SÃO TOMÉ EM 1903 / É ASSIM A VIDA NAS ROÇAS / UBA BUDO
JÚLIO HENRIQUES
19-07-2003 www.triplov.com

ra_uba_budo

Fig. 67 - Uba Budo - formatura


É ASSIM A VIDA NAS ROÇAS

A vida nas roças é toda de trabalho, tanto para dirigentes, como para dirigidos, não exceptuando mesmo os pequenos pretitos, que em muitas roças colhem o cacau dos ratos (1). Durante os 365 dias, que conta cada ano, apenas nos domingos há um ligeiro descanço.

Ao romper do dia a sineta dá o sinal de preparar para o trabalho. Os doentes são inspecionados e todos os válidos formam em frente da habitação do administrador, saudam-o todos a um tempo com o - bom dia patrão - (fig. 67). A seguir dividem-se em grupos, que acompanhados por europeus - homens do mato - encarregados de vigiar e dirigir o pessoal de cada grupo, seguem para o local onde há trabalho a realizar.

Lembro-me bem de ter visto um dêsses grupos caminhando para o seu destino. Estava na praia da Angra de S. João. A luz da manhã fraca, o mar sem o menor movimento, o pequeno vapôr, que fazia a viagem em volta da ilha, ancorando ao meio da angra, nem baloiçava; em volta enorme massa de verdura, mas tudo imóvel; um silêncio profundo. Parecia que não havia vida. Nestas condições é que vi passar na costa oposta uma longa fila de serviçais, silenciosos tambêm, caminhando lentamente. Quantos com saudade se recordariam do sertão angolense onde tinham nascido!

Durante o dia na sede o pessoal é limitado, e fora do serviço vêem-se alguns doentes fazendo serviços ligeiros, compatíveis com as fôrças dêles, mulheres, trazendo as mães os filhos sobre os rins embrulhados nos panos, que lhes servem de vestido (2) e fervilham por toda a parte os pequenos moleques.

Ao fim da tarde regressam à sede todos os serviçais, formando, como de manhã, trazendo cada um amostra do que fez, uns lenha, outros pasto para os gados, cachos da palmeira do óleo, os serradores uma táboa, etc. O maioral passa revista para vêr se algum fugiu e em seguida dão as - boas noites patrão - e debandam seguindo para suas habitações.

Estes quadros repetem-se invariávelmente em todos os dias do ano.

Os trabalhos executados em cada dia são variadíssimos e alguns são executados com perfeição. Vi aparelhar enormes vigas de modo admirável. Em Monte Café vi fazer cestos muito perfeitos imitando os que tinham visto fazer aos chineses, que durante algum tempo estiveram em S. Tomé.

Aos domingos o movimento é maior.

Cingem panos lavados, as mulheres vestem blusas garridas, panos ou saias, colares de grandes contas ao pescoço e cobrindo a cabeça com lenço bem posto em forma de barrete.

As negras que fazem serviços de creadas apresentam-se bem, mesmo até com tal ou qual elegância. Chegam mesmo a originar paixões.

O movimento aumenta quando chega a hora da distribuição dos alimentos. Correm todos para as proximidades dos armazens e aí o pessoal encarregado da distribuição vai dando a cada um o que lhe pertence.

Os alimentos distribuídos consistem em arroz, farinha de milho, bacalhau, peixe e carne seca, carne de conserva, açúcar, farinha de mandioca, grande quantidade de azeite de palma, vinho e leite esterilizado para o hospital e creche (3). Alêm dêstes alimentos teem à descrição os frutos que se encontram nas roças, bananas, fruta pão, mamão, e muitos outros.

Pode afirmar-se que não passam fome.

No fim de cada mês faz-se o pagamento do salário. É uma das ocasiões mais interessantes. Recebido o ordenado sentam-se na terra e contam e recontam o dinheiro, distribuem-o, em pequenas parcelas, talvez calculando despesas determinadas e conservando-se neste serviço por não pouco tempo.

Na roça o administrador (patrão) é tudo. É êle quem faz e desfaz os casamentos, quem julga os delitos e determina os castigos, quem resolve os casos familiares.

Em Ponta Figo ao anoitecer, terminada a forma, uma preta veiu procurar o patrão. Falava pelos cotovelos muito exaltada. Segundo depois me disse o administrador, ela queixava-se dos maus tratos, que lhe inflingia o marido. Por tal motivo não podia continuar a viver com êle. Tinha abandonado a casa recolhendo a casa honesta.

O patrão aconselhava-lhe socego e acalmação, chegando até a indicar-lhe tais ou quais penas. A nada se movia. Pouco depois veiu a outra parte interessada no caso. Fez queixas, recebeu conselhos paternais e deu-se a audiência por terminada.

Passados dias, quando regressei a Ponta Figo perguntei pelos litigantes. Tinham feito as pazes e a desertora tinha volvido aos trabalhos caseiros.

Costa Santos era um patrão bondoso e os serviçais tinham por êle muita consideração.

Procedendo assim, captando a afeição e respeito do pessoal a disciplina é fácil. É necessário certo rigôr; é indispensável que o pessoal reconheça a benignidade do patrão, mas que tambêm reconheça que êle é justiceiro e energico. Ter numeroso pessoal, como é vulgar em quási todas as roças, na devida ordem não é coisa fácil. Se entre os serviçais há elementos de raças diferentes, a dificuldade é bem maior.

Os delitos teem de ser castigados, mas por processos razoáveis. Felizente hoje é êsse o processo geralmente seguido. Poderá alguem dizer o contrário, mas a verdade é que o tratamento actual nada tem de bárbaro.

Note-se que o serviçal tem um protector oficial; o curador dos serviçais, para o qual pode recorrer.

O serviçal terminado o seu contrato pode voltar para o seu país.

Para facilitar a repatriação é parte do seu salário posta em depósito, sendo-lhe entregue ao voltar para a sua pátria.

Traz isso consigo não pequenas dificuldades à agricultura porque os serviçais ausentam-se justamente quando estão mais habilitados para os serviços agrícolas ou industriais, sendo substituídos por pessoal ignorante, mal disposto e que só com o tempo se aclimata ao novo modo de vida e adquire a educação necessária.

A repatriação é um direito, que não pode ser negado ao serviçal.

Querer trocar a vida de trabalho, mas sem lhe faltar alimento, remédios, cuidados, pela vida do sertão é bem pouco razoável. A vida que o negro aí passa é verdadeiramente miserável. É porêm um direito, tem de ser respeitado.

Entre os serviçais há vícios, que dão que fazer. Um dêles é a paixão pelas bebidas alcoólicas. Não podem passar sem elas e disso Ihes veem doenças e transtornos diversos.

São gastadores, pois não pensam no futuro. Para obviar a êstes desmandos em quási todas as roças há a loja, na qual o pessoal encontra tudo quanto lhe pode ser necessário e pelo mais baixo prêço. Em algumas roças há mesmo cooperativas que produzem óptimos resultados.

Esta organização tende a evitar que as compras sejam feitas fora das roças sempre por prêços elevados.

Outro defeito é o hábito de roubar, havendo nessa arte artistas perfeitos, dando-se até casos engraçados (4).

Roubar cacau e outras frutas para vender por baixo prêço a estranhos é coisa corrente. Os regulamentos policiais são de limitado efeito, e necessário era que fôssem mais rigorosos e rigorosamente executados (5).

Não é raro tambêm dar-se a fuga dos serviçais. Para não serem presos no caminho levam consigo qualquer objecto roubado na roça em que viviam, que lhes serve para mostrar que vão cumprir ordem que Ihes foi dada.

Por êste processo ficou sem cabeçada numa noite em Pôrto Alegre uma égua em que eu viajava.

Na ilha àlém dos serviçais há trabalhadores activos, que nas roças prestam bous serviços. São os angolares, descendentes dos escravos que naufragaram nas Sete pedras em 1540 e que por largo período viveram independentes no Sul da ilha. Hoje ainda muitos aí estão estabelecidos, outros vivem em localidades diversas. São homens enérgicos, próprios para todos os serviços, sendo insignes para as derrubadas. Ninguem faz êsse serviço com tanta perfeição.

São tambêm bons homens do mar. Faz gôsto vêr como navegam velozmente nos seus barcos feitos duma só peça, talhado no tronco de qualquer árvore gigante. Os angolares trabalham por paga diária e sabem pagar-se.

É assim a vida nas roças.

Interêsses especiais levantaram a êste respeito críticas graves, mas não justas. Viajantes independentes que teem visitado a ilha teem dado informações claras, completamente opostas ás críticas inglesas. O Príncipe alemão A. de Lõewenstein, o director das plantações do Camarão, W. Kemmer, os doutores Schulte e Strunk, os naturalistas franceses A. Chevalier e Gravier deram notícia do que tinham observado e nenhum deu a menor nota pela qual se pudedesse inferir que as acusações tinham fundamento.

Ainda mais, na própria Inglaterra mais do que um indivíduo tomou a defeza de Portugal. O tenente-coronel, J.A. Wyllié foi um dos principais (6).

_____________________

(1) Semente de cacau dos frutos em parte roídos pelos ratos.

(2) Em Ponta Figo deu-se nm caso curioso. Uma preta por mais duma vez abortou devido isso talvez a pancadas, que lhe aplicava o marido. Duma vez porêm nasceu um pequeno e o pai tomou conta dele e trazia-o sempre como as mulheres. Creio que seria exemplar único.

(3) Como exemplo veja-se o que com isto se consome na Boa Entrada. Nessa roça consomem-se em média 100 toneladas de arroz, 20 de farinha de milho, 18 de bacalhau, 35 de peixe sêco, 6 de carne seca, 12 de carne de conserva, 10.000 de feijão, 600 de mandioca, 15.000 litros de vinho, 1.200 de leite esterilizado e 6.000 de azeite de palma.

(4) Na roça Granja tinha-se guardado com segurança um barril de vinho. Quando em certa altura quizeram utilizar-se do vinho encontraram o barril vazio. Procurando explicação descobriu-se que entrando numa loja da casa por baixo do compartimento onde estava o barril, furaram o pavimento e o barril, e beberam o vinho.

(5) Na ilha da Trindade (Pequenas Antilhas) o regulamento do comércio de determinados produtos agrícolas é extremamente rigoroso.

Só o proprietário ou quem o representa pode vender e para se ter faculdade de comprar é indispensável estar autorizado pela Repartição da polícia. O autorizado é obrigado a ter escrituração regular das compras e vendas, sujeito à inspecção policial.

Quem negociar sem a devida licença paga uma multa de 1 até 25 libras e não pagando logo, tem a pena de prisão de 14 dias a 6 meses, sendo confiscadas pela polícia as mercadorias apreendidas.

Quem fizer compras a um menor de menos de 12 anos paga a multa de 5 libras, ou prisão com trabalho forçado por três meses.

O licenciado que não tiver os livros em ordem terá pela primeira vez a multa de 10 libras e de 10 a 20 pela segunda vez e à terceira pagará 20 libras e ser-Ihe há cassada a licença. Não sendo pagas as multas imediatamente terá tres meses de trabalhos forçados.

Os proprietários ou os seus representantes devem ter autorização legal para fazer prender qualquer pessoa, que se suspeite ter desviado produtos agrícolas seja onde fôr.

Ainda mais. - Qualquer pessoa que tenha roubado ou assistido a um roubo; ou tenha recebido produtos roubados terá seis meses de trabalhos forçados e será açoitado na prisão.

É com estas medidas rigorosas e com outras providências que a agricultura tem prosperado na Trindade.

(6) O Dr. Strunk escreveu o seguinte.

No decorrer da minha visita cheguei à cozinha, grande e espaçosa, onde se estava a cozinhar para todo o pessoal de côr. Lá estavam instaladas sôbre fornalhas de alvenaria grandes caldeiras para cozer arroz e o feijão e formidáveis tachos de cobre para a preparação de azeite de palma em plena actividade. A comida era feita com asseio e esmero. Adquiri a convicção de que na Alemanha o sustento dos trabalhadores nas grandes propriedades rurais não pode ser melhor.

Théo Masui numa notícia publicada no Bulletin de la Soc. d'études coloniales, escreveu o seguinte:

"Si l'on se place au point de vue uniquement moral, c'est une véritable mission philantropique que remplit l'État portugais en favorisant le rachat de ces esclaves des mains de leurs bourreaux; le travail régulier et rémuneré n'est-il pas le premier èchalon de Ia régénération de cette race déshéritée?...

"Les serviçaes ont une vie de travail, mais pour toujours soustraits à une rniserable vie d'aventures, ils ont une famille, un intérieur et sont assurés de soins constants...

"Je quittais l'île après m'etre rendue compte très exactement de ce qu'est cette belle colonie et suis heureux de rendre un hommage sans restriction aux qualités qu'ont déployées les Portugais dans cette entreprise considérable. Avec des moyens restraints, presque sans capitaux, ils ont transformé, en un quart de siècle, des milliers d'hectares de forêt vierge en riêches plantations et rnontré au monde un bel exemple de ce que peut devinir cette terre d' Afrique par la volunté et le travail".

Diz mais ainda - "Les portugais connaissent bien le noir, ils savent Ia manière de Ie traiter, ne se Iivrent pas sur Iui à des brutaIités répréhensibles, mais n'ont pas d'excés de sensibleries; iIs lui incuIquent des idées de respect et de discipline, indispensabIes pour maintenir une organisation regulière du travaiI».