma atenção persistente a este autor, sem dúvida pelo interesse que sempre lhe despertaram os patrícios das Flores, mas mais do que isso pela exemplaridade da sua obra para alicerçar a sua opinião sobre literatura açoriana. O estudo, a pesquisa e a divulgação da obra de Roberto de Mesquita, as influências recebidas, os mecanismos da produção poética, as marcas locais, as teias de acesso às fontes e tudo o que pudesse ajudar à compreensão de uma obra tão complexa como a do poeta, acompanhou desde a juventude o investigador Pedro da Silveira.
Ainda nos anos da juventude, em Angra, no «Almanaque Açores, 1944» (1943: 41-44), publicou um pequeno texto de divulgação e depois ao longo da vida nunca se cansou de pesquisar em revistas e jornais tudo aquilo que Roberto de Mesquita pudesse ter publicado, mesmo que não se limitasse à criação poética, mas que ajudasse a compreender a sua personalidade e a construir a sua biografia, e que no essencial são S ilveira (1946a; 1946b; 1951; 1958a; 1958b; s.d. 2).
Ora, este processo de investigação e divulgação persistente é exemplo da maneira como Pedro da Silveira construía a sua obra e se, em muitos casos, a investigação não levava a uma conclusão e se perdia nas pequenas notas de rodapé (que ficaram célebres em Pedro da Silveira, ao ponto dos seus detractores o definirem como especialista em notas de rodapé) ou em modestos artigos de jornal ou revista, ainda que sempre informativos, no caso de Roberto de Mesquita levaram à concretização de um dos seus mais completos trabalhos de história da literatura açoriana, inserido na edição de Almas Cativas e poemas dispersos (M esquita , 1973).
Aí, mais do que em qualquer outra parte, surge o investigador e o historiador completo, ponderado e consciente, que remata décadas de recolha de materiais. Dos materiais literários regista as variantes dos poemas incluídos em Almas cativas publicados postumamente (1.ª edição em 1931) e dá uma rigorosa listagem da proveniência dos poemas dispersos, sendo notável o esforço de investigação em jornais raros e revistas literárias, trabalho beneditino de décadas.
Como fruto da investigação biográfica, fixa uma óptima cronologia de Roberto de Mesquita, que em boa verdade é mais uma biografia do que outra coisa e onde ressalta o gosto de Pedro da Silveira pelo pormenor e pelo enredo social como forma de explicação e de compreensão histórica que, mais noutros casos do que neste, muitas vezes se torna um exercício de “má língua”. Veja-se a título meramente exemplificativo a opinião expressa sobre Manuel Ferreira Deusdado e a sua acção como professor do Liceu de Angra do Heroísmo (S ilveira , 1975: 17, nota 17).
Acrescenta, ainda, uma bibliografia crítica e biográfica sobre o poeta, esta também um bom exemplo do seu gosto pela bibliografia, outra das áreas da investigação em que se tornou conhecido e que levou alguns dos seus críticos a acusá-lo de saber preferencialmente muito e só aquilo que os outros não sabiam. Esta bibliografia, sedimentada ao longo de anos, dá bem a nota da permanente atenção de Pedro da Silveira ao que se ia produzindo sobre crítica literária.
Este estudo de Pedro da Silveira sobre Roberto de Mesquita é um exemplo feliz de como ele construía o seu trabalho de historiador da literatura e de incansável investigador de um inventário sobre o qual posteriormente trabalhava os seus ensaios. O ofício de historiador tem sempre uma marca individual que, inevitavelmente, caracteriza cada personalidade, ajudando a compreendê-la nos seus gostos e nas suas intenções.
Por último, um exemplo de uma outra forma de historiografia, esta longe da história literária. Pedro da Silveira foi sempre um apaixonado pela sua ilha natal, as Flores, aliás uma das características apontadas por Nemésio como fundamento da açorianidade, esse amor irracional pela ilha de origem, e essa sua ilha transformou-se no objecto preferencial da pesquisa e da meditação e um ponto de partida para a compreensão mais alargada dos fenómenos sociais, económicos, políticos e culturais da história dos Açores.
Em 1947, num período mais demorado nas Flores, copiou do livro do Tombo das Fajãs 3 importantes documentos referentes à fundação da freguesia da Fajãzinha (1676), ao acrescentamento da côngrua do novel pároco (1678) e à fundação da Irmandade do Santíssimo Sacramento (1708). Com base neles, elaborou um ensaio sobre a história do povoamento das Flores (S ilveira , 1960). Este ensaio é formado, como estrutura interna, por uma apresentação do tema apoiada na leitura de dois cronistas, Frutuoso e Diogo das Chagas, nas versões então disponíveis, a que se segue a transcrição paleográfica dos documentos, terminando com o aproveitamento dos dados retirados da documentação para com eles escrever uma história social e económica dessa parte da ilha das Flores.
O ensaio em si é exemplar, porque nele se encontra com facilidade o historiador que Pedro da Silveira também sabia ser, ainda que se possa dizer que não retém dos documentos todas as consequências e informações que eles oferecem. Contudo, é de realçar que este trabalho historiográfico é bem melhor do que qualquer outro dos que nessa época apareciam nas revistas açorianas da especialidade, mesmo aqueles elaborados por historiadores encartados.
É de salientar a leitura cotejada dos cronistas, a preocupação em avaliar os dados estatísticos da população, as deduções da história social e cultural e as referências à economia rural, tudo temas que nos anos cinquenta andavam arredados das preocupações da historiografia açoriana e que tornam Pedro da Silveira num precursor da renovação historiográfica que ao longo dos anos sessenta do século XX se havia de dar nos Açores, mas por influência da formação universitária da escola de Lisboa.
Terminou o seu ensaio com três notas desgarradas que merecem referência. A primeira, menos feliz, sobre um tema que o acompanharia e o inspiraria mesmo na área literária, a origem remota dos nomes de família dos primeiros povoadores. Leia-se do já citado soneto autobiográfico a segunda quadra e o primeiro terceto:
“Raiz flamenga, já se sabe; e um gomo,
no fruto, castelhano. E assim bem pouco,
pois, que doce me passara à outra
pátria (ou língua?) que me coube e tomo.”
“Ainda Henriques (alemão? polaco?)
e outros cognomes mais: espelho opaco
de errâncias várias, que mal sei (Desfaço”
Não apresenta, para essa época, qualquer novidade, sendo até inseguro na fundamentação. Bem mais interessante e arguta é a segunda nota, ao abrir a discussão sobre a designação dos senhores das Flores, se donatários se comendatários, mas infelizmente não desenvolveu o tema e até talvez na época em que escreveu, isso não fosse possível. A terceira nota, a mais conseguida, é onde discute o conceito e a amplitude do povoamento, optando por prolongar no tempo esse fenómeno e defendendo que povoar ou colonizar um lugar, neste caso a ilha das Flores, não é estabelecer umas tantas famílias, mas antes, que só existe povoamento quando a população fixada ganha estrutura própria.
Numa crítica a este ensaio ressalta que os temas empurrados para estas notas seriam os preferenciais para o corpo do trabalho historiográfico propriamente dito e que Pedro da Silveira não aproveitou, como seria de esperar. |