Vislumbres de um Sol d’Inverno

 

JOÃO PEREIRA DE MATOS


1.

O Poço

Aqui estou, olhando mais uma vez para o intenso negrume deste poço sem fundo. Fascina-me. Venho aqui muitas vezes para contemplar essa escuridão total que parece subir e contaminar o próprio ar, atraindo a luz, engolindo-a inteira, roubando a sua hialina claridade. Atiro pedrinhas só para as ver desaparecerem para nunca mais, pois nunca as ouvi embater no solo e tenho para mim que este poço não termina nunca. Entendamos-nos, houve um tempo, em que eu, imbuído de uma certa ingenuidade científica, tentei determinar com rigor qual a exacta profundidade deste abismo e todos os resultados que obtive foram inconclusivos. Primeiro, usei de meios rudimentares mas eficientes — um peso atado a um fio — mas não logrei encontrar meada suficientemente longa ainda que, juntando vários segmentos extensíssimos, tivesse obtido uma sonda com vários quilómetros. Depois, adquiri meios muito mais sofisticados que julgava eficazes, porém também eles se mostraram inúteis: ultra-sons e doppler, até um medidor laser que, em teoria pode determinar a distância da Terra à Lua, mas não a profundidade deste poço. Por fim desisti. Para quê este afã de obter uma certeza métrica quando o poço aí está, numa serena e quase imperturbável quietude. Ouviram bem, há, por vezes, movimento nessa escuridão de lonjura na forma de uns reflexos prateados que parecem ser escamas e um som de asas possantes e lentas, fazendo-me especular se o poço não é habitado e que essas criaturas enigmáticas têm tanta curiosidade para saber o que está cá fora como eu de conhecer quem nele vive. Se fosse mais novo e mais ágil e mais afoito talvez ainda pensasse em tentar uma expedição descendente, munido de escafandro, oxigénio e uma grua. Assim, resignei-me a vir para aqui contemplá-lo, pensar na vida e, de vez em quando, atirar as tais pedrinhas mudas para esta imensidão. No entanto, o poço chama-me, conheci-o toda a minha vida — pois descobri-o quando criança — e desde o primeiro momento tem exercido a sua sedução misteriosa, uma vertigem de abismo, promessa de emoção derradeira antes do fim, se fim houver, se chão tiver, se o fundo se puder alcançar e como, cada vez, com o passar dos anos, tenha menos a perder, sinto nos ossos e na víscera que breve chegará o momento do salto, do mergulho terminal nessa vastidão vertical e saberei, talvez, o que esconde, até onde vai ou, porventura, morrerei, de velho, em plena queda.

 

2.

Luftmensch

Ao entrar naquela escura habitação sentia-se logo a tensão que pairava no ar, densa, palpável e amarga.

Pelo meio-dia, as equipas de resgate chegaram, ainda com os objetos que estavam ali, para mostrar o que tinham encontrado e adiantarem as listas aos proprietários.

O carro da vítima, que tinha entre três a cinco familiares e o condutor, foi encaminhado para o depósito. Foi durante a manhã, recuperado logo depois, em hora de almoço, com a marcação normal, devido às mensagens de solidariedade e à necessidade de ulterior investigação.

A GNR, a Polícia Judiciária e a Polícia Marítima estão a investigar a estrada, o condutor do veículo, as vítimas e a ameaça dos pescadores que a morte acabou por levar.

Ao CM, fonte da GNR confirmou que já decorre, esta Segunda-Feira, uma investigação.

Um dos pontos de preocupação dos pescadores e dos investigadores que estiveram a tentar encontrar a vítima é que os destroços estavam suspensos no ar, em massa, e que não se encontravam por terra junto do camião que embateu com a viatura.

Não se sabe, ainda, o que aconteceu no local.

No local, as equipas de rescaldo receberam acesas mensagens de solidariedade. «Mas sempre eles [as vítimas] demonstraram extrema desorientação, temos disso a perfeita noção», disse um dos agentes que estavam no local.

 

PORMENORES

Cerca de 30 pescadores:

Mais de 30 pescadores (TELEX) foram assistidos, duas pessoas ficaram feridas com gravidade e outras ficaram com lesões. O CM tentou, sem sucesso, estabelecer contacto com os feridos que se encontravam dentro da mancha de escuridão.

Autópsia

O corpo de Diana Pinto deverá ser autopsiado, já que este é um caso de emergência que enfrenta a Polícia Marítima e a GNR.

Pedro Silva era o condutor do carro.

O homem, que é a vítima do acidente, foi encontrado por um outro homem que se apercebeu do embate da viatura e ligou às equipas de socorro.

A Av. da Alegria está mais parecida com uma mancha de escuridão.

Já o automóvel foi retirado da mancha de escuridão e os dois aviões que ali se encontravam já foram abandonados. A Av. da Alegria está em grande parte mais parecida com essa escuridão porque a mancha não tem parado de aumentar.

Mais três pescadores mortos.

A família das vítimas mortais tem seis filhos que estavam junto a si, mas que foram resgatados por ajuda dos colegas.

Possam, assim, sobreviver.

Após o acidente, uma das pessoas que sofreu ferimentos foi transportada de ambulância para o hospital de Portimão, mas não conseguiu resistir às quedas depois de apresentar sinais agudos de imponderabilidade. Um outro pescador teve alta médica do hospital de Portimão.

 

3.

O Achado

 

Como são belos estes jardins, um passeio far-me-ia bem, poderia, por fim, dissipar esta sensação de um stress opressivo, de catástrofe iminente.

Mas, eu nunca iria dar aquele passeio.

Como foi, no final, aquela que mais me irritou ao avançar pelo meu gabinete com o papel daquela convocação.

Foi então que percebi que, tendo sido chamada à Comissão de Procuradores do Ministério Público, podia não seguir para o novo organismo, o que me associou às «vítimas» encontradas.

Para além da carta que tinha recebido da Paula, deixei também uma que fosse o «papel-bomba» para as estruturas dos media, conforme exemplo que forneci também ao Sérgio Costa, o exemplo que lembra a sua defesa, ajudado pelos outros do seu lado.

A maior alegada erosão da qualidade, a da transparência, foi a de não adoptar com sinceridade e profundidade pela Ordem dos Advogados da verdade científica, em contraste com o disponibilizar de uma defesa credível dada a gravidade do achado, estendido, em caso de necessidade, ao Ministério Público.

É importante não falar de questões sobre as pessoas na base de um juridismo que vai proteger o Estado e a sociedade, além de combater as violações ao direito do uso de informação e de informação privilegiada.

Tratam-se de valores morais, uma vez que defendem os interesses dos cidadãos, caso estejam em causa a estabilidade social e a própria Civilização tal como a concebemos.

Isto é, aliás, o que me prejudica na Comissão, que eu, desesperada por me retirar, tive de pedir a Cristiane Soares, de quem sou amiga, para poder sair daquela comissão.

Acabei por deixar o Conselho de Administração do Museu Nacional de Arqueologia e o cargo de consultora de Arqueologia da Autonomous Galiza e, ainda assim, não ficaram satisfeitos.

Na verdade o assunto era maior do que eu e do que a Comissão. Os vestígio arqueológicos não deixavam a menor dúvida: os deuses estiveram entre nós e aqui morreram, numa batalha fratricida e nada trivial.

 

4.

Sobrelotada

 

Antigo artífice, William Shakespeare, pode ser visto no Colosso de Prata. Uma das maiores salas do país. Fui ao Colosso para ter um encontro com um belo trabalho de Jean-Jacques Lebel, que faz parte dessa realidade maior da cultura portuguesa.

Ontem, entre o meu espaço público (‘Xoié’) e o Colosso, passei pela cidade e deixei-me maravilhar pelo sucesso dos mais de mil milhões de visitantes que fazem parte desta realidade, pessoas que sabem como apreciar as melhores músicas e ter sido parte da chamada «maioria das populações portuguesas» que, na verdade, nos enche da sua capacidade para a arte e que deixou sem palavras o Destino.

Louletano tem, assim, um local envolvente para certas conversas e o tempo parece estar a dar-me aquilo que quero, mas não fui feliz por estar à frente da ruína do bar ‘Nóos’, um templo de interior, e com tanta arte que é um local de porte para desfrutar de um passeio pela antiga vida da cidade, ademais, convidando um amigo erudito, o físico Jorge Vasconcelos (foto).

 

5.

The Lighthouse

 

One day João Maria came home to find that Lázaro, the servant, had died, and the man he was staying with, whom he’d known for nearly twenty years, was now taking care of him. “But I would like to go to the lighthouse,” João said to the man, looking at his stiff feet, and the white socks and dark stockings. “Sure, come,” said the man, but it wasn’t easy. First, João had to walk ten paces, then he had to lift up one foot to put it in a crutch. After that, to put his leg in the shoe, he had to roll it around, and then, when it was in, the other leg had to be raised too. This was nearly impossible, but the man did it. After he’d gotten João into the high chair, it was then that João found the unthinkable—the shoe had been too small. The man who’d been with him for so many years was no longer able to hold his weight, and João had to lean on his arm to walk. He had to bend and stretch to get himself into the chair. When he got to the foot of the lighthouse, which overlooked the bay of Bonito, he told the man he was leaving. He had to use the crutch for a while, and the man held onto his leg so he wouldn’t fall out. He felt terrified.

“Take care of yourself,” the man said, but he had forgotten to tie the bedsheet to the rail, and when he turned around he was on the ground. João Maria climbed back into the high chair and, with the same effort as before, raised himself to his feet. The man took the crutch from his arm and helped him to put his other foot in a shoe. Then they both climbed down the tower. It had grown dark. They began their way back on the walkway.

 

6.

Veredas

 

A atmosfera é má, o temor a ajudar, capaz de vir a perder alguém, ainda que de carácter resoluto.

Já o cão da entrada, que está sempre, frenético, a correr entre cá e lá, parece um ciclista a treinar, sempre a perder o fôlego, com os bofes de fora e, pior, dir-se-ia  que a todo o momento irá desfalecer ou rebentar.

Vivi e morri em Macau, em caminhos anteriores, mas é uma mancha no meu passado o que mais me afectou, porque não resolver certos assuntos antes da morte é uma forma de carregar a culpa, uma falta, não me deixando perdoar-me.

Devia também ter sido diferente, aquele dia em que morri. Vi ainda aumentar a chuva, e não senti nada, fiquei apenas com a sensação de perder uma manhã, não foi apenas a última, foi um dia de tristeza. No entanto, aqui chegado, ainda não consegui ver o meu pai.

Por último, o empresário mais nosso amigo, que teve uma menina na casa, chamada Michelle, que também morreu, que me ligou enquanto estava na escola, que me ajudou enquanto foi viva e que me veio ajudar, de novo, a trilhar estes estranhos caminhos da morte.

 

7.

Pequeno Irmão

 

Tudo o que se diga ser humano, tem o termo da felicidade.

Há tempos que esta ideia é o meu único apoio e ninguém consegue chegar aos pés da sua felicidade, já que a vida e o Destino são irónicos, já não existe mais espaço do que o mais alto, no coração.

Salvam-me as asas e a seda que enchem a minha casa.

A pena é sempre fazer o mesmo, só se deve estar em sossego, sempre envolto num momento que seja o único.

Talvez aquele que não tem apego, ao ir em frente, esteja a dar o exemplo.

Não se consegue ir de um dia para o outro e depois ir para o centro, isto é, para o sonho, para a meditação, para a paz interior, mas quando quiser morrer, vou morrer, e sempre a lutar.

Após uma vida em pé, preciso de um percurso linear, de ir de um lugar ao outro para estar atento ao meu pequeno irmão, porque para tão pequeno irmão a preocupação é desmedida.

Salva-me o amor, e não vou assim desfazer todo o cuidado que tenho com o pequeno irmão.

É um sentimento que consegue ser obtido, ainda em vida, com a terceira sombra.

Por isso, quando o desespero se aproxima, pego nas asas e saio pela janela, em voo limpo, passo pelas casas, pelos seus telhados, rasgo o céu até ultrapassar as nuvens.


João Pereira de Matos