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CLAUDIO WILLER... |
PALESTRA SOBRE SURREALISMO -
CONVOCAÇÃO DE CÚMPLICES (fim) |
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Surrealismo Hoje, finalmente, ou finalizando:
Por ser sistema aberto, linha sinuosa, é claro que h á m uita coisa a ser revista no surrealismo. Por exemplo, pode-se criticar uma moral sexual surrealista. A idéia do "amor único" não pode tornar-se fórmula do perfeito casamento surrealista. Há equívocos até mesmo a apontar em uma obra como A Dupla Chama de Octavio Paz. Penso que ele confunde as coisas, no final desse livro, ao enxergar licenciosidade em nossos dias. Sociedade aberta, como a de hoje, é uma coisa, e licenciosidade pagã, orgias rituais, etc, são outra.
Mas, indo ao que interessa mais diretamente: após o encerramento em 1969 do grupo liderado por Breton, o que permanece? Um surrealismo militante? Ou difuso? Ou ambos? Tardio? Contemporâneo?
O surrealismo parisiense vinha apresentando um viés francófono, em suas últimas décadas de existência. Um viés, não apenas eurocêntrico, porém galocêntrico, que transparece nas coletâneas preparadas por autores diretamente ligados ao grupo e às atividades encabeçadas por André Breton. Um poeta da estatura do argentino Enrique Molina, entre tantos outros exemplos possíveis, tinha que ter sido, não apenas reconhecido pelo surrealismo francês, porém estar constantemente presente em Le Surréalisme, même, La Brèche, etc. Em Arcanos da Poesia Surrealista, publicado no Brasil (1), surrealismo parece ser um fenômeno exclusivo da literatura francesa. Em Autobiographie du Surréalisme, de Marcel Jean, de 1978 (2), há informação sobre o que se passou na Inglaterra e Tchecoslováquia, entre outros lugares; mas é como se fosse desenhado um mapa-múndi sem os continentes americanos e a península ibérica. Nas séries de periódicos surrealistas franceses, inclusive La Brèche - Action Surréaliste, dos anos 60, é mínima a presença de escritores não-francófonos. Nessas publicações, surrealismo em Portugal não recebeu registros compatíveis com sua importância: parece-me que de fato é pioneira, sobs este aspecto, a publicação de textos de Cesariny e de António Maria Lisboa em A Phala , a publicação organizada por Sergio Lima com Leila Ferraz, Raul Fiker e Paulo Paranaguá em 1967.
Mapeamentos mais amplos, dando conta de Portugal, da América Latina, etc, são algo recente, da década de 1980 para cá. Uma etapa importante é o extenso Dictionnaire général du Surréalisme et de ses environs de 1982 (3). Mas a prospecção continua em andamento. Das publicações recentes, a de maior fôlego parece ser a antologia-ensaio Il y aura une fois, de Jacqueline Chénieux-Gendron (4), com um capítulo sobre autores de língua espanhola, além da inserção de autores de outras línguas e nacionalidades, mas deixando de lado as literaturas de língua portuguesa. Por isso, são contribuições de enorme improtância levantamentos como os realizados por Floriano Martins, em O Começo da Busca, e, mais recentemente, em Un nuevo continente (5).
Surrealismo não pode ser paroquial. Grupos surrealistas não podem tornar-se igrejinhas. Há, é certo, o necessário espírito de seita, mas também, na obra de Breton, é freqüente o uso da expressão diálogo . Seus elogios a contemporâneos e autores mais novos - por exemplo, a Malcolm de Chazal, Aimé Césaire ou Frida Kahlo -, foram pela qualidade do que faziam, e não pela disposição de participarem de atividades, grupos ou movimentos surrealistas. Seu foco se dirigia, de modo muito honesto, em primeira instância para o valor . Frida Kahlo não queria saber de surrealismo, e o que interessou a Breton foi ela ser uma extraordinária artista. Essa dimensão do valor desaparece nos elencos de surrealistas preparados em algo da bibliografia recente; por exemplo, nos trabalhos de Sergio Lima (6). Interessa-lhe apenas, em uma versão particular da política literária, se concordaram em compor grupos com ele. O que há nas obras nunca é analisado ou discutido.
Quanto a mim, e à minha relação com grupos e movimentos surrealistas, acrescentaria ainda que, no começo de 1968, convidado por Paulo Paranaguá, fui a uma das reuniões na Promenade de Venus , em Les Halles. Em seguida, fomos ao apartamento de Vincent Bounoure. Divergências sobre geração beat , que ele não admitia de modo algum, resultaram em uma discussão exaltada, de algumas horas. Penso que o grupo surrealista francês fez bem em encerrar-se em 1969. Mostrava-se paroquial e epigonal. Se fosse para tomar posição nas ramificações e versões do surrealismo, a minha teria sido mais próxima àquela de Alain Jouffroy e Jean-Jacques Lebel, que nunca viram surrealismo e beat como excludentes.
Enfim, como tradutor de Allen Ginsberg, de Lautréamont, de Artaud, autor de um sem-número de textos sobre Breton e surrealismo, e de poemas, inclusive em escrita automática, não concebo antagonismo entre esses campos, respeitadas, é claro, suas diferenças, a integridade e especificidade de cada um. O antagonismo é com relação à ordem estabelecida, ao mundo em que vivemos. Isso, dentro da perspectiva do prosseguimento da rebelião romântica, da linha sinuosa à qual nós nos ligamos.
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Rimbaud: Voyelles |
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A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles,
Je dirai quelque jour vos naissances latentes:
A, noir corset velu des mouches éclatantes
Qui bombinent autour de puanteurs cruelles,
Golfes d'ombre: E, candeurs des vapeurs et des tentes,
Lances des glaciers fiers, rois blancs, frisson d'ombelles;
I, pourpres, sang craché, rire des lèvres belles
Dans la colère ou les ivresses pénitentes;
U, cycles, vibrements divins des mers virides,
Paix des pâtis semés d'animaux, paix des rides
Que l'alchimie imprime aux grands fronts studieux;
O, supreme Clairon plein des strideurs étranges,
Silences traversés des Mondes et des Anges:
- O l'Omega, rayon violet de Ses Yeux!
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Augusto de Campos em Rimbaud Livre : |
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A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul, vogais,
Ainda desvendarei seus mistérios latentes:
A, velado voar de moscas reluzentes
Que zumbem ao redor dos acres lodaçais;
E, nívea candidez de tendas e areais,
Lanças de gelo, reis brancos, flores trementes;
I, escarro de carmim, rubis a rir nos dentes
Da ira ou da ilusão em tristes bacanais;
U, curvas, vibrações verdes dos oceanos,
Paz de verduras, paz dos pastos, paz dos anos
Que as rugas vão urdindo entre brumas e escolhos;
O, supremo Clamor cheio de estranhos versos,
Silêncios assombrados de anjos e universos;
- O! Ômega, o sol violeta de Seus olhos!
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na tradução de Ivo Barroso: |
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U, ciclos, vibrações dos mares verdes, montes
Semeados de animais pastando, paz das frontes
Rugosas de buscar alquímicos refolhos.
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por Daniel Fresnot: |
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A negro, E branco, I vermelho, U verde, O azul: vogais,
Direi algum dia vossos nascimentos ocultos:
A, negro espartilho peludo das moscas tumultos
rondando fedores cruéis demais,
Golfos de sombra; E, candura de vapor e de tenda,
Lanças de geleiras altivas, reis brancos, tremor de umbelas;
I, púrpura, sangue cuspido, riso dos lábios belos
Na cólera ou na embriaguez oferenda;
U, ciclos, vibrações divinas do verde mar,
Paz dos pastos semeados de animais, paz das rugas
Que a alquimia imprime na fronte a estudar;
O., supremo clarim pleno de estranhos agudos,
Silêncios cruzados por anjos e mundos:
- Ô o ômega, raio violeta de Seus Olhos! |
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Notas |
1. Arcanos da Poesia Surrealista, organizada por Jean Schuster e José Pierre, tradução de Antonio Houaiss, Editora Brasiliense, São Paulo, 1985.
2. Éditions du Seuil, Paris.
3. Dictionnaire général du Surréalisme et de ses environs , sob direção de Adam Biro e René Passeron, Office du Livre, Friburgo, 1982.
4. Gallimard, 2002, col. Folio.
5. Respectivamente, Editora Escrituras, São Paulo, 2001, e Ediciones Andrômeda, San José, Costa Rica, 2004.
6. No posfácio do já citado Surrealismo e Marxismo de Michel Löwy e em outros lugares. |
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