VII Colóquio Internacional
"Discursos e Práticas Alquímicas"
LAMEGO - SALÃO NOBRE DA CÂMARA MUNICIPAL
22-24 de Junho de 2007

A desmaterialização do corpo na
concepção pós-moderna da hipernarrativa

José Augusto Mourão (UNL-DCC)

INDEX

Resumo
Introdução
Manifesto for Cyborgs
Ciberficção
A literatura electrónica
Desencarnação ou co-evolução?
Coda

Desencarnação ou co-evolução?

As mulheres não têm no ciberespaço um papel tão activo como têm os homens em geral. São objectos, feitos de bites, dando-nos a imagem de mulheres bonitas para uso e prazer dos machos. A “mulher” é no Ocidente, uma criação intelectual do homem, definida sempre negativamente como não-homem. Grande parte da crítica feminista dos anos 40 assentava na desconstrução da ideia de “homem” como uma norma através da qual a experiência humana era julgada. A construção que se lhe opõe é então a de “mulher”.. No mundo da tecnologia, os programadores são, na maioria, homens. Desconstruir a armadilha fálica de binarismos, a representação do género e os conceitos tradicionais na rede e nas instituições da tecnocultura não foi tarefa fácil. Haraway sugeriu ser possível “construir uma identidade pós-moderna fora da alteridade e da diferença” através do que chamou “consciência oposicional”. O núcleo desse trabalho centra-se na estética e nas estratégias artísticas, que só ironicamente podem competir com a “informática da dominação”. O Hipertexto é desde logo uma prática de desmaterialização do texto: “uma espécie de idolatria (…) o fetichismo da obra – concebida como um objecto fechado, completo e absoluto” (1). Com o advento do hipertexto, as práticas de narrativas digitais modificaram-se substancialmente. As técnicas de simulação do texto baseadas nos jogos de computador entre 1960 e 1970 introduzem a não linearidade – as rupturas na estrutura serial são um lugar comum – e a interacção, o estatuto do leitor, de uma forma nunca dantes vista. Assente na transgressão de convenções do media, género e disciplina. A maioria dos teóricos do hipertexto adoptam a visão do “Xanadu” de Nelson – um nome para uma rede global distribuída em que todos os textos estão abertos a ligações e “transclusões” – como um modelo ideal da forma hipertextual. Os hipertextos subvertem a própria distinção entre autor e leitor e recusam a própria ideia de clausura.

O ciberfeminismo põe em cena sobretudo os fantasmas em causa na ideia da clonagem reprodutiva humana. O sonho de imortalidade: não que a célula seja imortal, mas que a pessoa o seja. Que outro de si mesmo? Um grupo com uma abordagem teórica importante é o Old Boys Network (obn.org) que reflecte sobre o papel do género e sobre a sua descontrução na arte e na ciência. Outro fantasma: selecção, uniformização, totalitarismo. A ideia de selecção remete para a ideia de eugenismo. Assim­, a narração fílmica actua como um pharmakon mítico para restaurar o dualismo “alma/corpo” e a hierarqui­a “varão/mulher”, mostrando primeiro a ubiquidade da tomada de posição materialista e cí­nica, para fazer ver logo a sua inviabilidade e a necessidade de uma toma de posição moral. Porém, por seu lado, através desta “catequização” expõe-se inexoravelmente a centralidade do corpo humano e do seu carácter sexuado como constitutivo do “Eu”. As imagens sociais distópico-utópicas que mostram essa oscilação mostram também o carácter irredutível do corpo humano. Ligado à dor, ao sofrimento e à mortalidade, de tal forma que a “compaixão” aparece como um traço tipicamente humano (cf. “Blade Runner”, capaz de amar um andróide, aceitando a sua fugacidade”). Ora, esse traço está ancorado no corpo. O ciberfeminismo, ou melhor, a questão do género é uma das manifestações mais constantes no ciberespaço. Marita Liulia, na Finlandia, nos seus CD-ROMs, Ambitious Bitch e Son of a Bitch coloca problemas que vão desde as mudanças que afectam as identidades masculina e feminina, as descobertas biológicas, a moda e as relações sociais. “Grande número de mulheres (jovens) participaram – na esperança de fugir às hierarquias patriarcais típicas dos “velhos media” – como o cinema” escreve Luilia (2). É notório que o ciberfeminismo oscila entre o hiperracionalismo tecnocrático da cibernética “clássica” e a visão neo-romântica pós-moderna da inteligência computacional, em estreita conexão com o neoplatonismo e o idealismo de Berkley, o que M. Heim demonstrou. As narrativas que povoam o ciberespaço têm as suas raízes na ficção romântica (Gótica), como é manifesto no Neuromancer de Gibson: “O ciberespaço é o platonismo em termos de produto funcional…Suspenso no espaço informático, o cibernauta abandona a prisão do corpo e emerge num mundo de sensações digitais” (3).

A virtualização do ciberespaço, i.e. a deslocalização e desmaterialização do espaço social da comunicação leva necessariamente à desincarnação nas relações sociais. Como se estivéssemos de regresso ao antigo teatro grego, onde “persona” quer dizer máscara: a pessoa pode ser reduzida a um papel representado por clones ou avatares. Mesmo se Sherry Turkle é de outra opinião: “Enquanto os especialistas continuam a falar do real e do virtual, as pessoas constroem uma vida na qual as fronteiras são cada vez mais permeáveis. Sim, não gosto de falar do real e do virtual, mas antes do virtual e do resto da vida. Não V-R, Vida Real, mas R-V, resto da Vida”(4). A análise que faz K. Hayles da desencarnação e da desmaterialização das narrativas da ALife contraria aquilo a que ela mesma chama o mito da desencarnação (1999ª). A sua metodologia centra-se na literatura e na narrativa como sítios encarnados que facilitam o tráfego entre ciência e cultura, sugerindo que os textos “encarnam pressupostos semelhantes aos que se infiltraram nas teorias científicas em momentos críticos”. É verdade que no romance Neuromancer, de William Gibson, (2000) Case é banido do ciberespaço. “Para Case, que tinha vivido para a exultação desencarnada do ciberespaço, foi a perda do Paraíso. Nos bares que frequentara como vaqueiro do Oeste, a atitude da elite implicava um despreocupado desprezo pela carne. O corpo era carne consumível”. O discurso de desencarnação tem um lugar central quer nos escritos do romancista “cyberpunk” William Gibson ou de Marge Piercy, quer da feminista Donna Haraway. No livro Body of Glass de Marge Piercy (1991) há uma passagem que resume bem o estatuto do corpo na ficção ciberpunk, quando Yod confessa a Shira que a sua natureza artificial lhe causa constrangimento e ela lhe responde: “Agora já nenhum de nós é natural, Yod. Eu tenho implantes de retina. Tenho uma tomada instalada no crânio para aceder ao computador. Vejo as horas por meio de um implante na córnea. A Malkah em um dispositivo subcutâneo para regular e corrigir a tensão arterial, e tem metade dos dentes implantados. Reconstruiram-lhe os olhos duas vezes. Vram tem um coração artificial e Gadi um rim…Somos todos ciborgues, Yod. Tu és apenas uma forma mais pura daquilo para que nós estamos a tender” (1991: 203).

Rosa Braidotti, tem razão quando analisa a ciber-imaginação contemporânea no que respeita a produção cultural em torno da tecnologia da VR. “Feminist researchers in this field have noted the paradoxes and the dangers of contemporary forms of disembodiment, which accompany these new technologies”'. (“As investigadoras feministas desta matéria assanalaram os paradoxos e os perigos das formas de desencarnação contemporâneas que acompanham estas novas tecnologias”) Exemplo disso é o filme The Lawn Mower Man em que o assunto do filme é um cientista que trabalha para a NASA e que utiliza tecnologias de manipulação da mente muito avançadas, utilizando primeiro um chimpanzé como objecto de experiência científica mais tarde substituído por um homem atrasado mental, cujo cérebro se 'expande' através desta nova tecnologia. Algo que podemos comparar com os corpos machos 'invaginados' de Cronenberg, de Videodrome , ou ainda os implantes de cérebro em Johnny Memonic .” http://www.let.uu.nl/womens_studies/rosi/cyberfem.htm

(1) G. Genette, Figures of Literary Discourse: 147.

(2) “Art in the Age of the Mobile Phone: Text Messages from Finland”, in Uncanny Networks, Geert Lovink, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts London, 2002, p. 205.

(3) Michael Heim, The Metaphysics of Virtual Reality, New York, Oxford University Pres, 1993, p. 89.

(4) Federico Casalegno, “Sherry Turkle: Fronteiras do real e do virtual” FAMECOSm nº 11, 1999, p. 118.

INICIATIVA:
Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL)
Instituto São Tomás de Aquino (ISTA)
www.triplov.org

Patrocinadores:
Câmara Municipal de Lamego
IDP - Complexo Desportivo de Lamego
Junta de Freguesia de Britiande
Paróquia de Britiande
Dominicanos de Lisboa

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