Maria Estela Guedes – Claudio, você tem desempenhado papel relevante na difusão da obra de Herberto Helder no Brasil, e na galáxia, quando se trata de intervenções na Internet…
Claudio Willer –
Escrevi algo sobre Helder na revista agulha, por ocasião do lançamento de O Corpo o Luxo a Obra. E tenho levado poemas dele, de Poesia Toda e das duas edições brasileiras, O Corpo o Luxo a Obra (Iluminuras) e Ou o poema contínuo (Girafa), a oficinas literárias e cursos, lendo-os e comentando-os. Acho que aumentei o número de leitores brasileiros de Helder. Vários desses frequentadores de oficinas entendem que o contato com sua poesia foi decisiva para a própria criação literária, ampliando horizontes.
MEG – Esquece que, como editor da Agulha, com o Floriano Martins, dá espaço a que outros também falem dele na revista. Ora a Agulha, como a Cronópios, o TriploV, e La Otra, que está a preparar um dossiê sobre ele, são plataformas de enorme audiência no mundo lusófono e de língua castelhana. Mas avancemos, Claudio: você é especialista na análise da temática religiosa na poesia contemporânea, gostava que me dissesse o que pensa das relações entre Herberto Helder e Deus, patentes, por exemplo, no poema-frase-incompleta que abre o seu penúltimo livro, A faca não corta o fogo: “até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza”… O poeta assume frequentemente o papel do Demónio, considera demoníaca a poesia…
Claudio Willer –
Deus ou deuses?
O motivo de eu apreciar Helder é, em primeira instância, pela qualidade de suas imagens poéticas – no sentido surrealista de imagem, como aproximação de realidades distantes ou distintas (acho aristotélico discutir se Helder “é” ou “não é” surrealista – importa que proximidade com surrealismo contribui para lê-lo melhor, e que ele obviamente incorpora ou assimila de modo pessoal tanta coisa do surrealismo, como escrita e como atitude pessoal).
Há uma origem comum e consequente afinidade de poesia e xamanismo, poesia e magia, ritos tribais, expressão de mitos, bem examinada, entre outros, por Eliade, e por E. R. Dodds em Os Gregos e o Irracional: nessa obra, há um capítulo no qual esse estudioso argumenta que Orfeu foi um xamã.
Helder tem perfeita clareza dessa relação, mais evidente em obras que tem valor não só poético mas antropológico, como As Magias, alternando poetas contemporâneos e cantos tribais, inclusive glossolalias.
Helder luciferiano e matador de Deus, do Deus do monoteísmo, em continuidade com o Nerval de Anteros, o Baudelaire de Abel e Caim e todo o Lautréamont? E com o Mallarmé da crise de 1965-67, como bem examinado por Roberto Calasso em A Literatura e os Deuses. Helder, continuador e renovador de uma tradição, da rebelião romântica, ou tradição da ruptura.
MEG – Ultimamente dei-me conta de uma espécie de messianismo na obra dele, conduzido por uma questa do nome ou da palavra salvadores, incessantemente perseguidos. Como pensar este paradoxo de sermos, alguns de nós, poetas, os mais ateus e simultaneamente os mais religiosos e sacerdotais dos homens? Vou deixar em baixo um poema recente para exemplo parcial do assunto, caso queira comentá-lo.
CW -
Volto a mencionar Roberto Calasso em A Literatura e os Deuses. Mostra como os deuses – não Deus, mas os deuses, o mundo mítico, reprimidos pelo cristianismo – reaparecem na literatura.
Acho que cabe citar também Gershom Scholem, em Principais Correntes do Misticismo Judaico, a propósito de misticismo. Para esse notável estudioso, é quando “o abismo entre o humano e o divino é tornado um fato da consciência interior” (1) e se torna objeto de:
[...] uma investigação do segredo capaz de fechá-lo [a esse abismo], do caminho oculto que permite transpô-lo. Tenta reagrupar os fragmentos quebrados pelo cataclismo religioso, recuperar a antiga unidade que a religião destruiu, mas num novo plano, onde o mundo da mitologia e o da revelação se encontram na alma do homem. Destarte, a alma se transforma em seu cenário, e a trajetória da alma através da multiplicidade abismal das coisas em direção à realidade Divina, agora percebida como a unidade primordial de todas as coisas, se torna sua principal preocupação.(2)
Isso ocorreria, segundo Scholem, no estágio do desenvolvimento das religiões que corresponde à sua “forma clássica”, como “religião institucional”. Seu aparecimento [do misticismo] coincide com o que se poderia chamar de período romântico da religião, afirma. Supor tais períodos dificilmente se aplica às grandes religiões orientais; mas pode contribuir para a compreensão do próprio romantismo, não mais religioso, porém literário e filosófico, com sua atração por mitos arcaicos e suas tentativas de revivê-los.
Ainda segundo Scholem, misticismo corresponde à revivescência do pensamento mítico que precedeu as religiões institucionais ou normativas. Há, ainda, seus comentários em On Kabbalah and its Symbolism, sobre William Blake como representante do misticismo sem laços com qualquer autoridade religiosa, em companhia de Rimbaud e Whitman, também heréticos luciferianos; pois sua imaginação era estimulada por imagens tradicionais, ou da igreja católica oficial (Rimbaud) ou de origem hermética e espiritualista, subterrânea e esotérica (Blake). Scholem ainda distingue – a propósito de Blake, Rimbaud e Whitman – duas atitudes dos místicos, uma conservadora e outra revolucionária: uma atitude revolucionária é inevitável uma vez que o místico invalida o sentido literal das escrituras sagradas.
Helder, um místico do tipo revolucionário? Essas observações – e indagações – reforçam, penso, o que disse sobre ele ser continuador e ao mesmo tempo revitalizar uma tradição.
......Redivivo. E basta a luz do mundo movida ao toque no interruptor,
ou de lado
a lado negro, quando se é esquerdo,
o amargo e o canhestro à custa
de fôlego e lenta
bebedeira: o esforço de estar vivo –
e lunas e estelas: e as vozes magnificam pequenas
coisas das casas, e teias dos elementos
pelas janelas, teias
portas adentro: da água compacta no corpo das paredes,
do ar a circundar as zonas veementes dos utensílios
– e a música mirabilíssima que ninguém escuta:
o duro, duro nome da tua oficina de mão torta,
boca cheia de areia estrita, áspera cabeça,
tanto que só pensas:
se isto é música, ou condição de música, se isto é para estar redivivo,
então não percebo sequer o movimento, digamos,
da laranja
na fruteira, ou o movimento da luz na lâmpada,
ou
o movimento do sangue na garganta
impura – e menos ainda percebo o movimento que já sinto
no papel se se aproxima, por exemplo,
pelo tremor da textura
do caderno e da força da
esferográfica dolorosa, a palavra Deus saída pronta,
arrebatada aos limbos, como se diz que se arrebata
aos ferros, a poder de tenazes e martelos,
um objecto, vá lá, supremo:
uma chave, quer
se queira quer se não queira, mas
que não abre quase coisa alguma: que abre, a partir de como se está de rojo
um espaço em cada nome, e nesse espaço se possa
dançar, no abismo entre um quarto
e outro quarto da terra, dançar dentro do ar como para
o ar bater nas paredes, e as paredes
estremecerem com a água esmagada contra si própria –
e depois ninguém fala, e cada
coisa actua
sobre cada coisa, e tudo o que é visível abala
o território invisível.
Redivivo. E foi por essa mínima palavra que apareceu não
se sabe o quê que arrancou
à folha e à esferográfica canhota a poderosa superfície
de Deus, e assim é
que te encontraste redivivo, tu que tinhas morrido um momento antes,
apenas.
Herberto Helder, Ofício Cantante, p. 595-596