FREI BENTO DOMINGUES O.P.
1.
Para o filósofo L. Wittgenstein, acreditar em Deus significa reconhecer que a vida tem sentido. Hoje, vivemos obcecados pelo futuro que a ascensão da inteligência artificial e a biotecnologia nos desenham. O filósofo tem uma observação que, segundo me parece, conserva toda a pertinência: «sentimos que, mesmo que todas as possíveis questões científicas obtivessem resposta, os nossos problemas vitais não teriam ainda sido sequer tocados».
Concelebro, muitas vezes, a Eucaristia. Para mim, não é uma rotina devocional nem uma obrigação. Implica uma comunidade agradecida por acreditar que a morte não é a última palavra sobre o itinerário de uma existência humana. Essa convicção não é da ordem da razão, não é a conclusão de qualquer elaboração científica. Muitos chamam-lhe “fé na ressurreição”. São tantos os equívocos acerca do uso dessa palavra que não insisto muito nela.
Jesus Cristo teve um percurso breve, atribulado e que terminou cravado numa cruz, a morte mais cruel da antiguidade. Não morreu, foi assassinado mediante um julgamento iníquo. Sentiu-se abandonado pelo céu e pela terra e, sobretudo, sentiu o fracasso da sua luta. No entanto, teve folgo para perdoar aos autores da sua morte e para prometer o paraíso a um companheiro de infortúnio. Foi morto, mas, se estivermos atentos às narrativas da Paixão, a sua morte ia carregada com a vida de todos, com esperança para os próprios inimigos. Queixando-se do abandono de Deus, foi nas Suas mãos que lhe entregou o seu destino. A esperança contra toda a esperança foi o seu último suspiro.
Depois, as mulheres vieram dizer, não apenas que ele não estava no sepulcro, onde fora colocado, mas que as convocou para anunciar aos discípulos que estava vivo e era preciso continuar o caminho por ele aberto. As mulheres estão na origem do movimento cristão. São elas as pregadoras do Evangelho na sua novidade contra a morte.
Frei José Augusto Mourão escreveu um belo poema para uma música do Convento de La Tourette, o célebre convento de Corbusier. É cantado muitas vezes na minha comunidade dominicana: «…Ao pé de Deus hei-de sempre viver/ com Deus cheguei e com ele vou partir»[ii].
2.
Quando, mais tarde, foram escritos os textos do Novo Testamento, aparecem neles palavras extraordinárias atribuídas ao próprio Jesus: «Aquele que quiser salvar a sua vida há-de perdê-la, mas aquele que perder a sua vida por causa de mim e do evangelho há-de salvá-la»[iii].
Ser discípulo de Cristo é empregar todas as energias para continuar a aventura da transformação da vida que a morte parece derrotar. Quem procura centrar a sua vida em si mesmo, nos seus projectos de êxito pessoal, muitas vezes à custa dos pobres, está perdido. Em todas as épocas e circunstâncias, o que caracteriza o cristão autêntico é cuidar de quem não pode cuidar de si. A história está carregada de figuras que gastaram as suas energias para que os outros pudessem viver com dignidade. O Papa Francisco veio relançar a criatividade do movimento das primeiras gerações. Os cépticos dizem que é um esforço perdido, pois a Igreja está morta na opinião pública por causa dos escândalos divulgados, dia a dia, na comunicação social.
O importante não é saber se o Papa vai vencer ou vai ser derrotado, mas se vamos ter ou não quem se apaixone pela paixão do Nazareno.
3.
Houve muitas épocas nas quais se procurou exaltar o papel histórico da Igreja. Não é difícil fazer uma lista enorme dos seus contributos para o bem da humanidade. Tarefa inútil. Outros contam o rol de crimes que ela cometeu contra os direitos humanos, no seu interior e contra povos que dizia evangelizar.
Quando celebro a Eucaristia é para dar graças por toda a bondade do mundo e para pedir perdão pelos crimes acumulados ao longo dos séculos. Mas é, sobretudo, para reerguer a figura do Ressuscitado, o testemunho de que vale a pena, contra ventos e marés, acreditar na vida de todas as épocas da história. Uma vez, Jesus sentiu que os seus discípulos, não só procuravam honra e glória, como punham a sua esperança nos êxitos que iam conseguindo, em nome do próprio Nazareno. Este, porém, advertiu-os: «Não vos alegreis porque os espíritos se submetem a vós; alegrai-vos antes porque os vossos nomes estão inscritos nos céus»[iv].
Para não profanar o nome de Deus (Iavé), os judeus usavam outras expressões de substituição. Daí falar-se de céu, de reino dos céus, que a ignorância confundiu com espaços astrais ou abstracções prometidas aos pobres. Quando Jesus declara alegrai-vos porque os vossos nomes estão inscritos nos céus, diz: a vossa vida está inscrita no coração de Deus e ninguém vos poderá arrancar desse infinito amor. Isto é tão verdade que o narrador acrescenta que o próprio Jesus se sentiu comovido, no Espírito Santo, pelo que tinha dito. Tanta interpretação e reinterpretação das Escrituras, por rabinos bem letrados, tinham ocultado o coração da realidade divina e da nossa esperança: somos amados e para sempre. Não por causa dos nossos méritos, mas por Deus ser quem é: pura expansão da gratuidade do amor. Finalmente, as artimanhas desses pretensiosos inteligentes e bem informados das Escrituras foram desmascaradas. Não se coíbe de ser enfático perante os discípulos: estamos a vencer séculos de ignorância.
Quando alguém morre, seja sepultado, seja cremado, a maneira de falar é horrorosa: enterrou ou cremou o pai, a mãe, o filho, o irmão, etc.. Se isso fosse verdade, era um caso de polícia. Aquilo que é enterrado ou cremado não é a pessoa, não é o corpo, são os restos mortais. Haverá muitas interpretações sobre este facto, mas nos cemitérios só existem as pessoas que os visitam. Pergunta-se: e as pessoas onde estão? S. Paulo responde com palavras de um gentio, anterior a Cristo, «é na divindade que temos a vida, o movimento e o ser»[v]. A fé cristã diz-nos que as pessoas, que já não vemos, andam por onde sempre andaram, estão onde sempre estiveram, vivem onde sempre viveram, em Deus. Dizer em Deus é dizer que são nossa companhia, que participam nos cuidados de Deus por nós e por todo o universo.
Concelebrei a Eucaristia do funeral do Frei Bernardo Domingues. É meu irmão de sangue e da Ordem dos Pregadores. Quando ele fez 80 anos, D. Manuel Clemente era Bispo do Porto. Escreveu uma síntese luminosa da vida do meu irmão: Os anos que o Frei Bernardo viveu, multiplicam-se nas vidas dos outros que ele ajudou a viver. São tantos, que só em Deus se podem contar e cantar.
Foram alguns amigos que juntaram meios, para ele viver mais 8 anos, quando já estava sob a sentença de morte.
in Público, 03.03.2019
https://www.publico.pt/2019/03/03/sociedade/opiniao/vita-mutatur-non-tollitur-1-1863757#gs.iEO7rVgq
[i] Vita mutatur non tollitur – A vida é mudada, não é suprimida (Prefácio da Missa)
[ii] Não pode a morte reter-me na cruz
[iii] Mc 8, 35
[iv] Lc 10, 17-24
[v] Act 17, 28