CARTA ABERTA AO DR. SALAZAR*
Henrique Galvão

Pode V. Ex.a reclamar como obra verdadeiramente salazariana, na ordem dos seus actos e da sua moral:

A. - Uma população aviltada pelo Medo, sem personalidade viril, sem ideais nem ideias, que não fala desde que V. Ex.a se recusou, há muitos anos, a ouvi-la - e que procurou como refúgios o Fado e o Futebol, para dar ainda alguns sinais de vida. Vinte anos de Polícia política, de Tarrafal, de Censura, de violação de lares e de correspondência, de fisco extorsivo - sobre espíritos ignorantes, corpos hipoalimentados e doentes - reduziram este povo bravo e simples à miséria dos grandes párias dos países totalitários. Toda a gente tem medo - medo de alguém ou de qualquer coisa, medo de V. Ex.a e da sua gente. E deste estado de Medo desprendem-se naturalmente, como os miasmas pantanosos, todas as cobardias morais, todas as traições aos costumes e aos sentimentos, e os mais ferozes egoísmos.

Lince ibérico


Le Tigre - Em Buffon (1856)

Todos desconfiam uns dos outros, porque nas almas da maioria se preparam espiões e vilões, capazes de todas as denúncias e vilezas para alcançarem um emprego ou um privilégio, para assegurarem o pão ou para fazerem um negócio. Os amigos têm medo de manter relações com os seus íntimos caídos em desgraça, os lesados têm medo de reclamar, os detidos têm medo de ser torturados, os doentes têm medo de não serem aceites no Hospital, o vizinho tem medo do vizinho, o parente tem medo do parente - e até o homem honrado, vitima de insultos, tem medo de aplicar os dois socos ou bofetadas com que outrora se liquidavam estas coisas. E pior ainda : já ninguém tem vergonha de declarar o medo que tem. Perante a mais insignificante responsabilidade de opinião ou de sentimentos, de dever ou de simples hunanidade, as pessoas já nem sequer procuram uma desculpa para se escusarem: declaram pura e simplesmente que têm medo.
Há tempos realizou-se em Lisboa um banquete de homenagem a um oficial que as vozes da política dão como caído em desgraça e, por isso, afastado do País, onde a sua presença se tornava incómoda.

Pois esse oficial recebeu de um camarada, que se dizia também seu amigo, uma carta na qual se desculpava de não assistir ao banquete, nos seguintes termos textuais: «...isso leva-me a contrariar deliberadamente os meus propósitos e porque a minha ausência poderia parecer a seus olhos desinteresse e ingratidão, tomei a iniciativa de lhe escrever, crente que compreenderá os motivos conhecendo o ambiente como conhece. ISTO É CERTAMENTE UMA MANIFESTAÇÃO DE COBARDIA, mas, de facto, receio mais deselegâncias e picardias porque tenho fracas armas para combater. Espero que me desculpará». Uma declaração destas já não desqualifica um oficial do Exército. Ao contrário - protege-o. Todos têm medo no sistema criado por V. Ex.a - um sistema em que não há instâncias sérias de recurso. E este medo geral é a melhor, a principal arma de V. Ex.a - e o sentimento colectivo a que deve, mais do que a nenhum outro, a sua estabilidade e a sua prosápia.

Quando V. Ex.a era um seminarista de vinte anos - modesto e sem ambições, como se propagou depois - bolsou um dia sobre os alunos do liceu de Viseu esta frase de certo sabor profético: «Modelar uma alma, que grande obra! Que obra extraordinária a de formar um carácter, um indivíduo, um corpo, uma inteligência como este pobre Pais de Portugal exige para se tornar grande !»

Os actos de V. Ex.a permitem hoje admirar o afinco e o talento com que deformou as almas e caracteres dos portugueses actuais.

E aqui tem V. Ex.a, esboçado à pressa, um dos aspectos da sua obra - pelo qual bem pode reclamar da História o cognome de «Capador».

B. - Uma administração corrupta até à medula, de ignóbeis intimidades e entendimentos, entre desonestos apontados a dedo por toda a população e políticos que se julgam honestos só porque não lhes rendem notas do Banco os favores que fazem e as combinações a que se prestam. Todos os princípios morais redutíveis a dinheiro.

Durante muito tempo, e porque V. Ex.a entrou na arena política com fama de homem de bem, a maioria dos roubados (todos nós) acreditava que V. Ex.a ignorava a série de imoralidades, de escândalos e de roubalheiras que puseram o País a saque.

«É porque ele não sabe»...«Ah, quando ele souber. ..»

E a Nação pretendia assim, ingenuamente, manter a ideia que se fizera acerca da honestidade de V. Ex.a - mais uma ideia falsa como tantas outras a que se aferrara.

Afinal V. Ex.a não só sabia como também protegia pela impunidade, e até pela recompensa, os mais corruptos dos seus apaniguados. (...)


* Extraído o fragmento da História Contemporânea de Portugal - Estado Novo, vol. I, p. 146. A carta teria sido redigida em 1952, quando Henrique Galvão estava preso.

Pardalina warwickii, em Gray (1867) - Leopardo dos Himalaias