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CLAUDIO WILLER
GNOSE, GNOSTICISMO, A POESIA DE HILDA HILST
7. O encontro com a luz

O encontro com a luz é o resultado de uma viagem, em um luminoso barco subterrâneo: As barcas afundadas. Cintilantes/ sob o rio. E é assim o poema. Cintilante/ e obscura barca ardendo sob as águas.

Esses dois temas em Hilda Hilst, da luz interior revelada e da viagem rumo à luz, são topoi do gnosticismo. Nas escrituras gnósticas, há duas modalidades de relatos. Um deles, o da Queda, acidente cósmico e teológico que se confunde com a criação e com a absorção da luz pelas trevas. Outro, de uma ascensão, da salvação ou reintegração, sempre individual. Ambas, alegoricamente, são viagens. Em alguns textos, como no Hino da Pérola, a viagem é de ida e volta, representando a queda no mundo e a ascensão ao Pleroma. Em outros, como no Poimandres do Corpus Hermético, é apenas ascendente. É a tópica gnóstica das viagens: o batismo, a julgar pela leitura do Zôstrianos, é uma viagem através de águas celestiais ou cósmicas, a bordo de uma grande nuvem luminosa, rumo à gnose. (as escrituras gnósticas aqui mencionadas estão na compilação de Layton, já citada)

Mas essa tópica reproduz algo muito arcaico. Os xamãs, conforme examinado por Eliade e tantos outros, também viajavam: a aquisição de seus poderes era precedida pela ida e volta ao reino subterrâneo, ultrapassando a barreira da morte - o mesmo tipo de viagem relatada no mito de Orfeu, patrono dos poetas e dos mistérios iniciáticos gregos, embora em outro contexto, aquele do resgate da mulher amada. Ou não? Ou, alegoricamente, reencontrar Eurídice não equivale a um encontro de almas, a um reencontro com a luz?

Assim, vê-se que viagens iniciáticas e salvadoras estão ligadas a um mito, não apenas gnóstico, porém arcaico: o das duas almas, ou da centelha de luz. Nele, um grão da luz, simbolizando o princípio primeiro e o conhecimento, permaneceria no ser humano. Coexistiria com uma alma adventícia, falsa, introduzida pelo Demiurgo criador do mundo. O encontro de luzes, da nossa alma verdadeira com a instância primeira, equivale à gnose. E o resultado da aquisição ou conquista da gnose é a libertação da fatalidade astral, da regência do destino e das características humanas pela abóbada celestial, possibilitando o contato com o Espírito, a centelha divina, distinta da alma adventícia.

O mito das duas almas viria a produzir frutos literários. É o tema das duplas identidades e divisões do Eu: o duplo romântico, o Doppelgänger, e seus derivados, como o William Wilson de Poe; e, com mais propriedade, as proclamações do Eu sou um outro, de Gérard de Nerval e do Eu é um outro da Carta do Vidente de Rimbaud. Há, em Lautréamont, uma negação dessa segunda identidade, ou recusa a admitir um "eu" imposto por Deus, aparentando contradizer ou negar a proclamação de Rimbaud, porém mais coerente ainda com o pensamento gnóstico.

Esse mito parece, se não universal, pelo menos amplamente difundido. Está em outros relatos sobre a origem da humanidade, como aquele do confronto dos titãs com Dionísio. Abel Jeannière (em Lire Platon, Aubier, Paris, 1990) ao tratar dos mistérios órficos e dionisíacos na origem do pitagorismo, precedendo a filosofia platônica, comenta a destruição de Dionísio - equivalente para esse estudioso a Zagreus, sua versão iraniana, ou Hades, deus dos mortos -, devorado pelos Titãs, os primeiros habitantes da Terra:

Zagreus-Dionísio imolado ressuscita enquanto Dionísio vivo, esse "estranho estrangeiro" à vontade em todo lugar sobre a terra. Quanto aos homens, eles nascem das cinzas dos Titãs fulminados. [...] Misturadas à terra, as cinzas dos Titãs dão nascimento aos homens. Ora, os Titãs acabavam de devorar a carne de Zagreus-Dionísio; uma parcela do divino está, portanto, presente em cada homem. Nenhum homem nasce sobre a terra sem que, nele, uma faísca divina não aspire a juntar-se à divindade, e essa faísca divina que nos constitui no mais profundo de nós, devemo-la ao martírio de Zagreus.

Em Presságios do Milênio: Anjos, Sonhos, Imortalidade (Objetiva, 1996), Harold Bloom faz a mesma prospecção do mito gnóstico da centelha de luz ou alma verdadeira. Citando E. R. Dodds em The Greeks and the Irrational, trata da profecia extática na religião de Apolo (anterior na Grécia ao culto a Dionísio e ao orfismo), associando-a a um xamanismo grego,

...cuja influência Dodds centra na distinção entre a psique ou alma e um "eu" oculto, a princípio também chamado de psique, mas que foi aos poucos sendo chamado de pneuma ("alento"), ou daimon. [...} O eu oculto era de origem divina, ao contrário da alma, que para os gregos se achava muito à vontade no corpo; o mesmo não se dava com o novo eu dos xamãs, importado para a Grécia da Trácia, ao norte, e, portanto, em última análise, da bárbara Sicília, para onde asiáticos centrais haviam descido. Daí, conforme Bloom, o antigo surgimento do gnosticismo a partir do xamanismo, sobretudo do eu oculto ou mágico xamanista.

Em matéria de dualismo gnóstico, haveria mais a ser observado em Hilda Hilst. Por exemplo, sua persona, protagonista de Estar sendo, ter sido, de A obscena Senha D, de Amavisse, ora ser Hilé, ora Samsara. As duas expressões se equivalem: em grego ou em sânscrito, designam o mundo degradado, este mundo, o kenoma, antagônico com relação ao pleroma, a perfeição.

Isso não significa que ela fosse adepta, seguidora de alguma doutrina, gnóstica ou outra das muitas a que pode ser associada, especialmente hinduísmo e budismo. Poetas redescobrem ou reinventam doutrinas e interpretações do cosmo, conforme constatou Mallarmé, ao dizer, a propósito de suas visões do Nada e do Absoluto, que, sem estudá-lo, havia descoberto o budismo.