Vinte e sete poemas de Manoel Tavares Rodrigues-Leal

 

LUÍS DE BARREIROS TAVARES (Org.)


Vinte e sete poemas inéditos (1959 a 2012) – Manoel Tavares Rodrigues-Leal

Reúne-se aqui um conjunto de poemas belíssimos, onde a praia, o mar, a mulher, a palavra, o amor e a atmosfera dos espaços, são temas predominantes. Poemas de 1959 a 2012 (53 anos). Manoel T. R.-Leal (1941-2016).

“O poeta é um animal longo desde a infância” Luiza Neto Jorge, no caderno Zona Azul, que Manoel Leal lhe dedica. Humilde homenagem ao seu talento quando da sua morte precoce (1989), com 49 anos.

 

Manoel T. R.-Leal, finais de 70-princípios de 80

 

1959

I

O mar de Espinho

E o mar de Espinho, na sua bravura,

Atraiçoa-me e perturba-me no imo do ser!

Aquele mar que nas procelas urra

E destroça o barco e o pescador que não quer morrer!

A crista das suas ondas céleres, alvejo,

Argêntea, luarenta, da cor pura dos céus!

E parece-me ver nela a boca que beijo,

O rosto da que amei outrora, por entre os escarcéus!

E as ondas quebram-se fragorosamente

Nos rochedos, na praia amarelada e adusta!

E eu ardo em febre, sinto um tremor algente,

Desespero-me, à laia de quem se frusta!

 

1959 – folha solta

Manuscrito do poema I

 

1960

II

Lusco-fusco

Teu lindo sorriso,

Vi-o numa tarde nevoenta,

Como miragem!

Vi-o esbater-se, isso

Numa oscilação lenta,

Como se partisse em viagem!

 

Lx. 11/11/960 – folha solta


1962

III

Esta paisagem desconhecida

Que me assedia

Em desvario,

Talvez seja imagem,

Esboço de uma vida preciosa de

Que há tanto aspiro!

 

Lx. 29/3/62 – folha solta

 

Manuscrito do poema III

 

1964

IV

Cidade solitária,

multidão anónima

de prédios e pessoas,

como sóis a escorrerem

pelos contornos indecisos…

 

Mas nada se parece,

mesmo assim,

com a virulência do sol

que arde em mim!

 

1964 – folha solta (À querida Isabel)


1965

V

O tempo não morreu

Com os meus pés solitários

Pisando areias nuas

 

Lx. 28/11/965 – folha solta

Manuscrito do poema V

 

1967

VI

Amor

Secreta respiração mais simples

da palavra mais evidente

 

Lx. 5-4-67 – bloco (caderno) sem titulo


VII

 

Em rotação

                pelo dobrar das paredes

ao compasso dos vidros reflexos ruídos

                 pela praça circular

o sol cai só reflecte

                 mede o cansaço definitivo

das coisas só de se aventurarem

 

Lx. 14-7-1967 – bloco (caderno) sem título


VIII

 

I – Aos meus olhos definitivos

o gume do espelho doendo

ao invés trágica ou comprida talvez

a rua penetra directa pela janela

no fio dum pedaço de lua

 

II – Caracteres são dedos pois

descrevendo solitários ou frios

na lisura dum papel

 

III – São movimento cabelos a dois

Corpos deitados

não noite resolvida

mas sede dividida

e dual

 

Lx. 16-7-1967 – bloco (caderno) sem título


1968-75

IX

Espalham-se os elos da pele em espelhos paralelos

o sabor da boca abre-se em antigas areias

os olhos são elos soltos           subúrbios de loiros cabelos

ilhas ausentes em busca de invisíveis bocas em visita

.

os dedos soçobram na obra de vidros      subsidiárias vozes atrozes 

solitárias partículas de tempo prenhe      de tardes interditas    cópulas

halos de olhares onde se ocultam das horas      escolhos pólen

.

cabelos corpos olheiras insones brevíssimos hálitos hábitos hirtos

olhares acolhem-se em ângulos de bocas, colheres, céleres linhas roupas

 

(os espelhos paralelos amanhecem     rubras bocas célebres bêbedas)

*

(à Maria de São Pedro) —Duas datas sem indicar revisão –  Lx. 1–10–68 (?) | Lx. 12–10–75 – caderno Ensaio de Ausência

 

Manuscrito do poema IX

 

1971

X

Volta o Verão: de novo flui a luz

o azul essencial

 

Volta o Verão: de novo flui

o veludo da luz

 

  1. 1971 – caderno sem título

1976

XI

Oh recta voz que ao silêncio se reúne…

 

c 5 de 76 Poemana


XII

Meu gesto… incompleto.

 

c 5 de 76 Poemana

Manuscrito do poema XII

 

1977

XIII

Elogio uma antiga e longínqua rapariga

que anunciava as noites com sal, saliva e néon nocturno.

 

Que distância, meu Deus, irrecusável…, e que umbigo.

Oh elo, a ela, vela ainda navegando, me liga…

 

Lx. Cintra – 10-2-77 – 9-3-77 – caderno Do Ócio e Meditação em Cintra


XIV

 

Em a berma da beleza, existe o paraíso.

 

Como a vã palavra ouvida, olvida: distância, isso.

 

Alheio estar, e ser a viagem intacta de um sorriso.

 

Lx. 29-6-77 – caderno Da Distância de um Corpo


XV

O dia antiquíssimo renasce

para o exacto instante em que se exaltem

a mais jovem espera, a mais ardente viagem.

 

Lx. 7-7-77 – caderno Da Distância de um Corpo


XVI 

A arte de olvidar aqueles vultos, os mais femininos,

em as pupilas do meu olhar, é arte ou desastre, o mais omnipotente e mortal?

Alastra em o chão, uma mancha de menstruação: é a doce adolescência acordada

para o infinito jardim de buxo onde dançam rumores, brilhos e a ascensão de uma mulher nervosa e meiga…

 

Cintra – 6-2-77 – caderno Do Ócio e Meditação em Cintra


1978

XVII

 

Não são as palavras transparentes: sob a água da memória respiramo-las

sim, as raízes dos olhos

lêem-nas. nuas. abstractas.

oh terra sob a qual. redentora e agudo metal.

 

entrego-me aos mastros do sonho. por quê

a aventura de meditar-te

sob um esquema cósmico? por quê

 

este caminho obscuro entre brinquedos e cigarros adultos?

 

venal esta ideia, a de caminharmos juntos,

lição de luz, à beira-mar, águas lisas e eternas.

 

Lx. 28-6-78 – caderno Luz de Dezembro – escrito a esferográfica vermelha


1981

XVIII

 

Dorso de praia

 

Letras de luz, dorso de praia,

A que adiro, me ferem no centro…

Que lodo de alma, saturado, à laia

de oceano e crânio se debruça no tempo?

E assim assistimos à assimetria,

suor e desastre, lugar onde quem me alumia.

 

Cascaes – 18-6-81 – Poema VII do caderno Cronologia dos Lugares


XIX

Vigília

 

Cintilam os deuses, os corcéis, as tempestades.

Circulam barcos, nuvens, arcos e bandeiras.

Oscila a noite, e há o timbre de mil deidades.

E há o nó das ondas crepusculares, eiras

ao abandono, à vigília. E o sono límpido aflui

às flores do meu corpo deserto. E adoece e flui.

 

Lx. 20-6-81 – Poema XVI do caderno Cronologia dos Lugares


XX

Festa

 

Oh hálito de mortal amor, pudor

de íntimas tempestades, de alma arestas.

Oh poentes febris que se cumprem em dor

e espanto. Sondei abismos, fiz longas festas

de nudez, de nostalgia. Meu amor é magia

quando a noite desce e o dia branco amanhecia.

 

Lx. 20-6-81 – Poema XVII do caderno Cronologia dos Lugares


XXI

(Baía de Cascais)

 

A lisura de águas azuis, a baía feita festa

de luz e sombra, a grande aceitação das coisas presas

ao imo do ser, o leve vento que acaricia arestas…

Estou incógnito perante a grande realidade,

solene mito, captação dos deuses, coração da verdade.

O timbre da luz enche os espaços,

e, perante o triunfo da beleza, apenas abro, de espanto, os meus braços…

 

Cascaes – 27/6/81 – caderno Migração Lacustre


1988

XXII

Em a noite mais linda cintila

qual puro diamante

e no negro intervalo do instante

passa a brisa que oscila

vai nua e distante

 

Lx. 27-1-88 – caderno Declive Amoroso


2005

XXIII

a noite cai nupcial e os

teus braços ébrios celebram-na

cálidos braços

e longos abraços furtivos

imunes aos terrores nocturno

navegados na casa antiquíssima dos pais

 

Lx. 10/7/2005 – caderno não localizado


2007

XXIV

 

oh brame o mar
ecoam os beijos rumorosos no teu corpo
que eu eclodo em ternura
rebento a eternidade e nunca anoitece

Lx. 20/04/2007 – caderno Jogos de Desejo – da tetralogia Quarteto sobre as virtudes do vício, 2007


2008

XXV

ondeia a noite.          onda tão sábia.

nos lábios.             múrmuros.         que fenecem.

como a noite. que se fecha. em que se tecem

rosas. tão exactas e antigas. que concedem

o oceânico. cio.

o esplendor. lúcido. do extremo.

oriente. inventado ou rumuroso.  estreme.

de tão puro e arcaico.

 

Lxª 25/12/2008 – Anunciação da Morte


2012

XXVI

um único fragmento fulge.

o dia se ergue se desfere revolto secreto.

oh dia fugaz e límpido. oh raparigas lindas do sul.

o sol quase se levanta. se solta trémulo.

corcel ou égua esveltos elegantes e errantes.

quem acerta com cega seta

o alvo que é sexo alvinitente e jovem.

quem puros o jugo e o jogo do desejo.

os do homem jorrem

em suas fontes diáfanas.

 

Lx. 2012 – caderno Errâncias Eróticas


XXVII

 

se enveredo agora

pela inclemência das palavras.

em vez

da nudez ostensiva e primaveril.

é porque esculpo a plenitude do teu corpo.

a de jorrar o caudal da juventude já ida.

então cedo ao vento célere.

porém.

não cerúleo como a esparsa ânfora do mar. que se desvanece.

ao longe. algures. no oceano órfico.

que edifiquei. e flui.

eu amador frustre.

como fui outro. outrora.

 

Lx. 2012 – caderno Errâncias Eróticas

Manoel Tavares Rodrigues-Leal (c 2012) — frame de LBTavares

Notas sobre os últimos dois poemas (XXVI e XXVII). São transcrições que fizemos de versões possíveis de dois poemas (Café “Novas Nações” – Rua de Moçambique, 31/12/2012). O poeta lendo directamente dos manuscritos cuja letra e emendas são por vezes ilegíveis. Durante a leitura, o autor procede a uma ou outra alteração pontual relativamente ao texto escrito. Do caderno Errâncias Eróticas (2012).

Este tipo de pontuação (pontos finais entrecortando o texto) e letra sempre minúscula foi definitivamente adoptado a partir de 2003–2004.

Observações do autor sobre os pontos finais. “São pontos para estancar, digamos assim, a poesia, o fluxo, o afluxo da poesia. E, portanto, é uma maneira de estancar essa corrente de literatura ou de poesia. E, como dizer? Tentar enxugar o texto poético! Quer dizer, uma maneira de elevar o texto poético à essência, à essencialidade através da pontuação”. Leia-se este passo, e sempre com letra minúscula: “esse ofício. fulcral. |o de escrever. ainda aflora.” (primeiros dois versos de um poema de 2003–2004, in A Duração da Eternidade, edição de autor 2007).

Ver artigo na revista Caliban:

https://revistacaliban.net/tit%C3%A3-prometeu-28fe84c70338

Manoel T. R-Leal em Sesimbra – c 1989. Desenho de L. de B. Tavares
 Manoel Tavares R-Leal à esquerda (camisola branca) – Agosto de 1972