MARIA AZENHA
Vou fechar-me três meses em casa agora que está tudo assente
nada de socializações nada de doenças o país funciona bem e contente
não há pobres nem depressões nem turistas nem criminosos
as igrejas e os hotéis e os transportes estão cheios de anjos mansinhos
nada é banal nas conversas à porta não há luvas nem suicidas
não há fome nem desemprego nem cunhas nem recompensas para os vizinhos
a guerra é uma pomadinha que se coloca à noite para evitar olheiras
morre-se de vez e pronto já não é preciso a eutanásia da Melinha
o ar é cada vez mais puro e a água mais corrente e transparente
os pensamentos deslizam por decreto não há assaltos nem incêndios
os aeroportos estão sem gente e a chuva só cai no ministério do ambiente
não há galos mais educados do que os que cantam a horas certas
por exemplo os aviões não acordam ninguém
os clientes dormem no júlio de matos com a enxada de Cronos
toda a gente é feliz neste país nem o coronavírus tem teletrabalho
nem áreas de isolamento é de todos o mais democrático
e quanto a racismos ó lindinhos é ficção
há mais mundos para atingir a Amazónia
Vou fechar-me três meses em casa agora que está tudo assente
Recolho-me a dois metros de distância do globo
coloco a máscara no máximo deleite
e pronto.
Vivo no país perfeito.
TEMPOS DE INQUIETAÇÃO
Faz frio.
O vento não cessa de assobiar.
Nos vidros das janelas as sombras das árvores
— quase a primavera a chegar. —
E ando de um lado para outro
como numa gare.
Ontem, domingo, vi nas ruas da cidade
um homem de barbas brancas, deitado
numa pedra grande, junto ao parque.
Perdi-me alguns instantes e havia uma canção
da qual não podia separar-me.
— Faz frio. —
É uma canção que entra na gente.
E pronto.
Ando de um lado para outro.
O DITADOR
Agora todos sabem em que cadeira ele se senta.
Sua canção espera até que a sombra da terra
se vá embora.
Vestiu-se de anjo pendurado no planeta.
De coroa embelezada ao espelho
mostra o nome de George Orwell.
O pior da história é que agora é que todos se importam.
AMOR EM VISITA
Há muito, muito tempo, que minha mãe morreu.
Ensinava crianças a ler e a escrever.
Muito doce, meu pai, mesmo em tempos de cansaço
trazia bilhetes de comboio, aos sábados.
E eu aprendia a contar sem usar os dedos.
Era criança e era contente com as histórias
que, ao seu colo, inventava.
Pedia então a minha mãe que me ensinasse a fazer poemas.
Rogava um abraço a meu pai que nunca mais terminasse.
Um dia acabei por me calar e ficar em silêncio.
Sento-me agora ao piano e componho a Humanidade
com o “Amor em Visita” de Herberto Helder.
maria azenha