Vida aberta

 

ADELTO GONÇALVES
«Vida aberta», de W. J. Solha: um discurso utópico


Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


I

Poeta anárquico, que transita com extrema facilidade pela Filosofia e pela Literatura, aliás, como poucos na atual geração de literatos brasileiros, W. J. Solha (1941) está com novo livro na praça, Vida aberta – Tratado Poético-Filosófico (Guaratinguetá-SP, Editora Penalux, 2019), que apresenta ao leitor um extenso poema, ou melhor, um discurso utópico, em que procura reconstituir a história da Humanidade e seus muitos saberes e mitos e também os seus numerosos fracassos.

É claro que não se trata de um poema destinado ao grande público, mas ao leitor contumaz, erudito e capaz de reconhecer os muitos nomes citados, que vão de Richard Wagner (1813-1883), Beethoven (1770-1827), Karl Marx (1818-1883), Marlene Dietrich (1901-1992), Albert Einstein (1879-1955), Schopenhauer (1788-1860) e Nietzche (1844-1900) a Baudelaire (1821-1867), Apollinaire (1880-1918), Velázquez (1599-1660) e Júlio Cortázar (1914-1984), entre tantos outros.

Como muito bem observou em resenha que fez desta obra a crítica literária, poeta, contista e ensaísta Alexandra Vieira de Almeida, doutora em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), este novo livro de Solha, a exemplo de obras anteriores, faz “a junção entre o coloquial/popular e o erudito, o antigo e o contemporâneo nos matizes que encabeçam os versos do autor”. Por isso, além de nomes consagrados da Literatura Brasileira, como Manuel Bandeira (1886-1968), Augusto dos Anjos (1884-1914 e Ariano Suassuna (1927-2014), são lembrados o escultor Abelardo da Hora (1924-2014), o compositor Lourenço da Fonseca Barbosa, o Capiba (1904-1997), e o cantor e compositor Alceu Valença, entre muitos outros.

Segundo o poeta e jornalista Linaldo Guedes, autor do texto de apresentação de Vida aberta – Tratado Poético-Filosófico, tudo está praticamente nas páginas da obra de Solha: “cowboys, filme dos Lumière, Rembrandt, Mozart, Gaudi, porco-espinho fazendo sexo, Hawking, Mickey, Buda, Cristo, USP, Becket, Plínio Marcos, Rig Veda, Alcorão, Bíblia, Capitão Marvel, Platão”. Por isso, Guedes adianta que o leitor não precisa saber o que vai fazer com tais referências, mas recomenda: “Deixe-se apenas embalar pelo melhor que a poesia pode produzir: imagens em alta velocidade, ritmo, ironia e sabedoria que é pura magia, … igual à da fé – do Islã, cristã, pagã, dos judeus – que torna o oco dos templos, “presença” de Deus”, reproduzindo na última parte da frase trechos do poema de Solha.

 II

Como exemplo do trabalho artesanal de Solha, pode-se destacar que Vida aberta começa e, praticamente, termina com imagens de um episódio que é uma metáfora do fim do mundo, muito apropriado a esta época em que a pandemia do coronavírus (covid-19) ameaça e aterroriza a Humanidade: a do conjunto Wallace Hartley Band que tocou até o final, enquanto o luxuoso transatlântico Titanic, símbolo até então do gênio humano, em sua viagem inaugural em 1912, naufragava em águas próximas à Terra Nova, no Canadá, com mais de 1.500 pessoas a bordo.  Eis o trecho final do poema: Daí/ que,/ sem a ansiedade que imaginava típica de minha idade/ e no pique da Wallace Hartley Band que toca até o The… End/ no Titanic,/ sinto-me,/ agora,/ como apache que do desconhecido homem branco/ acha a outra… espora.

A imagem final também é uma repetição da segunda imagem de abertura do poema e funciona como uma metáfora: a do homem (não só branco, pois a escravidão é um fenômeno ocorrido em todas as latitudes) que sempre procurou, em toda a História, subjugar o semelhante, o que, de certo modo, faz até hoje em vários tipos de sociedade. Na imagem do poema, aqui é o homem branco que imaginou cavalgar o índio apache, escoiceando-o com as esporas.

Para que o leitor tenha uma ideia do que o espera, basta reproduzir este trecho que se encontra no miolo do poema: (…) Mas – um dia o deus dos judeus –, se o tema é arranha-céu, ainda/ se pensa em Babel./ O Titanic é uma barca,/ perto da Arca; e cruz,/ mais do que a… Coca-Cola,/ é A/ logomarca!/ O fato é que Deus – como Zeus,/ em sã consciência,/ é imaginário, extraordinário homem/ dotado de onipotência/ mas/ se um já perdeu o emprego,/ um dia o judeu também cai,/ sim,/ do Sinai,/ basta que tudo, a seu respeito,/ seja submetido a estudo./ Jesus, Alegria dos Homens – tirando-se a partitura – não é/ mais do que/ os dólmens./ E toda a arte… da Igreja… irá pro Google, como as obras de Bruegel./ Ricos retratos, opulentas paisagens e naturezas mortas: o burguês holandês do século XVII se liberta da arte sacra/ (que até então o encalacra),/ e assim é a História, que se escreve certo/por linhas tortas (…). (pp. 76/77).

III

Publicado em 2018, também pela editora Penalux, A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso, na definição de seu autor, não seria um longo poema de versos livres, como Vida aberta, mas um rimance, ou seja, um romance popular, em verso, que se canta ao som da viola, ainda frequente no Brasil, um pequeno canto épico. Mas pode ser considerado também “uma novela de cavalaria para tempos modernos (dentro da lógica nordestina)”, como observa o jornalista Daniel Zanella no texto de apresentação que escreveu para esta obra. Ou ainda “um poema de caráter pluridimensional, artisticamente construído sobre os pilares da experiência e maturidade”, como definiu o escritor João Carlos Taveira, no prefácio.

De fato, W. J. Solha procura reconstruir uma epopeia do século  XXI, mas a partir do Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616), e de A pedra do reino, de Ariano Suassuna, sem deixar de evocar o mito de Dom Sebastião (1554-1578), o rei de Portugal, que desapareceu na África, gerando o sebastianismo, espécie de crença messiânica em seu retorno ao país. Portanto, são muitos os significados que podem ser extraídos desta obra de maturidade do autor, mas o que se pode intuir é que seus versos pendem mais para a descrença, ainda que de uma incredulidade discreta.

IV

Nascido em Sorocaba-SP, Waldemar José Solha (1941) radicou-se em João Pessoa, na Paraíba, a partir de 1962. Além de poeta, teve várias pesagens pelo teatro como autor e diretor de peças e ator. Escreveu textos para “Cantata Pra Alagamar”, música de José Alberto Kaplan, 1980, e “Os Indispensáveis”, para música de Eli-Eri Moura, apresentada em João Pessoa em 1992. Trabalhou como ator nos filmes O salário da morte, dirigido por Linduarte Noronha e lançado em 1970; Fogo morto, dirigido por Marcus Farias; Soledade, dirigido por Paulo Thiago (ambos de 1975); A canga, de MarcusVilar, em 2001, e Lua Cambará, dirigida por Rosemberg Cariry, em 2002. É autor dos painéis “Homenagem a Shakespeare”, de 1997, em exposição permanente no auditório da Reitoria da Universidade Federal da Paraíba (UFPb), e “A Ceia”, de 1989, no Sindicato dos Bancários da Paraíba.

Publicou os romances Israel Rêmora, Prêmio Fernando Chinaglia de 1974 (Rio de Janeiro, Editora Record, 1975), A canga, 2º prêmio Caixa Econômica de Goiás de 1975 (São Paulo, Editora Moderna, 1978; Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984); A verdadeira história de Jesus (São Paulo, Editora Ática, 1979); Zé Américo foi princeso no trono da monarquia (Rio de Janeiro, Codecri,1984); A batalha de Oliveiros, Prêmio INL 1988 (Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1989); e  Shake-up, (João Pessoa, Editora da UFPb, 1997).

Na área de poesia, é autor também de Trigal com corvos (São Paulo, Recanto das Letras, 2004), poema longo publicado pela Editora Palimage, de Portugal, também em 2004, Prêmio João Cabral de Melo Neto 2005 como melhor livro de poesia de 2004; História universal da angústia (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2005), coletânea, Prêmio Graciliano Ramos 2006 e finalista do Prêmio Jabuti 2006; e  DeuS e outros quarenta PrOblEMAS (Guaratinguetá-SP, Editora Penalux, 2015).

Vida aberta: Tratado Poético-Filosófico, de W. J. Solha.
Guaratinguetá-SP: Editora Penalux, 106 págs., R$ 37,00, 2019.
A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso, de W. J. Solha.
Guaratinguetá-SP: Editora Penalux, 98 págs,, R$ 35,00, 2018.
E- mail: penalux@editorapenalux.com.br Site: www.editorapenalux.com.br