FLORIANO MARTINS:
Nas conversas que orientaram a montagem da presente antologia
consideramos uma presença marcante, em tua poética, do erotismo ligado a
deslocamentos. É como se estivéssemos diante de um alvo móvel. E mais:
não é o parceiro que se busca conquistar, mas sim o próprio movimento do
amor. E essa conquista, por sua vez, encontra-se atrelada ao mundo em
sua integridade, ou seja, não se deixa seduzir por qualquer tipo de
isolamento ou autismo. Eros ativo que se mistura à realidade buscando
desarrumá-la, redimensionando-a. Eros andarilho, participante de tudo,
envolvido com o que o Roberto Piva, na introdução ao livro Anotações
para um Apocalipse (1964), situa como “transitório sagrado”, quando diz
ainda de tua poesia que ela emerge “como numa fecundação obscena,
encantadoramente larvar e noturna”.
CLAUDIO WILLER: Não havia reparado nisso
antes, só agora, ao arrumar os poemas para publicação. Coincidiu com
releituras de Baudelaire e de A Dupla Chama de Octavio Paz, e tive esse
lampejo, essa percepção de que minha relação amorosa, ou, ao menos, meu
lirismo tem algo de diferente com relação à tradição lírica, e também ao
modo como é subvertida em Baudelaire e afirmada no surrealismo. A mulher
não é alguém idealizado, como no amor cortês, a ser conquistada, nem uma
assombração, como em alguns dos poemas de Baudelaire. É uma companheira,
indispensável para desarrumar ou desmontar o mundo - e a mim mesmo.
Fomos só nós dois, unidos como um véu flutuante, à espera de maiores
presságios - Assim lançamos nosso desafio, apenas os dois, e a
conivência dos sabres e medusas - Este só nós dois, de O Vértice do
Pântano, em Anotações para um Apocalipse, vai reaparecer, como um
refrão, em um poema escrito uns 20, 25 anos depois, Chegar lá. Com uma
diferença: o que era presságio, agora passa a ser relato de
acontecimentos vividos. Como eu digo, É tudo verdade, tudo aconteceu
mesmo. O amor é bom, digamos assim, porque transforma o mundo, nos
confunde com o mundo - permite sentir o mundo na temperatura do corpo,
como observo em Poética, ou é aquelas paisagens maravilhosas todas,
lagos, montanhas, paisagem de sol nascente, da série Poemas para ler em
voz alta, que ao mesmo tempo são o corpo da amada, nossos corpos, que
são outra coisa e por isso são mais eles mesmos, corpos, em É assim que
deve ser feito. Nos românticos, surreais, em Baudelaire na relação com
Madame Sabatier e Marie Daubrun, a mulher é alvo, ponto de chegada, eles
querem chegar lá, alcançá-la, encontrá-la - na minha poesia, a
companheira é mais um ponto de partida, eu já cheguei lá, e agora quero
acertar as contas com o mundo, como afirmo no poema Chegar lá, quero não
deixar pedra sobre pedra. Transar, ato subversivo por excelência… Acho
que é uma poesia bem contemporânea: a questão da conquista amorosa e da
posse já foi resolvida, e agora a questão é outra, é o que fazer daí em
diante. Com certeza (e nisso difiro de Breton e Paz), para mim não há
contradição entre paixão e libertinagem - realização da paixão é poder
fazer bastante libertinagem, instaurar a desordem, nem que seja
simbolicamente. É fundir o Marquês de Sade e Novalis (lembrando, Novalis
equiparou Sophie Von Kuhn, a quem havia perdido, que havia morrido, a
uma santa), ou superar a dicotomia entre os dois.
FM: O Alexandrian chega inclusive a traçar, em Les Libérateurs de
l’Amour, uma distinção entre homem e mulher dentro de uma perspectiva do
amor no Surrealismo, ao dizer que “a mulher é feita para ser encontrada
e o homem para a encontrar”, o que tanto confirma a idéia da mulher como
alvo quanto acentua um machismo onde a libertinagem só era concebida
como “um vagabundear a pena na escrita automática”. Evidente que a
paixão se contradiria se acaso não instaurasse a desordem, de maneira
que nunca entendi essa defesa de uma libertinagem apenas no plano do
sublime, quase uma espécie de retórica da libertinagem. Seguindo em
consonância com o que dizes, queria comentar sobre “as virtudes
proféticas da escrita espontânea”, remetendo-nos aqui ao Octavio Paz
que, já em um dos ensaios do Corriente Alterna (1967) afirmava que “una
de las pretensiones más irritantes de la poesía moderna es la de
presentarse como una visión, esto es, como un conocimiento de realidades
ocultas, invisibles”. Se o imaginário é uma preanunciação do real, como
não entender que conceitos como os de sonho, mistério, visão,
inspiração, possam sentar-se à mesa ao menos para tracejar um esboço das
realidades ocultas? Por outro lado, não compreendo quando separas poesia
de filosofia. Que o façam os filósofos, talvez, mas nunca um poeta, pois
os vasos comunicantes entre poesia e filosofia são por vezes tão
intensos que se confundem entre si. E já não se pode dizer que certo
ranço acadêmico tenha afastado a filosofia da poesia, pois hoje este
ranço se encontra bem mais acentuado na poesia que nos é contemporânea
do que na própria filosofia. Ou talvez se mereçam, afinal, hoje mais do
que nunca, e justamente por uma obtusa erradicação do empirismo, da
condição bruta, ingênua, que deveria ser parcela ativa na instauração da
desordem que ambas, poesia e filosofia, deveriam buscar.
CW: Exatamente. Não li esse livro do
Alexandrian, conheço outro, Histoire de la Philosophie Occulte. Será
que, de tanto aprofundar-se em ocultismo, adotou essa distinção radical,
que entre ocultistas é ontológica, entre os sexos, microcosmo de uma
polaridade universal, cósmica? A dualidade entre o que encontrado e o/a
encontrado/a não se sustenta. Já encontrei. E já fui, com certeza,
encontrado. E as duas coisas já coincidiram. Ora essa, a idéia da mulher
passiva, receptora – não, de jeito nenhum, o mundo seria então uma
chatice.
Precisava examinar, também, o que Octavio Paz diz em Corriente Alterna.
Ver que sentido ele dá a “irritante” – a quem a poesia profética irrita.
Li esse livro faz tempo. Em La Búsqueda del Comienzo, seu ensaio sobre
Breton, tem belas páginas sobre acaso objetivo.
No restante da tua pergunta, tens razão. E digo mais: há um excesso de
poesia inteligente hoje em dia. Prefiro algo mais visceral.
De certo modo, eu me detenho, ou me contenho diante da decodificação da
minha própria poesia. É claro que sou capaz de fazer isso, ler Claudio
Willer como se fosse um outro autor, e extrair sentido do texto. Em
2003, estava programada uma apresentação no Memorial da América Latina,
eu deveria ler poemas e falar, antes de sair de casa examinei um dos
meus poemas, aquele número 6 de Poemas para ler em voz alta, e me
perguntei: o que quer dizer, o que estou dizendo com isto, sejamos
modernos como o amor…? Foi uma dessas imagens que “batem na janela”,
como disse Breton – veio-me à cabeça e escrevi o resto do poema ao redor
dela. Nela há um paradoxo: o amor habitualmente é tido como eterno, e
não como “moderno”. E uma inversão de atributos, ou de sujeitos – nós é
que deveríamos ser ou que seríamos os modernos, não o amor. Além disso,
uma inversão de algo que Drummond havia dito, ironicamente, é claro, de
que não queria ser moderno, mas eterno. Aí então – durante essa
releitura enquanto me preparava para ir ao Memorial da América Latina –
eu me lembrei do que Baudelaire disse sobre modernidade – e com absoluta
certeza eu não estava pensando nisso na época em que escrevi esse poema
da série Poemas para ler em voz alta, estava então bem distante de
Baudelaire – como você sabe, para Baudelaire o que caracteriza a
modernidade é a mudança constante, é tudo sempre se transformar em outra
coisa. Lido a partir daí, o poema todo faz sentido: a imagem inicial,
seus olhos têm muitas cores/ que refletem o brilho de cada hora, ou
seja, eles sempre estão mudando. E a imagem final, sobre a nossa
crueldade – à luz dessa noção de modernidade, o poema torna-se terrível,
pois diz que o amor é algo que é e não é, algo que muda o tempo todo,
que vai mudar, passa, não permanece – em resumo, o amor não é uma coisa,
mas uma relação que existe em um contexto, aquele do encontro entre
pessoas, por sua vez mutantes. Mas ler poemas desse jeito,
interpretando-os, é algo que deveria ser feito pelos leitores, pela
crítica. Para isso é que existe ou que supostamente haveria crítica… Da
minha parte, só posso dizer que, interpretado desse modo, cada poema,
cada passagem de poema faz sentido. Sentidos. À tradicional observação
de que “não faz sentido”, responderia que tudo está saturado de sentido.
FM: La Búsqueda del Comienzo não é propriamente um livro, mas antes uma
seleta de textos sobre um mesmo tema. O ensaio sobre Breton, por
exemplo, pertence originalmente a este mesmo Corriente Alterna que acabo
de citar. No ensaio a que me refiro, “Conocimiento, drogas, inspiración”,
Paz diz coisas como: “El poeta moderno declara que habla en nombre
propio: sus visiones las saca de sí mismo. No deja de ser turbador que
la desaparición de las potencias divinas coincida con la aparición de
las drogas como donadoras de la visión poética.” […] “Baudelaire es uno
de los primeros que se inclina con ‘ánimo filosófico’, como él mismo
dice, sobre los fenómenos espirituales que engendra el uso de las
drogas.” […] “La tentación de las drogas, dice Baudelaire, es una
manifestación de nuestro amor por el infinito. La droga nos devuelve al
centro del universo, punto de intersección de todos los caminos y lugar
de reconciliación de todas las contradicciones.” É curioso, mas passa a
idéia de que sua irritação vem do fato de que a poesia moderna considera
uma relação íntima entre visão e droga, e que esta relação é fruto de
uma experiência própria a cada poeta. De qualquer maneira, eu queria
fazer uma observação aqui sobre o fato de teu lirismo divergir da
tradição lírica brasileira. No Piva, por exemplo, quase sempre o vemos
declarar suas afinidades no que diz respeito a essa tradição, embora ele
também divirja da mesma. Em que exatamente radica a tua divergência e
quais seriam então os pares identificáveis como eventuais cúmplices de
uma aventura poética?
CW: Ah, sim, lembrei-me. É um ensaio muito
bom, na seqüência do que ele escreveu sobre Henri Michaux. Ataca a
hipocrisia da nossa sociedade na questão das drogas. E repete o que já
dizia em El Arco y la Lira, sobre o poeta romântico como iluminado,
vidente, querendo uma poesia que substitua a religião no mundo
dessacralizado. Concordo. Isso do poeta-vidente, uma espécie de
misticismo pagão, aquilo que Norman Brown chamava de misticismo do
corpo, está no que escrevo, está em mim. Norman Brown é um pensador que
está um tanto esquecido – e que devia ser relido, principalmente agora,
nesse período supostamente pós-moderno, e que se seguiria a uma suposta
liberação sexual. Que nada. Até o misticismo do corpo, a relação pagã,
do paganismo subterrâneo, ainda há um longo caminho a percorrer. É um
caminho da transgressão.
Tradição lírica brasileira? Existe? Eu estava falando de uma tradição no
sentido mais amplo, que inclui trovadores e românticos. E não divirjo
propriamente. Apenas me diferencio. Vejo, permito-me ver algo de
diferente, de pessoal no que escrevo. Aquilo que já disse antes, poesia
como anarquia, amor também. Em meus poemas há metalinguagem o tempo
todo, ou freqüentemente. É por isso que havia perguntado antes, será que
não sou filósofo. Folheando ao acaso, em A Princípio, poema que certa
vez um leitor sensível classificou como mais beat, leio: …tempo
vitrificado/ em que não importava a hora/ entardecer meio da noite
madrugada/ acordava-se para algum ritual novo/ explorações pelos
arredores da cidade/ ou por regiões do corpo/ conjurações e posses –
observe como estou colocando no mesmo plano sexo, erotismo, percorrer a
cidade, e a própria poesia. Logo adiante: se quiserem saber/ todo poema
é participante/ a foda também é participante/ a paranóia é sagrada – a
palavra-chave aí ésagrada, e não participante, ou melhor, participante,
sim, mas no sentido de uma plenitude, de uma participação cósmica. Eu
faço deslocamentos sem perceber, troco palavras ao escrever rapidamente
– são erros criativos. No poema sobre o mar, Faz tempo que eu queria
dizer isso, há o seguinte: é preciso nos desnudarmos totalmente/ e
sabermos nos reconhecer/ pelo toque da pele/ como algo que termina e
recomeça/ dois poemas entrelaçados/ mordendo-se como a serpente mítica –
não deveriam ser dois poemas, são dois corpos – eu estava transando,
fazendo sexo durante as madrugadas de suor cúmplice estampado nos
lençóis. Confundi os dois planos, corpóreo e simbólico. Como gostei de
ter escrito isto – e como eu gostei de ter feito isso que o poema
relata.
Procuremos, porém, evitar uma leitura redutora, demasiado centrada em
mim, nas minhas próprias experiências, no que aconteceu comigo. Isso
seria redutor, comprometeria a polissemia ou a natureza dialógica da
escrita poética. O foco deve ser dirigido, não ao que fiz, ao que
aconteceu, e sim ao texto, ao que está escrito. Uma vez publicado o
livro, a relação passa a ser entre o poema e seu leitor. O que interessa
é quais cordas de sua sensibilidade o poema fará ressoarem. Enfim,
poesia não é um relato de experiências, ou não é apenas isso. É um
diálogo com a própria poesia. O que me diferencia é meu intertexto,
sugerido naquele bloco de citações, nomes de poetas, no início do poema
A princípio. |