FILOSOFIA NATURAL: CRIAS
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13-07-2003
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COLECÇÕES
Maria Estela Guedes

São dois os lugares da filosofia natural: campo e gabinete, ar livre e sala de estudo. As estampas, na maior parte do século XIX, correspondentes à descrição original de espécies, não participam todas, no entanto, de nenhum desses campos: os animais que representam viviam, alguns, no Jardim Zoológico de Londres. O jardim, seja de plantas ou de animais, é um espaço construído pelo homem, e desde que de algum modo o homem intervenha no devir das espécies, já não se pode falar de natureza, sim de cultura.

Os objectos recolhidos no campo podem estar à superfície, no ar, no fundo do mar ou debaixo da terra, e neste caso davam-lhe o nome de fósseis. Hoje, os fósseis são outra coisa. Esses objectos tinham como destino os gabinetes de curiosidades e depois os museus.

Quando se enviavam de longe, era preciso obedecer a regras, publicadas sob títulos idênticos a este: "Instruções para recolher, preparar, conservar e remeter produtos dos três reinos para o Museu...". A cada acção corresponde um conjunto de técnicas, instrumentos e produtos. Recolher exige caça e pesca no caso de aves, mamíferos e peixes, e armas de fogo, redes, dragas, esparrelas e até dinamite (usada em certa altura para atordoar os peixes, que mais facilmente podiam depois ser recolhidos em redes). A preparação e a conservação recorrem a instrumentos como tesouras, agulhas de ponta seca, bisturis e a drogas como a cânfora. A remessa exige construir embalagens adequadas aos produtos, por vezes desenhadas nas "Instruções".

As regras também tinham por fim ensinar a escolher os produtos pretendidos (para não se enviar só amostras do mesmo granito ou da mesma espécie de peixes) e a evitar que se danificassem na viagem. Se uma pedra dificilmente se danifica com uma tempestade no mar, já os insectos podem perder as asas, as antenas e outras partes do corpo que servem para os identificar. Uma borboleta sem asas não é identificável, tal como uma lula sem tentáculos ou uma ave sem certas penas. Não podendo ser classificados, esses objectos não têm valor científico.

Consoante os objectos, assim difere o modo de os preparar. Os principais modos de conservação são dois : por via seca e húmida. As plantas conservam-se em geral por via seca, nos herbários. Os insectos também se secam, bem como as peles de mamíferos, répteis e aves; peixes, moluscos e outros invertebrados, pequenos répteis e anfíbios, etc., conservam-se em frascos cheios de espírito de vinho - a aguardente, hoje substituída por álcool ou formol. Os ovos, de muito delicado transporte, conservam-se em via seca, depois de furada a casca para evacuação do conteúdo.

O transporte de seres vivos também ocorre, mas não para museus, sim para jardins, parques e casas particulares. Se ler as cartas de Rosa de Carvalho, no TriploV, verá que nos barcos havia sempre animais, que nem sempre sobreviviam, e então a sugestão de Rosa era aproveitar os que morriam para o museu de Lisboa - os museus não lidam com os seres em vida, muitas vezes, para os classificar, é necessário recorrer a caracteres orgânicos internos, o que exige autópsia. A estrutura e finalidade dos museus é diversa das dos jardins zoológicos. Estes apareceram mais tarde, se bem que desde épocas remotas fosse uso haver animais exóticos nos parques dos grandes senhores.

Quando se tratava de espécies com valor comercial, em que não chegava enviar meia dúzia de exemplares, sim grande quantidade, para plantar e introduzir noutros locais, era preciso aclimatá-las primeiro. A aclimatação exigia pontos de escala intermediários ao longo do caminho, em geral ilhas, como São Tomé, as Mascarenhas, etc.: as plantas da Índia e do Brasil eram primeiro cultivadas em São Tomé, e a sua descendência é que se transplantava para outro local, até chegar ao Jardim Botânico da Ajuda, aquele em que nasceu o termo "jardim de aclimatação". As sementes ou estacas das plantas nascidas no Jardim, oriundas de plantas da Ásia e do Brasil, passavam depois para as colónias africanas. A aclimatação não é directa, porque os seres vivos morreriam ao passar bruscamente de um clima para outro. Aclimatar quer dizer isso mesmo : habituar o organismo a suportar um clima diferente daquele onde vive a sua progenitura.

Em qualquer dos casos, a colecção nunca é caótica, sim colectiva - séries de objectos semelhantes; estes obedecem por isso a regras de classificação. A classificação tem por detrás um estudo e normas, o que lhe confere carácter científico e torna estabelecimentos de ensino os lugares onde as colecções se apresentam. As colecções são instrumentos de conhecimento, quer dos objectos recolhidos em países distantes quer naquele em que vivemos.

Nos gabinetes de curiosidades, e nos museus de História Natural, seus herdeiros, há quase sempre três tipos de colecção de dada colecção, seja de moedas, medalhas, minerais, aves ou conchas : uma para expor ao público, em sala própria, com vitrines e iluminação especial, em cenário de espectáculo, que visa atrair ao estudo com a beleza, dar a conhecer mediante um aparato de sedução. Os objectos assim exibidos têm preparação particular : se forem conchas, podem ser polidas ou mesmo cinzeladas no interior para realçar o brilho do nácar e atribuir valor de arte ao natural. Se forem animais, estarão montados por diversas técnicas, uma delas a taxidermia, que consiste em retirar aos mamíferos ou aves toda a carne, gordura, partes moles susceptíveis de apodrecerem, deixando só a pele e o esqueleto. No mercado há toda a espécie de olhos de vidro, que podem ser pintados com a cor da íris. A pele com o esqueleto é depois montada de modo a parecer que o animal está vivo, e são os olhos artificiais que melhor simulam o natural.

Outra colecção é a dos duplicados, essencial para a permuta, mais económica do que a compra a casas comerciais especializadas na venda de produtos de História Natural e que dispunham dos seus próprios colectores e exploradores - Wallace, o autor que com Darwin publicou a teoria da evolução, era um desses comerciantes; na altura da publicação do artigo coligia na Indonésia para os museus da Europa.

E finalmente há a colecção de estudo, que o público não vê, e se visse não entenderia, porque se conserva apenas de certos produtos o que contém os caracteres discriminantes para dado paradigma de classificação. No caso dos mamíferos, só as peles, que se guardam espalmadas em inúmeras gavetas de grandes colecções de armários, devidadamete etiquetadas com o número de catálogo, nome da espécie, autor e data da descrição, local e data de colheita e nome do colector. Sem este bilhete de identidade, o exemplar não tem valor científico.

NOTAS: Para a bibliografia relativa às estampas, veja, no TriploV, "Biblos-Alexandria". A nomenclatura que usamos é a original, relativa a essa bibliografia.