BENTO DOMINGUES, O.P.
É tempo de acabar com todas as guerras: as guerras contra a natureza e as que nos destroem mutuamente.
Há quem diga que têm proporcionado grandes avanços científicos e
tecnológicos. Parece que ninguém está interessado numa vacina contra a
guerra e ela existe: mudar de vida.
- Gostei muito, por várias razões, da entrevista a Ben Ferencz, o único procurador vivo do célebre tribunal de Nuremberga, publicada na Revista Expresso[i]. Quando participou nesse tribunal tinha 27 anos. Atingiu, agora, os 100, cheio de vigor, de humor e de esperança. Não resisto a deixar aqui, num breve apontamento, o eco deste testemunho.
Foi confiada a Ben Ferencz, pelo referido tribunal, a tarefa de investigar os crimes dos Esquadrões da Morte dedicados a procurar e matar todo o judeu que encontrassem – homem, mulher ou criança – e fazer o mesmo aos ciganos e a todos os inimigos do Reich.
Nesta entrevista, sem negar a importância do dever da memória, confessa que não quis ficar colado a esmiuçar o horror desse passado. Voltou-se para o futuro e dedicou a sua vida a lutar para erguer leis e tribunais, para que os crimes de guerra, crimes contra a humanidade, não possam ficar impunes.
Quem começa as guerras são pessoas e os crimes são cometidos por indivíduos que devem ser responsabilizados pelas suas acções. Quando foi procurador do tribunal de Nuremberga, o genocídio ainda não estava nos códigos. Usou esse termo, mas verificou que os nazis não podiam ser julgados por esse crime, enquanto tal, por falta de lei aplicável.
Não desistiu e, em 1948, a Convenção sobre Genocídio foi adoptada pelas Nações Unidas. Comenta: «é uma vergonha que os EUA tenham demorado 40 anos para assinarem essa Convenção. Só aconteceu em 1998». Desde 2002, existe o Tribunal Penal Internacional, mas os EUA ainda não o reconheceram!
Adianta, no entanto, que Trump devia ser julgado nesse tribunal. Este presidente dos EUA, no seu primeiro discurso, na ONU, atreveu-se a dizer acerca da Coreia do Norte: «se nos ameaçarem, destruir-vos-emos totalmente».
Como se atreve a ameaçar com a destruição um país inteiro e toda a sua população? Foi precisamente isso que os alemães fizeram com os judeus. Agora, ao levantar um muro nas fronteiras com o México, separa as mães dos seus próprios bebés! Não é isto um crime contra a humanidade?
Ben Ferencz luta por um mundo onde qualquer líder possa ser acusado pelo uso ilegal da força armada. Para ele, o presidente Eisenhower disse, em 1958, o essencial: «num sentido muito real, o mundo já não tem escolha entre a força e a lei. Para a civilização sobreviver temos de escolher o império da lei». Foi o lema da militância de Ben Ferencz: Law, not war – a lei, não a guerra!
A guerra não é um conceito abstracto. Os combatentes do autoproclamado Estado Islâmico têm direito a um julgamento justo. Se isso não for possível num tribunal local, dispomos, hoje, do Tribunal Penal Internacional. Como será possível levar a tribunal os criminosos islâmicos que estão, neste momento, a destruir o norte de Moçambique?
Ben Ferencz está casado com Gertrude há 70 anos e sente-se feliz: «nunca, mas nunca, tivemos uma briga». Um dos filhos contou que, ao jantar, o pai exigia sempre a resposta a esta bendita pergunta: hoje, que fiz eu pela humanidade? Bela pedagogia!
- A FAO repete e pode continuar a repetir que 851 milhões de pessoas passam fome e que, apenas, um por cento da população mundial detém mais riqueza do que os restantes 99%. Os negócios da guerra continuam a falar sempre mais alto do que os números deste escândalo. É sobretudo entre os pobres que são recrutados os soldados desse negócio, aumentando as vítimas da violência e da fome e engrossando o mundo dos deslocados.
Como diz Eduardo Galeano, as guerras sempre invocam motivos nobres: matam em nome da paz, em nome de Deus, em nome da civilização, em nome do progresso, em nome da democracia e, se nenhuma dessas mentiras não for suficiente, aí estão os grandes meios de comunicação dispostos a inventar novos inimigos imaginários, para justificar a transformação do mundo num grande manicómio, num imenso matadouro.
As armas exigem guerras e as guerras exigem armas e os cinco países, que têm poder de veto nas Nações Unidas, acabam por ser também os cinco principais produtores de armas.
Se, como escreveu Shakespeare, neste mundo, os loucos guiam os cegos, agora, quatro séculos passados, os senhores do mundo são loucos apaixonados pela morte.
Vamos continuar a acreditar que nascemos para o extermínio mútuo? Que o extermínio mútuo é o nosso destino?
Não será mais justo acreditar que nascemos para viver e ajudar a viver cada vez melhor? Não será esta a vocação do ser humano?
Por experiência própria, sei que só é possível viver e ajudar a viver, lutando contra a guerra.
Desde criança, vivi com narrativas da Primeira Guerra Mundial. Sofremos as consequências da guerra civil de Espanha e da Segunda Guerra Mundial. Conheci muitos dos presos políticos por causa das guerras coloniais. Vivi, depois da independência, as guerras civis em Moçambique e em Angola. Entrei no Peru, quando o Sendero Luminoso fez as grandes explosões em Lima. Vi o que era o pavor das FARC na Colômbia. Vivi no bairro de Pinochet no Chile. Conheci, de perto, testemunhas dos desaparecidos lançados ao mar, na Argentina. Conheci torturados do regime militar no Brasil e alguns refugiados em Portugal.
Quando, na Europa, se põe em causa o acolhimento das novas vítimas de novas e antigas guerras, se ainda não perdemos completamente a memória, devemos ter, pelo menos, um bocadinho de vergonha.
- Hoje, é o Domingo da Ascensão. É a festa de todos os equívocos. Nós não podemos viver fora das categorias do espaço e do tempo, mesmo para falar do que já não está sujeito a essas leis. A ressurreição e a ascensão de Cristo aos céus são, para os crentes, realidades infiguráveis, mas delas não se pode falar sem o jogo de linguagem que nos faça saltar do visível para o invisível, da superfície do real para a sua profundidade, na simulação da continuidade com a nossa experiência.
Conta-se, nos Actos dos Apóstolos, que os discípulos de Jesus continuavam cegos pelo poder e interrogavam o Mestre: Senhor, é agora que vais restaurar o Reino de Israel?[ii].
Jesus sentiu que, enquanto eles não fossem transformados pelo Espírito que O transformou, as explicações já não adiantavam muito e, diante deles, subiu aos céus escondido numa nuvem.
Se a narrativa ficasse por aqui, se ela se esgotasse nessa figuração, teríamos de dizer que Jesus se evadiu do nosso mundo e está sentado à direita de Deus Pai. Não é assim. É do próprio céu que os discípulos recebem o aviso que Cristo não quer alienados perdidos nas nuvens. Há muito que fazer para transformar este nosso mundo num lugar em que seja bom viver e ajudar a viver cada vez melhor. S. João, muito mais tarde, colocará na boca de Jesus: Vim para que tenham vida e vida em abundância[iii].
É tempo de acabar com todas as guerras: as guerras contra a natureza e as que nos destroem mutuamente. Há quem diga que têm proporcionado grandes avanços científicos e tecnológicos. Parece que ninguém está interessado numa vacina contra a guerra e ela existe: mudar de vida.
in Público, 24.05.2020
https://www.publico.pt/2020/05/24/opiniao/opiniao/viver-ajudar-viver-1917578