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ANNABELA RITA NO PAÍS DAS MARAVILHAS
Maria Estela Guedes
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ANNABELA RITA
BREVES & LONGAS
NO PAÍS DAS MARAVILHAS

Roma Editora, Lisboa, 2004
 

Annabela Rita reuniu neste livro crónicas e ensaios na maior parte publicados dispersamente, sobre temas literários, sociais, políticos, culturais, etc., tratados numa perspectiva interdisciplinar. País das Maravilhas é este em que vivemos e não outro, Alices somos nós todos, por isso somos nós que o criamos, com os seus golpes de heroísmo e de tragédia, de burlesco e de sentimental. Mas somos nós também que o criamos como espaço de inter-relações entre ciência, arte, literatura e afecto, quádruplo campo em que se move mais frequentemente a autora.

Neste país, há espaços de maior maravilha do que outros, ou aqueles a que o termo "maravilhoso" se aplica com propriedade maior: é o das letras, aquele a que pertencem os livros de Lewis Carroll, já que é essa a música que Annabela Rita traz aos nossos ouvidos. A atitude da autora face ao que analisa corresponde a dois aspectos interdependentes do país com que Alice é confrontada: um é o desafio de descobrir o mundo que fica do outro lado dos espellhos, outro é a viagem indispensável para lá chegar.

Alice começa a sua viagem afundando-se num buraco. É uma katabase típica da literatura iniciática, e está neste momento a lembrar-me a torre invertida da Quinta da Regaleira, aquele misterioso poço em cujo fundo há uma passagem estreitíssima para o refrigério de um plano de água. Do outro lado do espelho, o que estas imagens representam é uma viagem interior. As imagens podem ser substituídas por letras, e então teríamos a estranha cifra V.I.T.R.I.O.L: desce às profundezas da tua alma e, corrigindo-te, descobrirás a pedra filosofal. Não traduzi, fiz uma exegese. Ora esta viagem corresponde à que a autora empreende nos textos analisados, oq ue pressupõe uma opção entre os dois termos do binómio consagrado por Roland Barthes: o óbvio e o obtuso. A escolha repele assim as auto-estradas do conhecimento geral, preferindo a autora arriscar-se por sendas e obscuros caminhos em que é necessário dar atenção aos sinais discretos, mínimos, aqueles que escapam muitas vezes ao olhar.

É em geral o tema da viagem o escolhido por Annabela Rita para fazer a hermenêutica dos textos de que se ocupa, tratem eles da viagem em sentido próprio ou sejam apenas passíveis de ser interpretados como um percurso. São eles que constituem a Biblioteca, Gabinete de Maravilhas, título da segunda parte do livro, em que encontramos ensaios sobre Sena de Freitas, Camilo Castelo Branco, João Barrento, Eça de Queirós, entre outros. No TriploV tem em linha alguns textos de Annabela Rita sobre a literatura de viagens, agora publicados neste livro. O tema da viagem é excelente para exercícios inter-disciplinas, pois congrega todos os campos do conhecimento, desde as letras às ciências, religiões e filosofias.

O gabinete de maravilhas lembra o gabinete de curiosidades, colecção heteróclita que se costuma considerar antecessora directa dos museus de História Natural, concebidos estes de acordo com um paradigma científico. Quer um quer outro estão directamente relacionados com a viagem, uma vez que as colecções se constituíram com objectos recolhidos nas colónias europeias da Ásia, América e África, em geral por naturalistas-viajantes. A colecção indígena também exige viagem de exploração.

É curioso ver assim que a atitude da autora é exploratória de um território de curiosidades e colecções a que ela dá o nome de biblioteca . Ou seja, a biblioteca é para Annabela Rita o mesmo que a Lapónia para Lineu, a Amazónia para Alexandre Rodrigues Ferreira, Angola para Welwitsch, a Birmânia para Leonardo Fea ou São Tomé para Francisco Newton, viajantes típicos do naturalismo nos séculos XVIII e XIX. De facto, só nas bibliotecas encontramos hoje os reflexos mais directos destas viagens. Uma vez que o elo de referência com a realidade biogeográfica se diluiu, esses reflexos no espelho tendem a aproximar-se cada vez mais de outras viagens: a de Alice no País das Maravilhas , cujo autor é de resto um homem de ciência que gostava de viajar pela palavra.

Ler Annabela Rita é entrar num gabinete de curiosidades: tanto lá podemos encontrar conchas como talismãs, tatus embalsamados como moedas. Mas a realidade cultural é essa e não a da selecção especializadora: ninguém vive isolado numa torre de marfim da alta cultura, nem num bairro de lata da cultura televisiva. Os espaços são contíguos e interpenetram-se. A autora não selecciona estações no seu percurso, ele implica o alto e o baixo, como qualquer série de provas de iniciação. Por isso o livro é um retrato fiel do nosso tempo, lê-lo equivale a viajar pelo nosso País das Maravilhas.

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