“Vale das ameixas”, à sombra dos seios em flor
Por ALEXANDRA D’ORSI
Alexandra d’Orsi é formada em Letras pela Unicamp, cursou um DEA (pós-graduação) em Línguas Romanas (Tradução) na Universidade de Lyon, França. No próximo ano, a Editora Sinete vai publicar seu livro de estreia, Dos meridianos de Eva, contos.
A leitura de Vale das ameixas (245 páginas, Editora Sinete, São Paulo, 2024), do escritor Hugo Almeida, exige concentração integrada de amorosidade: mente e coração abraçados, pois as personas narrantes são muitas, criando um dédalo de alta sofisticação narrativa, em fluxo enredante de consciência (s). Mas compensa, e bastante, atravessar esse Vale. Recompensa.
Dessa complexidade múltipla de narrativas, que são teia, o autor, definitivamente, aprimora o que é ler, experiência de despedir-se do mundo fragmentado e fragmentário atual para enaltecer o “viver” integralmente enquanto momento de leitura. Difícil?… Só os rasos amam o fácil de hoje. Fechar a porta, sair do imediatismo e adentrar o Vale. Claro que essa “mágica” não é nova no autor. Quem viveu o recente Certos casais (Editora Laranja Original, 2021) sabe disso, mas, aqui, essa filigrana se aprimora exponencialmente. E, para prevenir também, é bom saber: quando esse caminho de ir ao longo, no Vale, chegar ao fim, o sentimento de orfandade, pós tão deslizante leitura, será grande. Trata-se de um romance armadilhoso, pois, mesmo nos rendendo às vezes em dor (emociona fundo), não queremos escapar dele. Será também por haver sido concebido em seda poética travestida de prosa – ou vice-versa? Talvez síndrome de Estocolmo na literatura: ser apascentada e perturbada por tamanha leitura-algema, o paradoxal de Hugo Almeida.
Nesse labirinto narrativo há ainda tão exponencial erudição literária, filosófica, musical, pictórica, biográfica e histórica! Todo esse manancial com a sobreposição identitária de outras obras gigantes da literatura tipo exportação e made in Brazil. Diríamos a fantasmagoria dos nossos gênios assombrando o autor.
Para aqueles e aquelas que buscam, para além de uma leitura sofisticada e prazerosa, um guia de acesso a múltiplo conhecimento, esse livro descortina um universo cultural ímpar.
Harley, o sedutor que veio do frio
O personagem masculino preponderante e senhor do Vale é Harley Tymozwski, ou Timo (o leitor que descubra as origens e os significados do apelido, para além do sobrenome). Polonês de origem, professor – rico daquele machismo bíblico, ainda hoje tão difícil de se desintegrar –, Timo vai ressignificar a própria vida em pendência a todas as mulheres por que “passou” (ex-alunas, professora, bailarina, psicóloga etc. etc.). Um homem sedutor, senhor de conquistas indeléveis. Consciente da passagem do tempo e também da riqueza dos acontecimentos por que passou, Harley rascunha a estamparia sobretudo psicológica da própria vida com a moldura histórica da primeira metade do século XX na conturbada Europa – isto é, das mais dramáticas já vividas pela humanidade – e o restante do período abordado num Brasil (sobretudo São Paulo e Belo Horizonte) de um então aparentemente manso. A sequência dos anos mudaria tal mansidão.
Egérias (diz o mito que, da ninfa Egéria, o segundo rei de Roma aprendeu lições de sabedoria que nortearam seu reinado).
Para o narrador-mor, aqui também, as mulheres serão mestras de vida e serão vozes (às vezes em cartas) da narração. Dos seios delas, fetiche de Harley, mimetizam-se as ameixas do Vale (a propósito, nos dicionários de símbolos, a fruta ameixa está associada ao órgão sexual feminino e ao prazer carnal). Elas serão emblema do leite metafórico de quando Timo já não pode mais se alimentar do materno. Considere-se também, a título de informação, que a Polônia é grande produtora e exportadora de ameixas.
Assim, a robustez da presença feminina nesse romance vem também, é claro, no materno que acalenta o que é lembrar em Harley. Há passagens tocantes nesse sentido, por exemplo em um poema do próprio Harley (p. 230): “Minha mãe, quantos sóis e quantas luas já rolaram sobre a tua ausência? / Quão doce era o teu seio / e meigo o coração! / Nem sequer um dia deixei / de murmurar teu nome.”. A mãe será também uma das narradoras.
Além dessa nostalgia melancólica onipresente e sempre iniciática na apreciação do gênero feminino (às avessas, conforme mencionado e, nas palavras do quase-filho-Ezequiel-Túlio (p. 242): “o romance de Harley está centrado no homem: a maioria das histórias traz o ponto de vista dele, do macho, incomodado em seu retiro por fêmeas excessivas”), ela vem também miscigenada da fuga e das saudades de um espaço-mãe chamado Polônia. Raiz-feminina suspensa na memória da narrativa completa (e de jeito amoroso, doloroso) que, surpreendentemente, mas não por acaso (a presença judia era a causa), a par com a Alemanha, era das raízes-país mais efervescentes culturalmente na Europa.
Então, lugar irredutível da infância, que de território físico passa a país interior, onipresente em cada e toda manifestação de nosso caminho humano, eis aí um dos mares-matriz onde “Harley-Hugo” vai interpor a ponte Polônia-Brasil.
O Vale dos caminhos que se bifurcam
Também a realidade e a suposição fantástica bifurcam a nossa percepção-efetivação dos fatos no Vale das ameixas, criando pontuações vibrantes. Uma delas nasce do encontro erótico, mágico, trágico, com a jovenzinha Lulu, que será determinante na vida de Harley – valendo-lhe mesmo o cárcere e (possivelmente) o divórcio. A casa da menina situava-se na rua do “Cisne” (símbolo de anjos, de pureza), margeando para baixo com a travessa de nome “Outono”! A circunstância do encontro se dá de forma quase alucinatória, bifurcando a realidade, à maneira de um Borges, sob uma libido em plena representação do princípio do ocaso (o professor aproximava-se, então, da anedótica idade do lobo). O obscuro do Vale que desce e anoitece (p. 10): “Fiquei só, só Deus sabe quantos segundos, minutos. Meia hora? Estou lá até hoje?” [Ecos do Drummond de Farewell?]. […] “Se alguém me visse, como explicaria aquela visita? Senti o sopro de um espaço aberto. Respiro. Lira. Deliro? De nada mais me lembro, sei que desapareci dali e hoje estou aqui, neste cubículo, tentando recordar se houve o que não houve, o que me trouxe para este quarto escuro, silencioso e frio” (p. 11).
Depois disso, as peças movem-se rapidamente e Harley mudará de mulher(es), de casa e de cidade.
O rei dos cárceres do Brasil e outras identidades
A presença de Harley na casa nova (p. 15): “Apreciava a paisagem da janela da casa nova […] Pensava O que eu era há um ano? Professor. E o que sou agora? Professor. Estava de chinelos, olhava para o jardim mirrado, para as montanhas ao longe […]”. Acima está explícita recuperação cinematográfica, pelas palavras de Harley, de cena do primeiro capítulo de Quincas Borba, “Rubião fitava a enseada (…) à janela de uma grande casa em Botafogo”, significando, em um e outro, essa janela, a abertura para o reprincipiar a vida em certo momento crucial. A intertextualidade mergulha fundo nesse Vale.
Outra identidade com um clássico do Brasil encontramos na representação das vicissitudes do narrador-mor, Harley, bem como de dona Benedita (empregada de sofismas verbais deliciosos). Ambos papel-carbono, espelhando verdadeiramente as mazelas sociais vividas por Julia Enone, persona-[autora?] de A rainha dos cárceres da Grécia (Osman Lins). Enquanto Zacarias, filho de Harley, interage com essa principal dos Cárceres. Genial. Aliás, o anúncio de sua morte no jornal (p. 198) é lido por persona do Vale. Que façanha essa de tornar o “ilusório” literário um palco com personas de diferentes obras e autores interagindo em tempo único! Não por acaso, Osman Lins é o amado escritor de Hugo Almeida. A rainha dos cárceres da Grécia, um livro dentro de outro, que por sua vez está dentro de outro. O efeito matrioska, tão apropriado à cultura polonesa.
Quanto ao relacionamento de Biela e Samir, por que não entrecruzar com a dilacerante conclusão de Bentinho em Dom Casmurro: “(…) a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me…”?
Sem dúvida, tudo o que se escreve hoje é colcha de retalhos daquilo que tivemos o privilégio de ler ao longo. Privilégio, claro, quando de grandes leituras, pois que as ruins não põem cicatrizes na alma. É assim que, na narração de Vale das ameixas, esse tempo paralelo, que une em um todos os livros já lidos, dialoga com a somatização do mágico.
“A vida imita a arte”
Não obstante, nenhuma arte rivalizaria em horror com o panorama de vida real, histórico, da Segunda Guerra Mundial (que se ia desenhando, quando Harley deixou a Polônia).
Desafortunadamente, talvez, a mimesis seja em sentido oposto ao do aforismo acima, em aspas, do mais do que nunca imprescindível Oscar Wilde.
A fragmentação aqui, desse texto sobre o Vale das ameixas, não diz em absoluto da argamassa coesa, manta humana e infinita que o encanta. E não é a flor explícita, não é tampouco o derivado fruto, mas aquilo que fez uma e outro se abrirem desde as entranhas do Vale, aquilo-palavras que achamos tão difícil exercer nos dias de hoje… amor e compaixão. Esse livro é o oposto à Segunda Grande Guerra que Polônia e seu filho Harley definitivamente não ensejaram, o oposto a todos os holocaustos e tiranos que no dia de hoje mesmo, sob retóricas falaciosas, espelham o passado e o reproduzem.
Ave, Harley-Hugo. Ave, amor1.
1“O livro segue livre o seu caminho. Agora é com o leitor” (p. 204). E, respondendo em parte à questão de Harley (p. 121): “O poeta deve cultivar um pequeno jardim e cuidar de um animal doméstico. De quem é a receita?”. Voltaire pelo menos aconselhava: “il faut cultiver notre jardin”. Que o Vale das ameixas seja terreno fértil e amoroso para cultivo do você-leitor.