Quantas boas vias de acesso dos leitores brasileiros à
poesia de William Blake. Saiu mais uma tradução de O Casamento do Céu
e do Inferno, pela editora Hedra, por Ivo Barroso, que já havia
traduzido O Tigre (este poema, classificado como canônico por
Harold Bloom, também foi traduzido, entre outros, por José Paulo Paes,
Augusto de Campos, Paulo Vizzioli, Alberto Marsicano, e por Mário Alves
Coutinho e Leonardo Gonçalves). Voltou à circulação a edição de Blake
preparada por Paulo Vizzioli: Poesia e Prosa Selecionadas, agora
pela Nova Alexandria. É recente William Blake, O Casamento do Céu e
do Inferno e outros escritos, seleção e tradução de Alberto
Marsicano, pela L&PM Pocket; versão revista e ampliada de outro Blake
por Marsicano, na década de 1980. Continua em circulação O matrimônio
do Céu e do Inferno, O livro de Thel, por José Antônio Arantes, da
Iluminuras. Outra boa aproximação a Blake, através de Canções da
Inocência e da Experiência, por Mário Alves Coutinho e Leonardo
Gonçalves, pela Crisálida, de Belo Horizonte. E, pela Nephelibata, de
Santa Catarina, sairão traduções de
The book of Ahania,
The book of Los e
The song of Los
por Floriano Martins, em meados de 2009.
Há
exatos 200 anos, em 1809, Blake, precisando de dinheiro, fez uma
exposição de suas gravuras, incluindo textos ilustrados. Apenas um
crítico, do Spectator, visitou a mostra: escreveu que Blake devia
ser objeto de pena, pois era apenas um pobre louco. Gravações – o modo
escolhido por Blake para publicar, através de gravuras em cobre,
tratadas uma a uma, com ilustrações e os textos – e originais
permaneceram jogados, deteriorando-se, até sua descoberta por Dante
Gabriel Rossetti e Swimburne, meio século depois da sua morte (em 1827,
aos 70 anos), para terem a primeira edição realmente adequada em 1893,
graças aos cuidados de William Butler Yeats.
Dentre
essas edições de Balke – listei as mais recomendáveis – aquela de
Marsicano merece interesse por trazer amostras do que Alfred Kazin
(organizador do The Portable Blake da Penguin Books), chamou de
poemas proféticos, e Keines, que preparou a edição de sua obra
completa (Blake, Complete Writings, editado por Geoffrey Keynes,
Oxford University Press), chamou de poemas simbólicos: entre
outros, os extensos e torrenciais Milton e Jerusalem, e o
enorme Vala or The Four Zoas (com 120 páginas na edição
Keynes), que Blake não chegou a publicar; foi recuperado décadas após
sua morte. Esse repertório do Blake mais complexo, ou menos
imediatamente sedutor, será ampliado em breve, com a edição por Floriano
Martins, pela Nephelibata.
Por
algum tempo, houve estranheza diante da diferença, até contradição
aparente, entre o Blake tão claro e preciso de O Casamento do Céu e
do Inferno, e tão antológico, e não só pelo poema do tigre, das
Canções da Inocência e da Experiência, e uma escrita paroxística,
transbordante, dos poemas mais extensos. O juízo de valor, em favor das
obras mais reduzidas e concisas, contrário aos excessos daquelas mais
extensas, foi discutido por Alfred Kazin em The Portable Blake.
Da mesma época (década de 1940), o ensaio que inaugurou um novo patamar
da crítica blakeana (se não da ensaística literária em geral),
Fearful Symmetry – A Study of William Blake de Northrop Frye (Princeton
University Press). Mas neste, curiosamente, um viés oposto: empreendendo
uma tarefa ciclópica, a interpretação de textos como Vala or
The Four Zoas, põe algo de lado O Casamento do Céu e do Inferno.
Vê-o como sátira na tradição de Swift e Sterne: O Casamento do Céu e
do Inferno pertence à tradição da grande sátira.
Se os
poemas longos de Blake contribuíram para consolidar sua reputação de
louco, isso não impede sua decifração. Por exemplo, deste trecho de
Milton: [1]
Esta
é a Natureza do infinito:
Todas
as coisas possuem seus próprios Vórtices, e quando um navegante da
Eternidade
Passa
este Vórtice, percebe que ele turbilhonante gira para trás
E
penetra numa esfera que se engloba a si mesma como o sol, a lua, ou como
um firmamento de constelada magnitude
Entretanto prossegue em sua maravilhosa trajetória pela terra,
Ou
como forma humana, um amigo com o qual pode-se compactuar luminosamente
a existência.
O
olho humano, seu Vórtice abarcando, vislumbra o leste & o oeste
O
norte & o sul, com suas vastas legiões de estrelas
O sol
surgente e a lua no fulcro do horizonte
Os
seus milharais e vales de quinhentos alqueires
A
terra é uma planura infindável, e não como aparece
Ao
ignóbil transeunte confinado às sombras da lua.
O céu
é um Vórtice já há muito transpassado;
A
terra, um Vórtice ainda intocado pelos navegantes da Eternidade. [...]
Toda
fração de Tempo menor que um pulsar de artéria
Equivale a Seis Mil Anos.
Pois
neste Ciclo é criada a obra do Poeta, e nele os Grandes Eventos do Tempo
se iniciam e são concebidos
No
fulcro de um instante, Pulsação arterial.
O céu
é uma Tenda Eterna erguida pelos Filhos de Los;
E o
vasto Espaço que o Homem contempla em sua morada
Na
cobertura ou jardim no cimo de uma colina
De
vinte e cinco pés de altura, é seu Universo; [...]
Tal é
o espaço denominado Terra & tal sua dimensão
Enquanto essa falsa aparência que se apresenta ao racionalista
Como
um Globo rolando através da Vacuidade, é uma decepção de Ulro.
E
disto nem desconfiam o Telescópio ou o Microscópio;
Alteram os parâmetros dos Órgãos do Espectador, deixando intocados os
objetos;
Pois
cada Espaço maior que um Glóbulo vermelho de sangue Humano
É
visionário e foi pelo martelo de Los criado.
E
cada espaço menor que um Glóbulo de sangue estende-se
Ás
larguras da Eternidade, da qual esta terra
Vegetal não é senão a mera imagem.
O
Glóbulo vermelho é o insondável Sol por Los criado,
Para
mensurar o Tempo & o Espaço aos Mortais a cada manhã.
Compare-se com este conciso (e famoso) poema de seu cadernos de notas:
Num
grão de areia ver um mundo
Na
flor silvestre a celeste amplidão
Segura o infinito em sua mão
E a
eternidade num segundo.
Em uma
condensação, Blake proclamaria, em O Casamento do Céu e do Inferno,
que Um pensamento abarca a imensidão. A frase equivale a outra,
epígrafe dos beats e de experiências com alucinógenos depois de
inspirar o título de Huxley, As Portas da Percepção: Se as
portas da percepção se desvelassem, cada coisa apareceria ao homem como
é, infinita. Pois o homem se enclausurou a tal ponto que apenas consegue
enxergar através das estreitas frestas de sua gruta.
Nada a
estranhar na extensão temporal contida em um glóbulo de sangue, nos
patamares de tempo e espaço dos trechos aqui citados de Milton.
Alguém capaz de ver um mundo no grão de areia, para quem a
eternidade podia caber em um segundo, relatou, em obras como
Milton e Jerusalém, como eram o infinito e a eternidade.
Foi por
perceber isso que André Breton saudou a descoberta das “escrituras”
gnósticas de Nag Hammadi em um texto de 1949, Flagrant délit.
Declarando-se continuador de uma tradição esotérica na poesia cuja
origem estaria no gnosticismo, o surrealista indagou como foi possível a
tradição gnóstica conservar-se. Observou que isso não decorria
necessariamente da transmissão direta: Será preciso admitir que os
poetas sorvem, sem o saber, em um fundo comum a todos os homens,
singular pântano cheio de vida onde fermentam e se recompõem sem parar
os destroços e os restos das cosmogonias antigas, sem que os progressos
da ciência lhes provoquem uma mudança apreciável? E sugeriu [...]
um poder de absorção de ordem osmótica e para-sonambúlica dessas
concepções tidas, ao olhar racional, por aberrantes. [...] Nessa
floresta virgem do espírito, que margeia por todos os lados a região
onde o homem conseguiu erguer seus marcos indicadores, continuam a
rondar os animais e os monstros, pouco menos inquietantes do que em seu
papel apocalíptico. Ao mencionar os animais e os monstros, apenas
menos inquietantes do que em seu papel apocalíptico, encontrados
entre os destroços e os restos das cosmogonias antigas, Breton
lhes atribui valor oposto àquele conferido pelos racionalistas e
positivistas. Pelas mesmas razões, já na década de 1930, Georges
Bataille, o pensador da transgressão, já havia destacado o caráter
perturbador, pelo baixo materialismo, por trazer os fermentos
mais impuros, do gnosticismo.
A
mitologia pessoal de Blake poderia ser interpretada como um sistema de
metáforas para referir-se à opressão e à desigualdade; para atacar o
sombrio panorama oferecido por uma primeira fase da industrialização, da
implantação do mundo burguês, na Inglaterra. Seu monismo panteísta,
declarado em O Casamento do Céu e do Inferno, também seria
metáfora, porém da superação do status quo e da realização da
utopia: outra face, o reverso da moeda. Corroboram essa interpretação as
frases em tom triunfal do epílogo de O Casamento do Céu e do Inferno,
intitulado Uma Canção de Liberdade: O IMPÉRIO CAIU! E AGORA O
LEÃO & O LOBO TERÃO FIM!E
seu notório envolvimento com acontecimentos de seu tempo, evidente em
poemas como The French Revolution e América. Durante a
Revolução Francesa, provocador, ostentava o barrete vermelho dos
revolucionários.
Mas não
basta interpretá-lo como crítico que usava categorias teológicase
formulou mitologias na falta daquelas propriamente políticas. Conhecia o
repertório político corrente em sua época. As estranhas divindades e
cosmogonias não estão em sua poesia apenas pelo valor como alegorias.
Expunha mitos enquanto tais, como realidades reveladas. É o que fica
claro através de uma passagem como esta, de um de seus derradeiros
textos, A Vision of the Last Judgement: O Juízo Final não é
Fábula ou Alegoria, porém Visão. Fábula ou Alegoria são uma modalidade
totalmente distinta e inferior de Poesia. Visão ou Imaginação é uma
Representação do que Eternamente Existe, Real e Insubstituível. [...]
Fábula é alegoria, mas o que os Críticos chamam de A Fábula é a própria
visão. A Bíblia Hebraica e o Evangelho de Jesus não são Alegoria, porém
Eterna Visão ou Imaginação de Tudo que Existe.(em Complete
Writings de Blake, na edição Keynes – nas citações dessa edição, a
tradução é minha).
Poetas
preferem ser tomados por seu valor de face, em vez de serem
racionalizados. Aquilo de que Blake falou – Urizen, Orc, o vale de Thel,
Rintrah, os Zoas, Golgonooza, Palamobrom – era dado como real. Exigiu
que o levassem a sério, que o lessem como profeta visionário e não como
pensador abstrato.
Torna-se
inevitável projetar na leitura de Blake sua teoria de opostos, a
afirmação de que os contrários movem o mundo: portanto, movem a criação
poética. E juízos de valor como este, de O Casamento do Céu e do
Inferno: O homem que jamais muda sua opinião é como água
estagnada & engendra os répteis da mente. Entender e aceitar seus
desafios ao princípio lógico da identidade e não-contradição possibilita
examiná-lo como místico, visionário e sonhador, ou poeta do sonho.
Há
divergências na classificação de Blake como místico. Frye inicia a nota
final de Fearful Symmetry com uma advertência: A palavra
“místico” nunca trouxe nada senão confusão para o estudo de Blake.
Já um especialista em misticismo, Gershom Scholem, deu uma resposta
inequívoca: Blake representou o misticismo sem laços com qualquer
autoridade religiosa, em companhia de Rimbaud e Whitman, também
heréticos luciferianos; pois sua imaginação era estimulada por
imagens tradicionais, ou da igreja católica oficial (Rimbaud) ou de
origem hermética e espiritualista, subterrânea e esotérica (Blake).
[2]
Scholem
ainda distingue – a propósito de Blake, Rimbaud e Whitman – duas
atitudes dos místicos, uma conservadora e outra revolucionária: uma
atitude revolucionária é inevitável uma vez que o místico invalida o
sentido literal das escrituras sagradas. Místico revolucionário: por
isso, um contendor das religiões institucionais, do clero, frontalmente
atacado ao longo de toda a sua obra, como nesta passagem de O
Casamento do Céu e do Inferno:
Os
poetas da Antigüidade animaram todos os objetos sensíveis com Deuses ou
Gênios, nomeando-os e adornando-os com as propriedades dos bosques,
lagos. cidades, nações e tudo o que seus dilatados sentidos podiam
perceber.
Particularmente, estudaram o Gênio de cada cidade & país, colocando-o
sob a égide de sua deidade mental.
Até
que se formou um sistema, do qual alguns se aproveitaram e escravizaram
o vulgo, interpretando e abstraindo as deidades mentais de seus
respectivos objetos. Então surgiu o Clero;
Elegendo formas de culto dos mitos poéticos.
E
proclamando, por fim, que assim haviam ordenado os Deuses.
Os
homens então esqueceram que Todas as deidades residem em seus corações.
Vê-lo
como místico, e mais, como visionário, encontra respaldo entre outros
estudiosos de Blake; e em seu próprio testemunho. É um resumo de sua
poética esta passagem de O Casamento do Céu e do Inferno:
Os
profetas Isaías e Ezequiel jantavam comigo. Perguntei-lhes como se
atreviam a afirmar que Deus falava com eles; e se não achavam que isto
os tornava malditos & passíveis de perseguição. Isaías respondeu:
“Jamais pude ver ou ouvir Deus dentro de uma percepção orgânica e
finita; Meus sentidos descobriam o infinito em cada coisa, e como desde
então estivesse convicto & recebesse o sinal que a voz da indignação
sincera é a voz de Deus, alheio às conseqüências, escrevi.
Logo a
seguir, outra frase reveladora, em um dito atribuído a Ezequiel: A
filosofia do Oriente ensinou os princípios básicos da percepção humana.
Que
percepção e que visões e audições são essas? Fica evidente pelo trecho
citado que, para Blake, equivaliam-se a percepção de algo como
experiência subjetiva ou como fato objetivo, exterior ao sujeito. Podem
contribuir para a compreensão da poética visionária de Blake algumas
observações de Breton publicadas em Le méssage automatique. Nesse
texto de 1933, deixando de associar a escrita automática apenas ao
inconsciente freudiano, o surrealista citou Myers, o psicólogo
experimentalista que pesquisou imagens eidéticas, como os pós-efeitos
visuais (quando olhamos fixamente para uma fonte de luz, e esta,
alterada, permanece ao fecharmos os olhos). E concluiu com uma afirmação
ousada: Toda a experimentação em curso seria de natureza a demonstrar
que a percepção e a representação – que para o adulto ordinário parecem
opor-se de uma maneira tão radical – não devem ser tidos senão como
produtos da dissociação de uma faculdade única, original, da qual a
imagem eidética dá conta e da qual se reencontram traços entre os
primitivos e as crianças.
Aceita
essa argumentação, visões e alucinações ganham o estatuto de percepções
plenas: o visionário efetivamente vê; ou, no automatismo verbal, de fato
ouve. Breton exemplificou com Santa Tereza d’Ávila, ao ver sua cruz de
madeira transformar-se em crucifixo de pedras preciosas, e considerar
essa visão ao mesmo tempo imaginada e sensorial. O exemplo o levou a uma
tirada irônica: Tereza d’Ávila pode passar como alguém que comanda
essa linha na qual se situam os médiuns e os poetas. Infelizmente, ainda
não passa de uma santa.
Felizmente – adotando os critérios de Breton – Blake não foi apenas um
santo, porém um poeta. E alguém que teria endossado a afirmação
bretoniana de que percepção e representação são a mesma coisa, com o
mesmo estatuto de realidade ou o mesmo valor de verdade. Suas visões dos
profetas, do irmão falecido, e do restante, correspondiam à faculdade
única, original a que se referiria Breton: a superação da dicotomia
entre o mundo subjetivo e objetivo, comum aos médiuns e os poetas,
e aos místicos. E coerente, se interpretada desse modo, com o monismo de
Breton e com o Blake monista: não era o outro lado que se enxergava,
pois a separação entre natural e sobrenatural fora superada.
Ao
sustentar a realidade de suas visões, Blake formulou uma poética do
delírio. Considerá-lo louco equivale a depreciá-lo, e seria injusto, por
ignorar que Blake concluiu Jerusalém e The Everlasting Gospel
no mesmo ano de 1820: um poema exorbitante em matéria de simbolismo, que
pode ser classificado como delirante, e outro bem linear, pura
argumentação, sem nenhum personagem de sua mitologia particular. Em
The Everlasting Gospel, voltou a proclamar sua anti-ortodoxia; por
isso, a relativização dos ensinamentos evangélicos:
A Visão
do Cristo que tu vês
É a
maior inimiga da minha visão.
A tua
tem um grande nariz adunco como o teu,
A minha
tem um nariz redondo como o meu.
A tua é
a do Amigo da Humanidade;
A minha
fala em parábolas aos cegos:
A tua
ama o mesmo mundo que a minha odeia;
As
portas do teu céu são os portões do meu inferno.
Sócrates
ensinava o que Meletus
Detestava como a mais amarga Maldição de uma Nação,
E Caifás
era em sua própria Opinião
Um
benfeitor da Humanidade:
Ambos
lemos a Bíblia noite e dia,
Mas tu
lês negro onde eu leio branco.
Cada
parte do poema começa com uma pergunta:
Foi
Jesus gentil, ou deu ele
Algum
sinal de Gentileza? [...]
Foi
Jesus Humilde? ou deu ele
Quaisquer provas de Humildade? [...]
Foi
Jesus Casto? ou deu ele
Quaisquer Lições de Castidade? [...]
Ensinou
Jesus a dúvida? [...]
Foi
Jesus Nascido de uma Virgem Pura
De Alma
estreita & aparência recatada?
[3]
A
resposta é sempre negativa: apoiando-se nos evangelhos, mostra que Jesus
Cristo não foi gentil, nem humilde, nem casto, nem nascido de uma
virgem. Mas o que sobraria do ensinamento evangélico? Para Blake, apenas
o perdão: Não há uma Virtude Moral que Jesus Pregasse que Platão &
Cícero não houvessem Pregado antes dele; o que então Jesus Pregou?
Perdão dos Pecados.
Mas esse
perdão, argumentou Blake, sendo uma supressão ou esquecimento, equivale
à revogação da Lei mosaica e da idéia de pecado: Pois Virtudes Morais
todas começam/ Na Acusação de Pecado. Declarou o pecado contingente
a um código, e não ao Pecado Original. Em conseqüência dessa
interpretação de Jesus Cristo como supressor da repressão, o moralismo é
diabólico: Pois o que é Anticristo senão aqueles/ que contra
Pecadores fecham o Céu/ Com grades de Ferro.
Se tais
textos corrigem a idéia do Blake possesso, em surto, a recíproca,
normalizá-lo, também é redutora. Loucura e criação não são
incompatíveis: Hölderlin escreveu poemas importantes depois de
enlouquecer; e Gérard de Nerval teve crises e surtos que resultaram não
só nas experiências de efusão do sonho na vida real relatadas em
Aurélia, mas em sonetos de As Quimeras. O romântico
francês comentou, ironicamente: Recobrando o que os homens chamam de
razão, não deveria eu lamentar tê-la perdido?
Interessa a noção de efusão ou transbordamento do sonho de Nerval.
Evidentemente, uma coisa é a transcrição de um sonho, ou então o relato
de um delírio, e outra sua efusão, que pode resultar em uma epopéia como
Vala or The Four Zoas, com suas 120 páginas na edição Keynes, à
qual Blake deu o seguinte subtítulo: um SONHO de Nove Noites,
intitulando ainda cada uma das suas nove partes como Noite a primeira,
Noite a segunda, etc – reproduzindo a valorização romântica do
sonho, tão precursora do surrealismo.
Não só
essa epopéia, como os demais poemas extensos de Blake requerem leitura e
interpretação através do que se sabe sobre a “lógica” do sonho.
Especialmente sobre um dos mecanismos da formação de símbolos, o
deslocamento. No sonho, seria possível um enredo no qual Jesus Cristo
comparece, em sua condição de salvador, para tornar-se Lúcifer, e este
transformar-se em Jeová, que por sua vez é alguém que conhecemos, e logo
é um autor que lemos, e ainda algum personagem inteiramente novo,
enquanto também vão mudando a cena e as situações nas quais isso ocorre.
Há instabilidade dos símbolos: o mesmo símbolo pode significar muitas
coisas distintas, assim como vários símbolos significam a mesma coisa. A
instabilidade não é “ilógica”: tanto é que Frye, em Fearful Symmetry,
foi capaz de construir um diagrama, em forma de matriz, dando conta
dessas mutações em Vala or The Four Zoas. Mas isso não permite
dizer que esse poema não fosse delirante: delírios têm lógica; mas é uma
lógica própria. Nessa e em outras das obras de Blake, há, não só
polissemia, mas um universo que, desconhecendo os princípios lógicos da
identidade e não-contradição, é multidimensional. Assim como no sonho,
os símbolos flutuam em sua relação com o que significam. É seu
infinito.
Nesse
infinito, apenas a imaginação seria estável. Matriz da criação, equivale
à existência do Adam Cadmon, o homem pleno. Conforme a fala dos Sete
Anjos a Satã, em Milton:
A
Imaginação não é um Estado: é a própria Existência Humana.
Afeição
ou Amor tornam-se um Estado quando divididos da Imaginação.
A
Memória é um Estado sempre, & a Razão é um Estado
Criado
para ser Aniquilado e uma nova razão ser Criada.
Tudo o
que pode ser Criado pode ser Aniquilado: Formas não podem:
O
Carvalho é abatido pelo Machado, o Cordeiro cai pela Faca,
Mas suas
Formas Eternas Existem Para-sempre. Amem. Aleluia!
Ou, em
Jerusalem:
Não sei
de nenhuma outra Cristandade e de nenhum outro Evangelho a não ser a
liberdade de ambos, corpo & mente, para exercer as Divinas Artes da
Imaginação, Imaginação, o Mundo real & eterno do qual este Universo
Vegetal não passa de uma sombra fugidia, & no qual viveremos em nossos
Corpos Eternos ou Imaginativos quando estes Corpos Mortais Vegetais não
mais existirem. Os Apóstolos não conheciam nenhum outro Evangelho.
Há uma
evidente resposta ao dualismo nessa passagem: a liberdade é de ambos,
corpo & mente. Talvez se referisse às doutrinas platônicas ao
falar em sombra fugidia neste Universo Vegetal, caído. Mas
no centro não está mais o logos impessoal, porém a imaginação,
entendida do mesmo modo como a celebravam Coleridge e Wordsworth, bem
como Novalis e Baudelaire, que a chamou de rainha das faculdades:
uma faculdade evidentemente humana, mas também divina; ou então,
correspondente ao divino no humano, que em Blake é o plenamente humano.
Para os profetas gnósticos e apocalípticos da Antiguidade tardia, o
conhecimento, identificado à salvação, era intransitivo, absoluto; mas a
liberdade era transitiva: liberdade para sair do mundo e deixar de
existir como indivíduo. Para Blake, o conhecimento era intransitivo,
total, e também o era a liberdade.
Tanto em
sua poesia “simbólica” quanto em O Casamento do Céu e do Inferno,
o Paraíso é aqui: pode estar no grão de areia; porém apenas homens e
mulheres livres saberão enxergá-lo. E a salvação não é a saída do mundo,
mas sua restauração: o novo mundo, anunciado no final de Vala
or The Four Zoas:
Onde
está o Espectro da Profecia? onde o ilusório Fantasma?
Partiram: & Urthona se ergue dos arruinados Muros
Em toda
a sua força antiga para formar a dourada armadura da Ciência
Para a
Guerra intelectual. A guerra das espadas agora partiu,
As
escuras Religiões partiram & a doce Ciência reina.
Novo
mundo; e um mundo arcaico, primordial, no qual, como disse em O
Casamento do Céu e do Inferno, A altivez do pavão é a glória de
Deus. / A lascívia do bode é a dádiva de Deus. / A fúria
do leão é a sabedoria de Deus. / A nudez da mulher é a obra de
Deus. Pois tudo o que vive é Sagrado. Ou melhor, tudo o que
fosse espontâneo, livre do controle pela razão. Daí outra máxima famosa:
O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria. Em seu
universalismo místico e poético, Todos os homens são iguais, embora
infinitamente vários, Assim (e com a mesma infinita variedade) todos são
iguais no Gênio poético. No centro do universo de Blake, no lugar de
Deus está o homem. Não o homem mundano, porém o Antropos, equivalente ao
universo. Suas epopéias são relatos da perda e reconquista da plenitude.
Não buscou o conhecimento abstrato, porém a vida. Não aspirava à
salvação, porém à liberdade, entendendo-a como liberdade de criar, e não
só como a libertação do mundo dos santos e místicos. |