Para a complacência que as lagartixas da Madeira demonstram pelas pessoas, a zoologia dá uma explicação: não têm predadores, por isso não sentem medo, coabitam com o homem e deixam-no aproximar até ao close up acima, de José M. Rodrigues. Este artista apresenta no TriploV mais algumas imagens de Podarcis dugesii (1). As fotos foram tiradas no jardim da Quinta da Vista, junto ao Palácio do Governo (Funchal), no curso do Congresso Internacional "Jardins do mundo", a 11 de Maio de 2007, às horas quentes do princípio da tarde.
Não foi uma questão de sorte o facto de as lagartixas se terem deixado fotografar de perto, coisa que em Portugal nunca aconteceria: elas quase voam mal pressentem alguém. Trata-se de facto de antropofilia, coabitação pacífica com a espécie humana. Essa experiência já eu a tinha tido anos antes, e voltei a tê-la agora, simplesmente, para o nível das minhas aptidões e performance da minha máquina fotográfica, preferi fotograr o fotógrafo enquanto ele fotografava a Lagartixa de Dugès. Também eu quase podia acariciar os animais. Notei que as fotos não foram apressadas, para aproveitar a oportunidade única: não, as lagartixas deram ao artista tempo suficiente para as deixar pôr em pose, e para ele compor um enquadramento com algum valor artístico e semântico, para além do científico. Não vale a pena perguntar a José M. Rodrigues se, no laboratório, deu algum tratamento às fotos, de modo a que o animal de cima parecesse negro, e castanho o da foto de baixo. A resposta seria não. O tratamento é outro: focado o primeiro plano e desfocada a parte anterior do animal, para o fazer irromper do negrume do desconhecido, na foto em cima. Na de baixo, José M. Rodrigues procurou que a luz cortasse o animal em duas partes, uma sem mistério, a outra, caudal, mais envolta na bruma que o próprio D. Sebastião. E com efeito: é nessa parte que se localizam os órgãos geradores dos maiores problemas. Em suma: os animais parece que pertencem a duas distintas raças, pelo menos na coloração. |
Há uns cinco anos, gastei algumas horas a olhar para elas a tentar perceber em que consistem as diferenças entre os indivídos. Interroguei-me muito: será talvez uma questão de luz, que as faz parecer mais ou menos melânicas, mais ou menos douradas, que oculta as listas longitudinais dos lados do dorso, ou as põe em evidência. Será também a luz que as faz parecer umas mais pequenas e mais delgadas do que outras. Deve ser por causa da luz que umas são gorduchas, a menos que estejam grávidas. Elas são furta-cores, as escamas muito finas reflectem a paisagem, tudo isso dá a ilusão de que há grandes diferenças entre os animais.
Sentada à beira delas, via-as entrar e sair dos buracos de um muro, postar-se à janela deles, como se estivessem a observar-me a mim. Pensei tudo isto, tentando compreender o motivo pelo qual os zoólogos, que noutro local já teriam criado dezenas de subespécies por causa destas diferenças, na Madeira pareciam fazer de conta que os animais são todos iguais.
Como é evidente, uma criatura humana absorta a olhar para lagartixas deixa no ar a suspeição de extravagância, para lhe não chamar outra coisa. Os naturalistas passaram tantas vezes por coca-bichinhos, modo eufemístico de o vulgo os classificar como Tontinhos de Lineu. Por isso não espanta que uma senhora de idade tivesse parado ao meu lado para me observar, atingindo-me o pensamento com um alfinete de argúcia: - Elas são todas diferentes umas das outras! - esclareceu, sem eu nada ter perguntado. E desapareceu sem mais argumentos com os sacos das compras.
Que significa o meu discurso? Naturalmente, que eu aceito com dificuldade o discurso oficial da zoologia acerca da origem por selecção natural (=sem intervenção humana) destas e outras espécies insulares. Acredito que a sua origem se deve à selecção humana, voluntária ou involuntária. Para já, o endemismo não é total: as lagartixas de Dugès também existem na ilha de Porto Santo e estão referidas para as Canárias e para os Açores. Se a selecção fosse natural, em ilhas distintas a evolução teria criado distintos endemismos.
"Estar referido" não significa "existir", embora muitas espécies referidas há cem ou duzentos anos, e depois disso nunca mais encontradas, tenham vindo nas últimas décadas a ser redescobertas. O mais gritante exemplo é o do Macroscincus coctei de Cabo Verde, endemismo estrito do ilhéu Branco que passou para o ilhéu Raso, e para Santa Luzia, e para toda a parte, e é referido por Greeff para as Canárias..., etc., numa infernal paródia de que dou conta nas Memórias do Lagarto cabo-verdiano (2). Esta espécie foi considerada extinta, vários naturalistas passaram meses nas ilhas para o descobrir e não encontraram nada, e agora parece que está em Santa Luzia. Há dias assisti na TV África a uma mesa-redonda sobre questões ambientais em Cabo Verde e uma das senhoras intervenientes falava dos lagartos gigantes de Santa Luzia como se nenhuma névoa de espanto pairasse sobre a sua real existência numa ilha que nunca foi habitat oficial dessa espécie extinta, dele havendo apenas uma curta menção de Chevalier, no início do século XX.
A primeira menção a lagartos na Madeira, que eu saiba, é feita por Gaspar Frutuoso, ao dizer que, à época da descoberta da ilha, quando os marinheiros saltaram para terra, entre outros animais, viram lagartixas em abundância, do tamanho de um dedo. A descrição já não se aplica a todas as lagartixas de hoje. Mesmo que fossem juvenis, entre as muitas vistas pela marinhagem haveria indivíduos de vários tamanhos, incluídos os que são bem mais compridos do que isso.
O interesse por estes animais insulares resulta da sua origem e modo como alcançaram as ilhas. Para o criacionismo não há problemas: Deus criou ali esses e outros animais. Para a zoologia fundada na obra de Darwin, os problemas são imensos: lagartos, cobras, rãs, cágados, etc., são animais incapazes de sobreviver na água salgada e de atravessar o oceano, de tal forma que pudessem ter partido de um ponto qualquer do continente e alcançado ilhas formadas no mar por erupções vulcânicas. Se dissermos que os homens levaram esses animais... Por exemplo, que as muitas lagartixas do tamanho de um dedo vistas pelos marinheiros quando pela primeira vez desembarcaram na Madeira tinham chegado nesse mesmo barco, apenas desembarcaram antes dos marinheiros, se dissermos isto, o assunto deixa de ter interesse científico. Essa origem dever-se-ia à selecção humana, ao artificialismo de uma viagem de navio. Os darwinistas não se ocupam das espécies formadas por selecção artificial. Só as ciências aplicadas (piscicultura, ostreicultura, suinicultura, etc..) se interessam por estes problemas, uma vez que são elas que nos asseguram, com a selecção artificial das espécies, uma alimentação boa e saudável (esperemos).
Se a origem das espécies das faunas actuais, ou da maior parte, fosse atribuída à selecção humana, os investigadores deixavam de ter matéria de investigação. Eles não trabalham sabendo que a sua origem se deve à selecção natural. Trabalham de acordo com a convenção de que a origem das espécies se deve à selecção natural. Trata-se de uma hipótese, um faz de conta.
Nós também fazemos de conta que a origem das lagartixas da Madeira se deve à selecção humana.
Tanto quanto sei, não existem relas na Madeira. Pelos motivos apontados em parágrafo anterior, a diversidade da fauna das ilhas é sempre muito pobre - muito pobre em teoria, claro. E será muito pobre na realidade dos factos, pois, em matéria de herpetofauna, só ali se conhecem, além de Lacerta dugesi, uma espécie de rã, Rana esculenta, a comestível. Porém, em referências bibliográficas, é sempre um pouco mais rica. Note-se a riqueza de uma única referência bibliográfica, a de Chevalier, para a existência do lagarto gigante de Cabo Verde em Santa Luzia, uma ilha onde nunca, até finais do século XX, foram coligidos exemplares para museus!
Relas na Madeira? Esses animais dificilmente transporiam o Atlântico. Em contacto com a água salgada, os embriões contidos nos ovos morreriam, supondo que fossem arrastados num tronco de árvore à deriva. No ficheiro de espécies do TriploV (3), um pouco mais rico do que os catálogos oficiais, a ficha de Hyla arborea meridionalis é referida no entanto por Bertin para as Canárias e para a Madeira. Uma única referência? Não, passámos agora a ter duas. Uma das participantes no Congresso Internacional "Jardins do Mundo", Mariagrazia Russa, apresentou uma comunicação, "A ilha da Madeira, jardim real e imaginário na literatura italiana", em que menciona um autor do século XVI, Pompeo Arditi, que cita várias espécies para a Madeira, entre elas rãzinhas como Hyla arborea, designadas como raganelli.
Já agora, como o ficheiro do TriploV é herpetológico (bibliográfico) e não faunístico, vale a pena lembrar que nele se regista ainda a presença de uma outra espécie de rã, Rana ridibunda. Misteriosamente, também aparecem na ilha - nos registos bibliográficos de animais da Madeira, entenda-se - mais espécies de lagartixas e os famosíssimos lagartos negros gigantes (há-os também anões) das Canárias, género Gallotia. E mais: a Tarentola delalandii, osga que também existe em Cabo Verde. Para terminar, um Scincidae, Chalcides viridanus.
A herpetologia da Madeira não se restringe a duas espécies. Vamos esperar para ver as outras sairem do ovo mágico. E vamos esperar também até ser publicado um catálogo das lagartixas da Madeira que diferencie em trinta ou mais subespécies o que por enquanto só conheço como a única e monótona Lacerta dugesi, pois a sua variabilidade, por enquanto, só está expressa na nomenclatura: Lacerta dugesi ou dugesii, Podarcis dugesii, Teira punctata e Zootoca, outrora, e na origem apenas Lacerta muralis, sim, a lagartixa dos muros que todos conhecemos. Um dia, para a Madeira, serão registadas tantas variedades de Podarcis como para as Baleares (4; 5). |