Yoko Ono e a travessia da modernidade

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


Yoko Ono tem tido uma estadia prolongada em Serralves, Museu de Arte Contemporânea, onde ocupa várias salas. O que dela vemos e ouvimos é uma retrospetiva, que remonta aos trabalhos mais antigos, ainda nos anos 50, antes de se ligar à fundação do movimento Fluxus. De então para cá, aprofunda-se a travessia da modernidade, adivinhando-se que tudo o que já vimos noutros lugares e artistas é a marca da sua autoridade sobre as gerações mais jovens.

Alguns vetores dominam a obra desta artista multifacetada: o mais eloquente, ou de presença mais constante, é a escrita. Escrita poética, cartas, instruções de como usar as suas obras, portanto escrita dela, Yoko Ono, mas também escrita, escritos, pedidos, lamentos, reivindicações, gritos de outras pessoas. E isto leva-nos para um segundo vetor importante, o da interatividade, a abertura da obra à participação alheia, quer participaçáo escrita, por conseguinte razoavelmente duradoura, quer efémera. Parte da participação duradoura tem prazo de validade, porque redigida ou marcada pela língua do país onde decorre a exposição, o que nos leva para um terceiro vetor, o da obra deliberadamente incompleta ou inacabada. É o caso de por vezes as suas instalações, como certamente a maior parte delas, ser mais projeto do que obra construída, isto é, as instalações dependem de materiais e contributos próprios do país que exibe, e isto leva-nos para um quarto vetor importante da obra, mais propriamente temático, o da construção. Construir por oposição a um destruir característico de outras sensibilidades, e estou a pensar no filme e livro «Détruire, dit-elle», de Marguerite Duras.

Vemos a construção no apego a ferramentas e objetos como pregos, martelos e escadotes, mas também existe a construção social, o que nos leva para a questão feminina, uma entre outras causas éticas a justificarem o título da exposição em Serralves, “O jardim da aprendizagem da liberdade». Das mulheres violadas, agredidas, exploradas, facilmente se dá o salto para o não à guerra, que terá tido momentos mais acutilantes uns do que os outros no decurso da vida desta jovem mulher de muita idade, mas que conserva a perenidade da sua eterna luta. De entre vários apontamentos a favor da paz, saliento duas instalações grandiosas, uma constituída por capacetes de soldados suspensos do “céu” e pelo fundo sonoro, de crocitar de corvos; a outra, terrivelmente pacífica, um cemitério de caixões a descoberto, com uma oliveira a crescer do interior de cada um; a oliveira, com a sua simbologia da paz, manifesta que o cemitério resulta da guerra.

Neste ponto do manifesto pacifista, fora já daqueles que enumerei para me facilitar a mim mesma a travessia da obra, entra John Lennon, quer nos títulos de canções que todos conhecemos, quer nos retratos que Yoko Ono faz dele ou nos escritos que lhe endereça. IMAGINE é o que mais aparece nesta exposição cheia de luz e amante das cores claras, em especial do branco, como se vê no tabuleiro de xadrez anti-racista em que todas as peças são brancas, ou na enorme construção com cabos pintados de branco que simula a radiação solar.

Não quer dizer que a extrema claridade expulse o mistério que habita a arte, ele está presente, por exemplo, como elemento escondido ou dificil de destrinçar num emaranhado de escritas. Este plano secreto é dado como jogo: no caso dos capacetes, eles não estão vazios, têm dentro sinais de inteligência: peças de puzzle; no caso da instalação gigante do barco (deve ser um barco de papel) em que domina o azul (talvez da tinta de escrever), o segredo clama por ser descoberto nas palavras escritas em babel de línguas.

Obra múltipla, variada, serena, unida nas suas duas flores mais visíveis no jardim da aprendizagem da liberdade, a arte e a ética, ela é de visita obrigatória.

 


YOKO ONO
09.09.2020